Os insubordinados gregos da Jônia
As classes gregas mais altas também, muito antes do surgimento dos persas, haviam sido fascinadas pelo esplendor precioso dos reinados do Oriente. Atletismo e banquetes não eram as únicas paixões dos seus círculos mais prestigiados: como a decoração da Acrópole vistosamente testemunhava, assim também qualquer coisa que lembrasse o Oriente. Se isso era evidente até mesmo num lugar atrasado como Atenas, seria muito mais ainda atravessando o Egeu, nos litorais da própria Ásia, onde Os jônios, por séculos, estiveram cultivando um gosto pelo exótico. Na Ágora, pode-se vê-los, exibindo seus mantos púrpuros, impregnados de penetrantes perfumes, agitando seus refinados cachos! Entretanto, os jônios, para seus amos, eram um enigma - e um desafio. Tudo o que eles sempre fizeram, assim parecia aos persas, era travar disputas. Essa hostilidade interminável, que ajudara imensamente a conquista-los, também os tornava um povo particularmente difícil de ser dominado. Se os lídios tinham os seus burocratas e os judeus seus sacerdotes, os gregos pareciam ter apenas facções traiçoeiras e instáveis.
Como resultado, mesmo com sua aptidão para perfis psicológicos, os persas tiveram muito trabalho para controlar seus súditos jônios. Verdade que alguns conselheiros em Sardes depositavam grandes esperanças nos sacerdotes de Apolo, identificando-os como a coisa mais próxima que os gregos teriam de algo parecido com uma ordem como a desempenhada pelos magos, e recomendavam generosos donativos aos seus templos, como uma maneira de, quem sabe, conquistar o coração dos jônios. O entusiasmo com essa politica atingiu extremos, tendo em vista que até mesmo Dario poderia proferir uma acida repreensão se chegasse a ele a noticia de que seus funcionários estavam infringindo as prerrogativas de Apolo. Ainda assim, o rei ficaria amargamente desapontado se esperasse recrutar desse modo o deus grego da luz para a sagrada causa de Arta. Simplesmente, não combinava com o caráter de Apolo ministrar a seus adoradores palestras sobre a verdade. Em Delfos, assim como em seu grande oráculo em Didima, no sul da costa do Egeu, ele preferia expressar-se por meio de desafiadoras charadas - o que se constituía, no mínimo, em um aprimoramento em relação ao comportamento da sua companheira de Olimpo, Atena, que decididamente se deliciava em patrocinar homens com talento para contar mentiras.
O que iriam os persas fazer com deuses como esses? Nada, de fato, poderia chocar mais sua suscetibilidade - a não ser a tendência, entre a elite jônia mais temerária, de negar completamente a existência de um plano divino para o universo. Os primeiros filósofos podem ter surgido no âmbito do império persa, mas dificilmente se poderia considerar que apoiassem as alegações e ideais do Grande Rei. Onde Dario enxergava, na ascensão ao poder de seu povo, certa evidencia de encorajante benevolência de Ahura Mazda, um ousado jônio veria apenas a ação de princípios da natureza. Já quanto ao caráter desses princípios, isso seria também tema de acalorado debate. Um sábio poderia argumentar que o mundo era formado inteiramente de ar; assim sendo, reduzindo todo o Império Persa e suas obras ao simples interregno entre condensação e rarefação. Um outro poderia sustentar a idéia contrária de Zoroastro a respeito da sacralidade do fogo como elemento, vendo nisso não a imanência da verdade, da justiça ou da retidão, mas tão-somente o fluxo incessante. Para tal filosofo, a crença em uma ordem mais profunda que poderia existir por trás deste fluxo seria nada mais do que uma estúpida pretensão. Todas as coisas são constituídas de fogo e todas as coisas se dissolverão de volta ao fogo. Não havia muito nisso com o que um propagandista na corte satrapal pudesse trabalhar.
Ainda assim, a dependência de Artafernes em relação a tiranos para administrar a Jônia, imposta pela falta de qualquer outra alternativa óbvia, dificilmente estabeleceria o poder persa sobre bases sólidas. Com efeito, esta dependência poderia tem sido projetada para ilustrar uma teoria bastante dileta entre certos filósofos, algo que para eles parecia ser nada mais do que um fato da vida comumente observável: tudo no mundo era conflito e tensão. Os nobres jônios, afinal de contas, não eram mais afeitos a se tornarem súditos de um tirano do que suas contrapartes do outro lado do Egeu. Os persas, apoiando uma facção em detrimento de outra, foram sugados inevitavelmente para o bojo das hostilidades da aristocracia jônia. Ao passo que em Sardes poderiam embasar sua administração numa burocracia eficiente e respeitável, na Jônia tinham de fazer isso a partir de intrigas, brigas de facções e espionagem. Um agente persa por Ia teria de se mostrar tão eficaz em agir peias costas quanto qualquer grego. Para Artafernes, pessoalmente, o desafio era calar os vencedores e então descarta-los com o menor alarde possível.
