9.5.11

AVES BRASILEIRAS E SUAS LENDAS

No imaginário popular há certos animais que pela sua imponência, são associados ao folclore regional, originando lendas que tentam explicar a natureza, ou mesmo a tornar épica a construção de um determinado povoado. No Brasil imaginário, onças, peixes, cobras e tantos outros animais, suscitaram lendas e crendices que atravessaram os séculos, da colonização à nação, formando a cultura popular transmitida de pai para filho. Em particular as aves, pelo seu canto, pela capacidade de voar, pela beleza das plumagens ou pela falta dela, suscitam muitas crendices populares e as mais magníficas lendas.
Três lendas fazem parte deste artigo, todas elas envolvendo aves, a do urutau, ave nocturna dos sertões brasileiros; a da gralha azul, símbolo do Estado do Paraná; e, a do urubu, a mais brasileira das aves, existente em todo o país.
A Festa no Céu é uma lenda que existe não só no Brasil, como em Portugal, o que nos remete a crer que seja de origem lusitana. Envolve a destreza do urubu diante da natureza e a esperteza do sapo, indo contra as limitações do seu corpo. Em outras versões o sapo é trocado pela tartaruga, mas o desejo de alcançar o céu como as aves, prevalece.
O Urutau conta a lenda da mulher que por ser muito feia, foi abandonada pelo homem que amava e transformada nesta ave de canto melancólico, de hábitos nocturnos. Famosa entre os sertanejos, a ave é tida como símbolo de sorte para uns e como mau agouro para outros. É uma das aves mais feias do sertão, recebendo vários nomes: jurutaí, mãe-da-lua, jurutau, curiango, bacurau grande ou chora-lua.
A Gralha Azul traz a lenda de uma ave típica do sul. É símbolo da construção do Paraná, do homem que ao colonizar a terra e cultivá-la para a sua subsistência, destrói a sua mata e os pinhais, árvore símbolo daquelas terras. A gralha azul, de cabeça preta, com o seu canto estridente, é a esperança da conservação da natureza, mesmo diante da colonização do homem.

A Festa no Céu

Uma grande festa no céu foi anunciada aos animais. Para desencanto de muitos, só foram convidadas as aves, por possuírem asas e lá poderem chegar. Ao saber da festa, o sapo Cururu não se conformava em não ter sido convidado. Mesmo sabendo da impossibilidade de ir ao céu, espalhou por toda a mata que também tinha sido convidado, fazendo com que os outros animais dele rissem e escarnassem.
Cururu passava os dias na lagoa, a rebater o escárnio, mantendo sempre a convicção de que iria à festa no céu. Foi quando um dia, o Urubu foi lavar os pés na lagoa. Cururu sabia que ele era quem tocava viola nas festas dos bichos, e, como voava, com certeza iria tocar na festa do céu.
-Hoje é o dia da festa no céu. – Falou o Urubu ao sapo, trazendo a viola às costas. – Venho lavar os meus pés e seguir para lá. Soube que foste convidado.
-É verdade, mais tarde lá estarei e poderei ouvir-te tocar! Quero dançar a noite toda, até que nasça o sol.
O Urubu não se preocupou com Cururu, lavou os pés, bebeu água, sacudiu as penas, sem que se apercebesse que o astuto sapo entrara em sua viola, lá permanecendo silencioso. Ao terminar a sua higiene, o Urubu pegou a viola e voou para o céu, distanciando-se cada vez mais da terra, até que chegou à tão esperada festa.
Foi num momento de distração do Urubu, que o sapo Cururu saiu de dentro da viola, surpreendendo a todas as aves com a sua presença. O Urubu tocou durante toda a noite, afirmando a sua fama de violeiro dos bichos. Cururu dançou, cantou e comeu todas as delícias da festa. Era a primeira vez que um bicho que não tinha asas participava de uma festa no céu.
Momentos antes de a festa terminar, já o sol nascia, e Cururu voltou para dentro da viola do Urubu, onde permaneceu quieto, refestelado e pronto para voltar à lagoa. O Urubu despediu-se de todos, e de viola nas costas, pôs-se de volta à terra. Como Cururu tinha comido muito, o seu peso aumentara drasticamente, fazendo com que a viola pesasse mais ao Urubu. Desconfiada, a ave sacudiu a viola e viu que dentro dela estava o sapo.
-Mas que grande trafulha e malandro este sapo. Dar-te-ei uma lição, que não me logrará uma outra vez.
Assim dizendo, o Urubu atirou Cururu no ar. O pobre sapo assustado, viu passar diante dos seus olhos a imensidão do vácuo, caindo de costas sobre as pedras. A pancada foi tão forte que ficou marcada para sempre nas costas de Cururu, fazendo marcas que cicatrizaram em forma de desenhos. Desde então, todos os sapos trazem desenhos nas costas, como testemunho de que um dia Cururu foi à festa no céu.

