7.5.11

Bin Laden, o solitário do Islã

Na Índia, manifestantes pró-EUA comemoram a morte de Osama Bin Laden queimando cartazes com fotos do líder da Al-Qaeda. Foto: Reuters

Na Índia, manifestantes pró-EUA comemoram a morte de Osama Bin Laden queimando cartazes com fotos do líder da Al-Qaeda

A noticia de que os ulemás, os chefes religiosos do Afeganistão, ordenaram a destruição das antiquíssimas estatuas dos Budas gigantes existentes em várias partes do país, horrorizou o mundo. A todos parece como mais uma prova da intolerância do movimento talibã que controlava a maior parte do Afeganistão, pais que abriga o homem mais procurando do mundo pelos norte-americanos, Osama bin Laden. Agora, morto, transformou-se em sahid (Mártir).

D.Quixote e bin Laden
"Deixem a Arábia Saudita ou morram" - Osama bin Laden, 1995. -
A sua "Província de la Mancha" estende-se do Deserto Arábico aos Montes Pamir no extremo oriental do Afeganistão, seu Rocinante é um jumento anônimo de quem ele se serve para se deslocar pelas montanhas e vales afegãos desde os tempos da guerra contra os russos. Como esposas ele tem quatro Dulcinéias ( todas elas ex-viúvas), pois como bom muçulmano não se contenta com uma só mulher. Magro e hirto, com a barba profética caindo-lhe pelo peito, ergue-se do fundo da sua caverna em Jalalabad, nos altos de Kabul, para com seu dardo vingador atingir os ímpios e as abominações modernas. Empunha a lança islâmica para "desfazer agravos e sem-razões".

Sem Sancho Pança mas com livros
Desconhece-se-lhe um Sancho Pança como assessor. Este D.Quixote árabe é Osama bin Laden, o mais espetacular ativista do fundamentalismo islâmico dos dias que correm.

É possível que também "tenham-lhe secado os miolos" como deu-se com D. Quixote em sua obsessiva leitura de livros de cavalaria. Osama bin Laden é um devoto da literatura corânica, cujas obras máximas mantém em livros de rica encadernação, cuidadosamente mantidos numa biblioteca no seu fortim rochoso. Entretanto, se o cavaleiro da triste figura era um fidalgo pobre, bin Laden, o cavaleiro do Islã, é rico. Riquíssimo.

A geração dos desencantados
Ao contrário da geração dos jovens árabes endinheirados ou talentosos que graduavam-se no exterior nos anos 50 e 60 e que voltavam empolgados com o socialismo, o secularismo e a modernização, a geração de Osama bin Laden pertenceu a safra dos desencantados. O seu circulo de amizades na Inglaterra, onde diplomou-se nos finais dos anos 70, era o dos estudantes fundamentalistas da Al-Ikhwan ( a Irmandade Muçulmana), organização fundada em 1928 pelo xeque egípcio Hassan El-Banna.

A grande onda de entusiasmo pela descolonização e independência que sacudira o mundo árabe nos anos 50 e 60 já havia passado. Conscientes da inexpressividade dos seus governos secularizados, impotentes e humilhados pelas sucessivas vitórias de Israel e pela superioridade avassaladora da tecnologia Ocidental, eles voltaram-se para trás, para os tempos remotos do Islã.

Idealizando o passado
"Alá é o nosso objetivo/ A mensagem é o nosso líder/O Corão é a nossa lei/ A Guerra Santa o nosso caminho/Morrer no caminho de Alá é a nossa maior esperança."
Tema da Irmandade Muçulmana

Em suas fantasias regressistas, os integrantes da Irmandade idealizaram o passado grandioso da Jihad - a guerra santa maometana dos séculos 7º e 8º - a Idade de Ouro do Islã. Época em que o mundo assistiu com assombro o expansionismo do Crescente. Tempos em que a bandeira verde do Profeta tremulava simultaneamente nos Pirineus espanhóis e nas margens do Gujarat no Oceano Índico, milhares de quilômetros distantes uma da outra. Portanto, a salvação do Islã estava em recuperar a bravura e a moralidade daquelas épocas primeiras, quando o mundo árabe ainda não havido sido profanado pela imoralidade e pelo materialismo ocidental. Tendo como objetivo a revivência disso é que emergiu a Irmandade Muçulmana ( Al-Ikhwan Al-Moslemoon).

A Irmandade Muçulmana
O O credo e o estado/ O livro e a espada/ o modo de viver
-Os princípios da Irmandade -

A Al-Ikhwan surgiu nos anos vinte no Egito, com irradiações posteriores para outros países árabes, em razão da continuidade do processo de colonização do Oriente Médio encetado pelas potência imperais européias: a Grã-Bretanha e a França depois da Iª Guerra Mundial, vencido o Império otomano, dividiram as nações árabes entre si.

Sentido a presença do colonialismo cristão como um agente dissolvente da cultura islâmica, algumas lideranças laicas e religiosas uniram-se para estabelecer uma estratégia de ação que recuperasse a auto-estima do povo árabe retomando os valores abençoados do Corão, lançando-se no estudo, na obediência à Sunna ( a lei sagrada), praticando a ascese, a política ativista, cuidando da saúde e do vigor do corpo. Além de intensificar o estudo científico e encontrar um suporte econômico para a irmandade afim de manter os laços fraternos entre os membros da sociedade islâmica.