Não é de admirar que seus protegidos, perfeitamente alertados sobre o papel que deveriam desempenhar dentro do esquema do sátrapa, se sentissem forçados por uma pressão infinitamente maior do que a que suportavam aqueles que eram suas contrapartidas na Grécia. Embora evidentemente indispensável, o apoio dos persas tinha um preço arriscado - porque um tirano jônio teria de esquivar-se não apenas da inveja de seus pares, como das desconfianças de uma turbulenta e xenofóbica classe menos favorecida. Enquanto a aristocracia, ludibriada pelo refinamento oriental, se mostrara como colaboracionista natural das suas contrapartes do Oriente, seus concidadãos persistiam num irrevogável desprezo por estrangeiros de qualquer espécie. A Tales de Mileto, por exemplo, um homem considerado pelos jônios como o mais brilhante de seus sábios - e de fato o primeiro dos filósofos -, atribuía-se ter oferecido um belo exemplo de sua sabedoria ao comentar o quanto era grato a Fortuna por três coisas:
"Em primeiro lugar, por não ser um animal, mas um homem; em segundo, por não ser mulher, mas homem; em terceiro, por não ser um estrangeiro, mas grego."
Os jônios gostavam de chamar seus vizinhos de bárbaros: pessoas cuja língua era um balbuciado, que ficavam dizendo: ba-ba-ba. Essa falha - não falar o grego - uma idéia evidentemente preconceituosa - era muitas vezes tomada como ocultação de outras falhas mais sinistras. A desconfiança dos jônios em relação aos hábitos de estrangeiros era muito anterior ao período em que foram conquistados pelo rei persa. Os mesmos lídios tão admirados por aristocratas em ascensão social, já na época de Creso, por exemplo, foram abertamente desprezados pela vasta maioria dos jônios, que não tinham como pagar por mantos púrpuros, perfumes e acessórios de ouro. Histórias escandalosas foram entusiasticamente contadas a respeito dos predecessores de Creso, em particular. Um deles, assim se comentava, instituiu a circuncisão feminina como um esforço para economizar com eunucos; um outro teria o hábito de mostrar sua minha nua para voyeurs; de um outro se dizia algo mais repugnante, que começara a apreciar o canibalismo e que teria despertado de uma noite de bebedeiras e encontrado a mão de sua esposa saindo de sua boca.
Que gregos iriam imitar monstros como esses? Evidentemente, como críticos da nobreza gostavam de sugerir, apenas os já pervertidos e degenerados. A Lídia, assim como suas prostitutas notoriamente especializadas no que faziam, era ao mesmo tempo doente e predatória. Aqueles que se rendessem a seu abraço mereceriam ser desprezados. Retirado o véu de delicadezas bárbaras tão prezadas pela aristocracia - o erotismo refinado, todo a luxo e as demonstrações de riqueza -, e a realidade deveria ser inifinitamente sórdida: a corte de Sardes poderia muito bem ser retratada como uma prostituta "falando o lídio", ajoelhada numa rua recuada, esfregando-se nos testículos de seus clientes com seu traseiro ainda pingando. A passagem cheirava mal, nuvens de besouros de fezes chegavam zumbindo, atraídos pelo fedor. Uma cena vil e chocante: uma boa metáfora para uma verdade vil e chocante. A aristocracia afundava-se em merda - e os tiranos, os piores pecadores, estavam afundados até o pescoço.
O que deixava os próprios tiranos atrapalhados: ou reinavam como títeres ou seriam linchados pela multidão em fúria, Se lhes fosse dada a oportunidade de desfechar um golpe devastador contra os seus senhores de terra - até mesmo, talvez, eliminar o próprio Rei dos Reis - e dali Uma hipótese fantástica - exceto pelo fato de, em 513 a.e.c., a questão ter se tornado prementemente real! Dario, tendo recentemente conquistado seus triunfos na Índia, entrou em Sardes com um imenso exército, atravessando da Ásia para a Europa, e então invadiu o norte chegando ao que hoje é a Ucrânia, numa grande investida contra os citas. Os diversos tiranos gregos, tendo recebido a ordem de dar sua contribuição para o esforço de guerra persa, foram mandados com suas tropas para o mar Negro com ordens de construir um pontão que atravessasse a boca do Danúbio e ali aguardar pelo retorno do seu amo. Entre eles, recentemente submetido ao jugo dos persas, e nada satisfeito com isso, estava o aristocrata ateniense Miltíades, O Filáida, tirano de Quersoneso, Contando as semanas e observando os céus se tornarem cada vez mais escuros e gelados, acabou concebendo um plano audacioso. E se os gregos derrubassem a ponte, será que Dario e seus exércitos ficariam encalhados na margem norte da margem do Danúbio? Cítia certamente não era um lugar para passar o inverno. As tempestades de neve eram assustadoras e os nativos afeitos a beber sangue humano. Vamos supor, apenas supor, portanto, que estivesse ao alcance dos jônios aniquilar toda a expedição do Grande Rei. Um pensamento perigoso e tentador - e no final do outono, com os batedores persas a apenas alguns dias de marcha, também algo que deveria ser resolvido com toda a urgência. Uma conferência dos tiranos foi realizada. Miltíades defendeu seu ponto de vista. Por um breve e inebriante momento, os demais gregos permitiram-se a tentação de aceitar; até que a razão, ingloria mas pragmática, prevaleceu. Afinal de contas, como todo tirano jônio estava perfeitamente ciente, não havia nenhum deles que não devesse sua posição de chefe de Estado a Dario. Assim, votaram por permanecerem leais e com a ponte flutuando. Discretamente fazendo desaparecem qualquer menção a traição que estiveram considerando cometer, os tiranos reunidos - Miltíades incluído - obsequiosamente deram as boas-vindas a seu amo. A perspectiva de liberdade pode ter parecido bela, mas não tão bela quando contraposta a realidade do poder.