O Urutau

Maria era uma moça sonhadora, que pensava um dia poder conhecer um belo príncipe e com ele se casar. Queria ter filhos e um lar para cuidar e ser feliz. Mas Maria era a mais feia das mulheres da sua terra. Era demasiadamente magra, vesga dos olhos, nariz enorme e olhos esbugalhados.
O aspecto físico de Maria espantava todos os rapazes jovens, que dela fugiam como se fugissem de uma bruxa. As outras mulheres casadoiras chamavam-lhe pelas costas de mãe da lua. Mas Maria o que não tinha de beleza, derramava de bondade, tendo um coração infinito.
Certa noite, após a labuta no campo, Maria voltava para casa, quando se deparou com um rapaz gentil e de voz sedutora. No céu densas nuvens encobriam o luar, trazendo um grande breu à estrada, o que levara o rapaz a se perder. Maria ouviu o jovem perdido, conhecedora de todos os caminhos daquela região, prontificou-se em ajudá-lo a sair do ermo.
Os dois caminharam na noite escura. O rapaz ouvia a doçura da voz de Maria. Na escuridão só lhe via o semblante, que lhe parecia belo e garboso. Apaixonado, segurou na mão de Maria, e assim, caminharam pela escuridão. Cada vez mais apaixonados, juraram amor eterno. Ele era um príncipe honrado, e diante de tanta bondade e doçura na voz, propôs a Maria que se casasse com ele. Maria aceitou. Caminhavam felizes, de mãos dadas, quando a lua saiu do meio das nuvens, cobrindo de luz toda a estrada do sertão. Naquele instante o príncipe pôde ver o rosto da amada. Assustou-se diante de tão horrenda criatura. Arrependido do pedido de casamento que fizera, ele disse à jovem que o esperasse, que já voltava. Sem olhar para trás, distanciou-se dela e jamais retornou.
Maria ficou perdida no meio do sertão, à espera do amado. Esperou... Esperou... Mas a imagem do amado foi tragada pela imensa lua que brilhava no céu. Maria chorava, quando lhe surgiu no caminho uma velha feiticeira. Desesperada, perguntou à feiticeira se tinha visto o belo príncipe que lhe jurara amor e casamento.
-Casar contigo? – Indagou a feiticeira. – Teu coração é gigante, assim como o teu rosto é horrendo. O teu príncipe fugiu do teu rosto, perdendo-se do teu coração...
-Não é verdade, tivesse eu asas e voaria pelo céu, até encontrar o meu príncipe!
Compadecida, a feiticeira pôs as mãos sobre a cabeça de Maria, transformando-a em uma ave, assim ela poderia voar em busca do seu príncipe. Maria, metamorfoseada em ave, saiu voando pelos céus, atrás do seu príncipe. Voou toda a noite, quando o dia raiou, os seus olhos, acostumados à escuridão, não se mantinham mais abertos diante do sol. Maria procurou o oco de uma árvore a ali se aninhou, fazendo daquele buraco o seu novo lar.
Maria tornou-se uma ave que foi chamada de urutau. Passa o dia a dormir, saindo à noite em vôos tristes e silenciosos. Quando a lua surge no céu, o urutau deixa o oco das árvores e começa a cantar. Solta um canto triste, pungente, como se fosse um grande lamento. Quem ouve o urutau, não sabe que por trás do seu canto melancólico e crescente está Maria, que com a sua lamúria em voz de ave, repete pungentemente: “Foi... foi... foi...”

A Gralha Azul

Numa fria manhã de inverno, a gralha ainda dormitava no galho do pinheiro, quando foi surpreendida por um súbito e seco barulho. Assustada, ela pôde ver um homem a desferir o machado no tronco do pinheiro. A gralha ouviu os gemidos agudos do pinheiro, enquanto que a seiva de dentro dele transbordava em dor.
Com tristeza, a gralha viu os golpes do machado, cada vez mais intensos, a cortar sem piedade o majestoso pinheiro que por muitos anos deu-lhe abrigo, tornando-se um amigo. Sabia que o destino de tão bela árvore, que por décadas a natureza tecera o porte que apresentava, seria o de uma serraria, transformada em madeira morta para servir aos caprichos humanos.
Impotente diante da tragédia que se abatia sobre o pinheiro amigo, a gralha voou em direção ao infinito, subindo muito além das nuvens, de modo que não pudesse ouvir os gemidos de dor causados pelo corte fatal do machado. Já na imensidão do céu, a pobre ave pôde ouvir uma voz terna a ecoar:
-O coração das aves é misericordioso, revoltando-se com as dores da mata! Bendita sejas tu, avezinha! Tua bondade faz-te digna do mundo. Volta para os pinhais, a partir de hoje tu serás a minha ajudante. Transformarei a tua plumagem em azul, da cor do céu. Quando voltares para os pinhais do Paraná, vais plantá-los, para que se renove e jamais se extinga.
-Sou apenas uma ave negra, a chorar a dor dos pinheiros mortos.
-Já não serás uma ave negra, já te disse, terás a cor do céu. Quando comeres o pinhão, tirar-lhe-á a cabeça, para com as tuas bicadas, abrir-lhe a casca. Nunca te esqueças de antes de terminar a tua alimentação, enterrares alguns pinhões com a ponta para cima, já sem cabeça, para que não apodreça antes que surja um novo pinheiro dali nascido. Do pinheiro, árvore da fraternidade, nascerá a pinha, da pinha nascerá o pinhão... do teu bico cairá a semente que fertilizará o solo.
Ao ouvir a voz, a gralha viu-se no topo do céu. Olhou para o seu pequeno corpo de ave e apercebeu-se que as penas negras tinham ficado azuis. Até onde os seus olhos pudessem avistar, tornara-se uma ave azul, ao redor da cabeça, onde não podia enxergar, continuou com a plumagem preta.
Ao ver a beleza das suas penas, a avezinha retornou para os pinhais. Encontrou os galhos de todos os pinheiros abertos, a convidar-lhe para pousar em seus galhos, assim ficariam perenemente. Tão alegre estava a gralha com a sua nova plumagem, que o seu canto passou a ser como um alarido a lembrar crianças a brincar. Assim a gralha, ao voltar, iniciou o seu trabalho de ajudante celeste, ajudando aos pinheiros a renascer dos seus pinhões.
Ainda hoje, quem passa pelas florestas do Paraná, consegue ver bandos de gralhas azuis matracando nos galhos dos frondosos pinheiros, comendo os pinhões que alegram as festas do povo do lugar.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas
Fonte:
http://virtualia.blogs.sapo.pt/38511.html