Objetivos da Irmandade
No sentido mais amplo a Irmandade Muçulmana se propõe a construir: -um indivíduo muçulmano, forte de corpo e com boa formação cultural, educado e consciente
-a família muçulmana, mantendo as crianças dentro da formação educacional islâmica
-a sociedade muçulmana, formada por indivíduos e famílias que atuem dentro da realidade em que vivem
-o estado muçulmano
-a Khilafa, a unidade de todos os estados muçulmanos
-assenhorar-se do mundo para o Islã

Contra os soviéticos
Diplomado e de volta à Riad, a capital da Arábia Saudita, onde poderia passar o resto dos seus dias deliciando-se com a vida de herdeiro rico, bin Ladin porém inclinou-se pelas coisas da fé. Quando as tropas soviéticas adentraram no Afeganistão para apoiar o regime socialista de Kabul, ameaçado por uma revolta fundamentalista, ele foi acometido por um furor de indignação. As botas ímpias de russos ateus estavam a profanar o solo islâmico.

Apoiado na sua enorme fortuna ( estimam-na entre U$ 200 a 400 milhões) e nos seus conhecimentos técnicos, bin Laden tratou de dotar os mujadhins, os guerrilheiros islâmicos, de infra-estrutura para resistir à presença daquela infâmia. Guerreiros imbatíveis nas montanhas do Afeganistão, eles fizeram os soviéticos recuar. Dez anos depois, em 1989, bin Ladin voltava a casa onde receberam-no como herói.

O convívio com os talibãs
O convívio com os talibãs ( palavra persa que significa "estudante"), os jovens soldados-seminaristas pudicos e sóbrios do Afeganistão, alterou-lhe porém as perspectivas. A corte de Riad, com o rei Fahd esbanjando dinheiro e imerso na luxúria, pareceu-lhe agora um ninho da devassidão.

Vindo da guerra e das imensas privações porque passavam os afegãos, repugnaram-no os excessos que ele viu no meio dos ricaços sauditas. Tomou-se do mesmo sentimento de indignação que acometeu o padre Savonarola com as extravagâncias dos ricos de Florença no século XVI.

Saddam Hussein surpreende
Urgia, pensou ele, trocar o regime. Porque não derrubar aquela monarquia de sibaritas e fundar no seu lugar uma República Islâmica? Ela seria uma variante sunita da República xiita do Irã. As estrepolias que Saddam Hussein cometeu no Kuwait em 1990-1 atrapalharam-lhe os planos. Para afastar os iraquianos de cima dos riquíssimos lençóis de petróleo, milhares de soldados norte- americanos e aliados desembarcaram na Península Arábica, adonando-se em pouco tempo da região inteira.

A América, o novo inimigo
Depois da aplastante derrota de Saddam Hussein em 1991, bin Laden trocou de inimigo. Desagradou-lhe a parcialidade dos ocidentais no trato com os iraquianos. Bagdá - a Medina Bagdá - a cidade planejada pelos sucessores do Profeta para dar início à conquista da Índia, viu-se destruída pelas bombas e sitiada por um severo bloqueio econômico e alimentar. Afinal, perguntava ele, quando os ocidentais vão embora? Além do mais Bin Laden enxergou no americano um odioso símbolo do materialismo moderno.

Aqueles novos semideuses tecnológicos, com seus jatos, com seus mísseis, com sua comida ligeira com o seu rock, estavam destruindo o mundo de bin Laden. Para ele a cultura americana, agora que a viu mais de perto, em seu próprio país, era uma aliança demoníaca entre o consumismo e o despudor. De anti-soviético ele converteu-se em antiamericano.

No Sudão
Fracassado na sua conspiração contra o rei Fahd, bin Laden retirou-se para o Sudão, onde pôs-se a construir uma estrada de 1.200 quilômetros de Kartum a Port Sudam. Foi em Kartum, supõe-se, que ele teria planejado os dois violentos atentados aos quartéis americanos, um em Riad e o outro na Khobar Tower, em 1995-6.

A esta altura ele passou a tercerizar as operações, utilizando como instrumento, sua lança, a Jihad islâmica egípcia, a seita que executou o sensacional atentado que matou Anuar el-Saddat em 1981. Os norte-americanos colocaram a sua cabeça a prêmio: o Departamento de Estado ofereceu U$ 5 milhões para quem oferecer "informações" a respeito dele.

De volta ao Afeganistão
Refugiou-se então em 1996 no Afeganistão, bem mais seguro, buscando abrigo junto aos seus amigos talibãs ( que recentemente deram mais uma manifestação de absurda intolerância ao mandarem destruir os Budas gigantes dos tempos pré-islâmicos ). É lá que este Quixote árabe sem humor e sem nenhum lirismo se sente em casa.

Na aspereza das Montanhas Tora-Bora, convivendo entre a pobreza e o ascetismo, protegido pelo fantástico Elmo de Mambrino que a cobertura dos talibãs lhe oferece, ele teria ordenado a destruição de duas embaixadas norte-americanas, uma em Nairóbi, no Quênia ( utilizada como QG da CIA), e outra em Dar-es-Salaam, na Tanzânia ( com 223 mortos), em agosto de 1998 . Este estranho homem medieval, um dos últimos zelotes do mundo árabe, travou até se definitivamente abatido em sua mansão nas proximidades de Islamabad (Paquistão) uma incrível guerra solitária contra ao maior império do mundo.

Fonte: VOLTAIRE SCHILLING