E para um grego em particular, um homem tão sensível às oportunidades que se abriam para ele pelo domínio persa como qualquer lídio ou medo, esse poder era particularmente precioso. Histieu, o chefe da oposição a gabolice de Miltíades no Danúbio, pronunciou-se como tirano da (rica cidade do Egeu conhecida no mundo inteiro, a "gloria da Jônia", Mileto. Lugar de nascimento de Tales, e da própria filosofia, a cidade era um centro econômico e cultural. Os quatro magníficos ancoradouros do porto, onde se apinhava uma floresta de mastros balançantes - os dos navios que traziam grãos da Criméia, navios mercantes da Síria, do Egito, da Itália, navios de guerra, rápidos e ameaçadores, navios da própria armada de guerra do Grande Rei -, eram uma visão sem par em nenhum outro lugar do mundo grego, de tão opulenta e movimentada. Mileto era tão prezada pelos persas, tanto como entreposto comercial quanto como base naval, que desfrutava, em comparação com outras cidades jônias, uma forma de vassalagem exclusiva e privilegiada, algo que quase alimentava na cidade a pretensão de colocar-se como aliada. Ao mesmo tempo que tinha o cuidado de jamais deixar essa condição subir a sua cabeça, Histieu no entanto apreciava as vantagens que lhe conferia sobre os demais tiranos - e a oportunidade, acima deles todos, de estabelecer uma relação pessoal com o homem mais poderoso do mundo.
Em seu retomo da Cítia, o Grande Rei apressou-se a recompensar Histieu por seu apoio decisivo a expedição persa, convocando-o a Sardes e perguntando elegantemente a seu bandaka de Mileto se havia algum presente que ele cobiçaria. Considerando que o exército que deixara na Europa estava nesse momento avançando de Quersoneso para a Trácia, conquistando toda a costa norte do Egeu e seu interior, Histieu, com grande ousadia, estava imaginando se poderia ganhar de presente um pedaço dessa excelente satrápia. O Grande Rei inclinara a cabeça, concedendo o pedido. Histieu se viu como dono de uma região da Trácia chamada Mircinos. Não era uma recompensa desprezível: situada num largo rio, não muito distante da nova fronteira do império, justamente com a Macedônia, o presente de Dario veio completo, incluindo minas de prata e florestas, excelente matéria-prima para uma armada. Histieu, sem que isso fosse surpresa, ficou encantado.
Mas já quando corria para a Trácia para fundar uma cidade na sua nova propriedade, alguns protestos começaram a ser levantados em meio ao exército persa. Depois de muitos pigarros nervosos, palavras muito respeitosas foram cochichadas nos ouvidos do rei. Foi insinuado a Dario que os gregos, sobretudo os matreiros e ambiciosos como Histieu, simplesmente não mereciam confiança e a eles não deveria ser dado poder demais. Estava fora de questão, e claro, que o Grande Rei, tendo presenteado Histieu com uma recompensa, meramente a tomasse de volta; e menos ainda admitir que pudesse ter cometido um erro. Em vez disso, convocando o milésio a Sardes, Dario anunciou que a Histieu seriam propiciadas outras dádivas, como demonstração da alta estima em que o tinha: o magnifico titulo de "Companheiro da Mesa Real" e um posto como conselheiro do rei para assuntos gregos. Naturalmente, uma vez que Dario em breve estaria deixando Sardes, Histieu agora teria a honra suprema de acompanhar seu amo em viagens. Uma máscara de contrariedade cobriu seu rosto, e mesmo assim, em 511 a.e.c., Histieu foi obrigado a fazer as malas, deixar para trás sua terra natal e partir para Susa.
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A revolta da Jônia
Mesmo melancólico, na gaiola dourada da corte real, não abandonou as suas esperanças de se aproveitar do domínio persa para estabelecer uma base de poder no Egeu para a sua dinastia. Já em Mileto, o substituto de Histieu no posto de tirano, seu sobrinho Aristágoras, logo mostraria que tinha saído aos seus e que era um aplicado estudioso dos métodos de seu tio. Em 5OO a.e.c., aproximou-se de Artafernes com um plano que, assim confiava, poderia ser de mútuo beneficio. Por que não, sugeriu sem cerimônias Aristágoras ao sátrapa, enviar uma expedição à ilha de Naxos? Seria uma conquista de valor, situada a meio caminho de qualquer provável rota de invasão que atravessasse o Egeu, indo para a Grécia, e estava no ponto para ser tomada. A ilha era dividida em facções; havia a ameaça de uma guerra entre as classes sociais; a aristocracia estava pedindo por uma intervenção da Pérsia. Sardes poderia prover os navios; o próprio Aristágoras providenciaria os contatos com a desgostosa aristocracia de Naxos. Todos sairiam ganhando.
Artafernes, depois de consultar seu real irmão, deu seu consentimento para a execução - para imenso, embora não expressado, alivio de Aristágoras. Embora não pudesse deixar isso transparecer para o sátrapa, estava achando cada vez mais precário o delicado equilíbrio entre as demandas de seu povo e as dos seus senhores persas. Mileto sempre foi notória, mesmo para os padrões de outras cidades jônias, pela selvageria do Ódio entre as classes; mas, recentemente, esse fator estava ameaçando se tornar particularmente letal. A revolução em Atenas, uma cidade que reclamava, das brumas de um passado mítico, de ter enviado os primeiros colonizadores à Jônia, foi acompanhada com entusiasmo tanto em Mileto quanto nas ilhas do Egeu. Reivindicações exigindo a instalação de uma democracia similar, pedindo a derrubada da tirania e o fim do domínio dos bárbaros estavam crescendo cada vez mais violentamente nas ruas da cidade. Aristágoras, embarcando agora com a força de invasão dos persas para Naxos, sabia que estava de fato apostando muito alto; considerando as prováveis consequências, não se poderia sequer pensar em fracasso.
Muito em breve, no entanto, ele estaria se defrontando exatamente com essa situação. Tudo que poderia dar errado com a expedição efetivamente deu errado. A tentativa de conquistar Naxos se tornou um desastre, e Aristágoras, para selar de vez sua ruína, teve um monstruoso desentendimento com o comandante persa da expedição - que por acaso era justamente sobrinho de Artafernes. Quando as noticias chegaram a Sardes, o sátrapa, com o ímpeto resoluto que ele geralmente empregava na administração dos negócios jônios, decidiu que Aristágoras deveria ser substituído e assinou a ordem para tanto. Mas Aristágoras, agora sem nada a perder e fortemente apoiado por seu tio, na distante Susa, reagiu à sua demissão com uma surpreendente, para não dizer acrobática, reviravolta. Abdicando da tirania antes que lhe fosse tomada, ele de uma hora para outra emitiu um pronunciamento declarando-se entusiasta da democracia - e tão entusiasta, acrescentou enfático, que apreciaria vê-la implantada em todos os Estados jônios. Isso, é claro, foi como lançar uma faísca na lenha seca; a revolução se alastrou por toda a Jônia; tiranos foram derrubados por toda parte e democracias proclamadas em todos os lugares. Os tiranos que conseguiram escapar de morrer apedrejados correram todos para Artafernes.
Cuja fúria foi, é claro, terrível. Os jônios, ao levantarem a bandeira da democracia, haviam dado um passo fatal e perigoso. Desafiaram as ordens do sátrapa indicado por Dario e derrubaram os regimes impostos por ele, ou seja, haviam decidido declarar guerra ao Rei dos Reis. No primeiro e entorpecido momento de liberdade de que desfrutaram, isso mal pareceu preocupá-los. No entanto, Aristágoras não se deixou enganar. Ele, de fato, não tinha ilusões quanto ao desafio que seus concidadãos agora enfrentavam. Uma superpotência como a Pérsia não era desafiada à toa. O desejo de vingança de Artafernes se mostraria rápido e devastador. Para que as cidades rebeldes - e seus sonhos - não fossem totalmente esmagadas, precisariam, no mínimo dos mínimos, não somente estar unidos na batalha, mas também de uma armada de guerra e de aliados.
Mas como consegui-los? A fértil mente de Aristágoras já vinha formulando uma série de planos cheios de esperanças. O primeiro deles era bem audacioso. Um de seus agentes, pretendendo ser um funcionário leal a Artafernes, temerariamente entrou, a bordo de uma embarcação, num porto a alguns quilômetros ao norte de Mileto, onde a armada dos persas estava aportada, arrebanhou todos os jônios servindo como almirantes ali e rumou para Mileto com a armada. Foi um ousado e espetacular triunfo - e encorajou Aristágoras a também embarcar numa missão secreta por conta própria. No inverno de 499 a.e.c., embarcou num navio de guerra e deixou os grandes ancoradouros de sua cidade. Atravessando a baía para o norte de Mileto, ele pode ver um grande espinhaço de montanha, a crista do monte Mícale, elevando-se do mar. Era Iá que gregos da Ásia, em tempos mais felizes, costumavam se encontrar para celebrar seus vínculos mútuos, no santuário de Panionium - o templo dos jônios. Haveria, talvez, oportunidade ali para conselhos de guerra, assembleias de generais, complôs e estratégias - mas não agora. Aristágoras tinha outros negócios mais urgentes. Ele prosseguiu navegando. Monte Micale e, a seguir, bem a oeste, a ilha de Samos começou a surgir no horizonte. A frente estava a mar aberto - e as correntezas que levavam a Grécia.
499 a.e.c. Inverno em Lacedemônia. Próximo à costa de Githion, o pequeno porto que servia aos espartanos como sua base naval, a ilhota de Cranae era deserta e varrida pelo vento; ainda assim, possuía, para todos que a vissem, indelével associação com o calor do verão e estrelas cintilantes. Foi lá, sob aquele mesmo céu, que Helena e Paris passaram sua primeira noite juntos, um êxtase de entrelaçamento apaixonado que levou, em pouco tempo, a uma conflagração que engolfou tanto o Ocidente quanto a Oriente, e navios de guerra espartanos penetrando as águas de Troia. Um augúrio promissor? Aristágoras, observando a famosa ilha, enquanto seu navio entrava em Githion, naturalmente esperava que sim. Sua missão era nada menos do que recrutar os espartanos para uma segunda grande guerra na Ásia.
Seguindo por uma estrada de pouco menos de 5O quilômetros para a cidade, Aristágoras ensaiava os argumentos com que pensava incentivar seus anfitriões. Os persas eram mais ricos do que poderia vislumbrar o mais avaro dos sonhos; eram perfumados e efeminados; ora, eles até mesmo lutavam de calças! Algum inimigo poderia ser mais tentador? Particularmente tendo os espartanos num de seus reis um Líder com uma tendência comprovada a desfechar ataques preventivos. Cleomenes, mesmo depois do desastre de Elêusis, permanecia sem oposição como o homem forte de Esparta. Demarato, o seu colega de trono, que com o descontentamento que suscitara tanto contribuíra para abortar a campanha ateniense, havia sido colocado de volta no seu lugar. Retornando da Ática, Cleomenes acusou abertamente seu colega monarca de sabotar o esforço de guerra e pressionou a assembleia espartana para que aprovasse uma lei que proibia para todo o sempre que ambos os reis partissem na mesma campanha. Seu rival estava efetivamente confinado ao acampamento. Com efeito, o infeliz Demarato foi deixado tão absolutamente nas sombras que fora reduzido aos desesperados esforços para competir com uma carruagem nos Jogos Olímpicos; pior, ao vencer, de fato gabou-se dessa vitória. Se esse era um comportamento vulgar para qualquer espartano, para um rei, então, em algo que jamais se vira.
Mas, também, Cleomenes carregava cicatrizes de sua malfadada aventura ateniense. Quando se encontrou com Aristágoras para discutir a crise na Jônia, o comandante-em-chefe espartano assustou seu convidado por recusar de pronto seu pedido de ajuda. Supondo que estivesse esperando por um suborno, Aristágoras acompanhou Cleomenes para casa, falando cm números cada vez mais altos. Nem mesmo a presença de Gorgo, a filha de 8 anos do rei, o inibiu - um descuido grave, em vista do hábito incutido desde cedo nas garotas espartanas de fazerem os comentários mais atrevidos:
"Papai!"
Disparou Gorgo, com os olhos brilhando,
"Esse estrangeiro está tentando corromper você. Mande-o embora!"
É Uma demonstração de retidão precoce capaz de tocar o coração de seu pai; mas Cleomenes, mesmo que sua filha não estivesse ali para constrangê-lo, teria dito, sem rodeios, a Aristágoras para partir. O gosto do desastre ateniense ainda amargava sua boca. Pior do que isso, havia noticias chegando do norte sobre estarem os argivos, velhos inimigos, se reorganizando e planejando uma nova investida. Os espartanos necessitariam de todas as suas reservas de efetivos para lidar com a crise que se avizinhava. Cleomenes não tinha a menor intenção de desviar nem um mero batalhão de seus hoplitas para além-mar.
O que não significava que desdenhasse a ameaça persa. Agora um amadurecido estrategista, Cleomenes poderia com certeza reconhecer uma ameaça a Esparta no crescimento das ambições do Grande Rei. Mas não apenas para Esparta - nem mesmo prioritariamente. Vendo diante de si o desconsolado Aristágoras deixar a Lacedemônia, Cleomenes poderia ter tido um sagaz palpite de qual seria o próximo porto onde ele ancoraria. Os jônios, naquele inverno, não eram os únicos a se rebelar contra o Grande Rei. Uma cidade inteira de rebeldes também poderia ser encontrada na Grécia. Os atenienses, tendo buscado a ajuda dos persas em 5O7 a.e.c., haviam tido oportunidade de se arrepender amargamente quanto a sua oferenda de terra e água. No que o próprio Cleomenes poderia apenas entender como a mais refinada justiça poética, Artafernes, aquele que por natureza patrocinava os tiranos, havia ordenado aos atenienses que recebessem de volta Hipias, o Pisistrato exilado. Os atenienses, naturalmente, recusaram. Como resultado, dai para a frente, para todos os efeitos, estavam em guerra contra a Pérsia. E Cleomenes seria a última pessoa no mundo a apoiar os atenienses agora. Haviam criado o problema, que o resolvessem então. E quando, como estava certo de que o fariam, respondessem ao apelo de Aristágoras enviando uma força-tarefa à Jônia, estariam correndo riscos, sofrendo baixas e provando do poder persa como se fossem títeres da estratégia espartana.
Um fato do qual o mais calculista dos atenienses poderia, com desconforto, estar ciente. Mentes sábias entre os aristocratas, conhecendo a vastidão do poder dos persas e experientes na politica real, escutaram com horror Aristágoras e sua ladainha sobre entrar numa guerra; porém, não era mais a aristocracia que controlava a Assembleia. O povo ateniense, ansioso por se vingar de Artafernes por ter ousado aceitar a sua submissão, tentado ainda pela ideia de se irmanar aos seus companheiros de causa do outro lado do mar e inebriado pela perspectiva de um butim fácil, aprovou pelo voto, entusiasticamente, o envio de uma armada de vinte navios para se unir a invasão da Pérsia. A febre da guerra, como Aristágoras animadamente destacou, era uma intoxicação para a qual as democracias pareciam particularmente suscetíveis. Afinal de contas, naquilo que havia fracassado com Cleomenes, um único homem, agora tinha êxito com os atenienses, uma assembleia de 3O mil.
Infelizmente para ele, então, e para os jônios, não havia outras democracias disponíveis. De fato, além de Erétria, um porto de comércio na ilha de Eubéia que há muito via seus interesses sendo ameaçados pela Pérsia, Atenas foi a única cidade em toda a Grécia a engolir a cantilena de Aristágoras. Mas esse dado moderador, longe de obrigar seus cidadãos a uma pausa para reflexão, serviu apenas para alimentar seu já reluzente senso de serem extraordinários e estarem desempenhando uma missão. Na primavera de 498 a.e.c., a primeira força-tarefa da democracia efetivamente saiu do porto de Falero. Dirigindo-se para o leste, ao longo da costa da Mica, logo recebeu reforço do norte, cinco navios de Erétria, e então, proas corajosamente voltadas para a Jônia, afastaram-se da vista dos atenienses. Mas não da mente deles. Onde quer que os atenienses se reunissem naquele inicio de verão, fosse nos bares de Cerâmico, na Ágora ou na Falero, havia um frenesi entre eles, enquanto aguardavam noticias. As semanas se passaram. Então, enfim, algumas noticias começaram a vazar. Foi relatado que os soldados da democracia haviam conquistado um êxito glorioso. Desprezando a possibilidade de sorrateiramente se abrigarem na costa jônia, ousaram avançar diretamente para o coração do poder de Artafernes. Marchando com os jônios e erétrios, ultrapassaram as montanhas que guardavam Sardes, seguiram, sem ser percebidos, por sinuosas trilhas secretas e então, pegando os persas inteiramente de surpresa, desceram de repente para a planície. Artafernes fora forçado a bater em retirada para o seu palácio. A cidade baixa fora incendiada. Uma expedição persa contra Mileto fora obrigada a retornar. Os atenienses haviam cumprido sua missão; e os jônios, graças aos seus heroicos esforços, estavam agora livres para sempre.
Missão cumprida? Era o que parecia. Não demorou muito, entretanto, para que as luminosas noticias da Jônia perdessem o brilho. Sim, Artafernes havia se entocado em seu palácio; mas os gregos, pouco numerosos e sem maquinas de sitio, haviam fracassado miseravelmente na tentativa de romper suas formidáveis muralhas. Além disso, com o fogo se alastrando por toda a parte baixa da cidade, não conseguiram impedir que o templo de Cibele fosse engolido pelo inferno. Tal sacrilégio atemorizou tanto os gregos, já desanimados pelo fracasso em capturar Artafernes, que eles prontamente recuaram para as montanhas. Aos tropeços e fatigados, no caminho de volta para o mar, viram-se perseguidos pelos esquadrões da cavalaria persa. A pouco menos de dois quilômetros de seus navios, foram forçados a se voltar e enfrentá-los. "Fáceis de derrotar" foi como Aristágoras descreveu os persas em meio a suas idas e vindas diplomáticas. Agora, encolhendo-se sob a saraivada desfechada por seus arcos, sufocados pelas nuvens de poeira levantadas por sua infatigável cavalaria, os atenienses haviam descoberto a mortífera verdade. A linha de frente grega, embora recoberta de bronze, começava a ceder. O comandante das forças da Erétria, tentando mantê-la cerrada, fora morto. Os atenienses sobreviventes, separados do corpo principal do exército grego, debandaram para os seus navios, ergueram as velas e fugiram.
Recebendo com preocupada perplexidade a armada derrotada em seu retorno, seus concidadãos finalmente perceberam que Aristágoras lhes havia pregado uma peça. A acusação dos jônios de que os persas eram efeminados e frágeis fora desmascarada, não passava de ilusão. A Assembleia ateniense, descrevendo uma veemente guinada do nacionalismo belicoso para o pavor, rejeitou todos os pedidos que vinham agora da zona de guerra, por mais desesperados que fossem, e proferiu amargas reprovações. De fato, tendo anteriormente vendido a Atenas uma falsa perspectiva, Aristágoras poderia pelo menos destacar um genuíno sucesso; com o incêndio de Sardes, embora tenha provocado um desastre sobre os atenienses, conseguiu espalhar as noticias da humilhação dos persas até bem distante. De Chipre a Quersoneso, as fagulhas da rebelião erguiam-se como chamas, e Artafernes, com o prestigio agora francamente abalado, estava constatando que a tarefa de apaga-las tornara-se desesperada.
Contudo, as atenienses, com a obstinação de um renascido isolacionismo, mantiveram-se resolutamente indiferentes. Para eles, agora, era evidente, depois de uma rápida olhadela sobre o poder persa que sua expedição proporcionara, que todos os planos e ambições de Aristágoras eram castelos de areia. Pior ainda, como descobriram por experiência própria, os hoplitas jônios simplesmente ficavam sem ação diante da velocidade da cavalaria persa - e tanto em assim que, no verão de 497 a.e.c., mal se completando dois anos de revoltas, todos os rebeldes haviam sido varridos para o mar. Somente Mileto, berço da revolução, ainda se mantinha de pé; e embora a armada jônia ainda não tivesse sido derrotada, não havia como conseguir suprimentos nem fazer novos recrutas caírem do céu. Tão sombria a situação se mostrava que Aristágoras, para desespero dos atenienses, resolveu recorrer ao manual do seu tio e viajou para Mircinos, o pequeno domínio privado de Histieu na Trácia, para conseguir madeira para as embarcações e prata para os mercenários. Os habitantes locais, no entanto, se mostraram bem menos dispostos a apoiar o esforço de guerra do que as atenienses; longe de receber bem seu senhor, decidiram tentar uma jogada por conta própria para alcançar a liberdade, e mataram-no a punhaladas. Assim, esquálida e obscuramente, morreu Aristágoras, aquele que instigou a revolta contra o Rei dos Reis - o homem que lhe deu uma Liderança e propósitos genuínos.
A esperança de vitória dos jônios, já vacilante, agora começava a se apagar a ponto de quase se extinguir. Custaria aos persas grande esforço para reconstruir a frota roubada, ainda no começo da revolta, e outros três anos até se sentirem prontos para desafiar os rebeldes a uma disputa pelo controle dos mares. Ainda assim, durante esse tempo, com Aristágoras morto, e ninguém se apresentando para tomar seu lugar, o esforço de guerra jônio parecia paralisado, como se por efeito da catástrofe que sabiam que se aproximava. Líder de facção voltou-se novamente contra líder de facção; classe contra classe; cidade contra cidade. Mais letal em seus efeitos do que qualquer esquadrão de cavalaria, o ouro persa começou a fazer seu trabalho. Derrotistas e conciliadores começaram a se mostrar. A esquadra jônia guardava posição, ainda fundeada entre as ilhas próximas a Mileto, que se mantinha pronta para a batalha, com mais de 35O navios de guerra, um número assustador, exceto que, como haviam se deteriorado com as tempestades de inverno e exalavam vapores com o calor do verão, começavam a cheirar mal, o medo e desespero, um fedor que pairava ameaçadoramente no ar e alcançava bem longe, até a assustada cidade de Atenas.
Porque lá, dando-se conta tanto de que qualquer proteção que os jônios pudessem lhes dar estava sem dúvida condenada quanto que o olho do Rei dos Reis, enxergando longe e impiedosamente, logo sem pestanejar se fixaria em sua cidade, os atenienses também estavam em pânico. A exuberante auto-confiança que havia tomado a democracia com suas primeiras inebriantes vitórias havia rapidamente desaparecido. A derrota na Jônia não fora o único golpe sangrento que os atenienses haviam recebido recentemente. Por já uma década inteira, agora, se viam envolvidos numa importuna guerra contra a pequena, mas atormentadora e enérgica ilha de Egina, um antro, pelo que entendiam os atenienses, de piratas e rapineiros que, para fúria dos mesmos atenienses, ficava a apenas 25 quilômetros ao sul de Salamina, no coração do golfo Saronico - diretamente montada nas suas rotas marítimas. Guiados em sua politica pelos senhores de terras, sujeitos com suas raízes pesadamente fincadas no solo, os atenienses jamais haviam pensado em construir uma armada para o seu uso. Nem, a despeito da incessante movimentação dos corsários de Egina, pensavam em fazê-lo naquele momento. Quem, afinal de contas, iria colocar o dinheiro nisso? Não seriam os pobres, e Obvio; e certamente não seriam os ricos, que tinham a certeza de que deveriam lutar com escudos e lanças em terra seca, como homens com a sua história, homens capazes de comprar uma armadura decente, como sempre fizeram. No entanto, o desdém pelo poder marítimo, embora com certeza tenha preservado a classe dos hoplitas da indignidade de precisar gemer e suar sobre um remo, não contribuiu em muito para o esforço de guerra contra ataques do inimigo que eram forçados, vez por outra, a assistir, impotentes, enquanto todo o seu porto ardia em chamas. Verdade que a enorme baía de Falero não era fácil de se defender; e nem estavam os piratas de Egina em condições de desafiar os atenienses em terra; mas o fato de aquela guerra ser uma chateação, e não uma ameaça terminal, não diminua a súbita sensação da democracia de estar à deriva. Uma questão, em particular, dificilmente deixaria de perturbar os votantes. Se achavam impossível derrotar uma minúscula ilha tão perto da sua costa, que esperanças poderiam ter contra a justificada fúria de uma superpotência?
Enquanto as nuvens negras da aparente invencibilidade persa pairavam ainda mais pesadas sobre a Jônia, essas estranhas sombras vindas do passado começaram a assombrar também os atenienses. No verão de 496 a.e.c., o povo ateniense elegeu como chefe de Estado um homem cujo nome, tão-somente, parecia sugerir um iminente declínio da liberdade. Hiparco não era meramente o filho de um proeminente ministro, Pisistrato, mas até mesmo casara a irmã com Hipias, o tirano exilado. O candidato ideal, talvez, a abrir caminhos para o cunhado negociar termos favoráveis com Artafernes e conseguir o perdão do Grande Rei por haver incendiado Sardes. Na ocasião, a democracia manteve-se firme: a despeito de todas as más noticias do front jônio, Hiparco cumpriu o seu ano de mandato sem se envolver ativamente em colaboração. No entanto, as tentativas de se render, as quais o partido da paz naturalmente preferia chamar de realismo, continuaram a atormentar. Rumores de traição - de medofilismo, adesão aos medos - circulavam por toda a cidade; e, inevitavelmente, como tinham feito por todo um século, as mais graves desconfianças possíveis os ligavam aos Alcmeônidas. Clistenes podia ser o patriarca da democracia, mas poucos duvidavam que seu clã, caso recebesse suficiente incentivo, optaria pela traição. Que nada jamais tivesse sido provado contra eles servia apenas como combustível da paranoia da democracia. O ouro do Grande Rei estava entrando, sem a menor dúvida, vindo de algum lugar e de alguma maneira, e entrando em Atenas. Se não era para um Alcmeônida, então era para outra pessoa qualquer. Os políticos mantinham uma vigilância desconfiada sobre outros políticos, buscando noticias da Jônia com maus pressentimentos e executando manobras para obter vantagens.
Para os eupátridas, é claro, esse era um logo antigo. A conciliação era natural para eles. Como na Jônia, assim também em Atenas, a aristocracia havia muito mostrava-se exageradamente influenciada pelo orientalismo. A idéia de que eles deveriam conter o risco de uma obliteração de sua cidade em vez de preferir uma acomodação com o todo-poderoso Rei dos Reis dificilmente seria algo que eles abraçariam. Entusiastas da nova ordem politica, dando-se conta disso, e atentos à mortalha de fumaça negra que pairava sobre a Jônia, cada vez mais desconfiavam de sua elite e duvidavam de sua lealdade. Em verdade, nem todos os eupátridas poderiam ser vistos como colaboracionistas em potencial: Miltíades, por exemplo, mesmo sendo o maior de todos eles, fora um decidido combatente pela liberdade em Quersoneso desde o inicio da grande revolta dos jônios. Mas mesmo ele governava seus domínios como um tirano: o que não era exatamente uma recomendação para os atenienses cada vez mais preocupados por sua democracia.
Onde, então, poderiam procurar por uma liderança? Talvez em uma nova geração de políticos, de uma nova estirpe. Que não estivesse desgostosa com a ideia do poder popular. A revolução, tão alarmante para a elite eupátrida, parecia prover raras oportunidades para cidadãos de talento dispostos a prosperar. Mal uma década de vida democrática havia se passado e, por exemplo, um jovem de nome Temístocles já podia voltar seus olhos para o cargo mais alto de Atenas, o arcontato, a despeito de vir de uma família sem nenhum pedigree politico óbvio. Embora de berço aristocrata, seu pai nunca demonstrou nenhum interesse par cargos políticos; sua mãe - horror dos horrores - não era nem sequer nascida em Atenas. Numa época anterior, mais chauvinista, um infortúnio dessa ordem seria o suficiente para negar a Temístocles até mesmo sua condição de cidadão: somente as reformas de Clistenes e a necessidade de preencher as dez tribos com todo um complemento de pessoas capazes haviam assegurado a mudança das leis. Como resultado, o sentido de lealdade de Temístocles em relação à nova ordem ganhara um caráter peculiarmente pessoal - e a fizera ansiar por um cargo público tanto quanta um homem em sua agonia final poderia almejar a cura. Temístocles havia percebido, com o cinismo nato que marcaria seu caso de amor com a celebridade, que num Estado governado pelo povo somente poderia haver uma determinada medida de fama.
"Como pode você me dar valor".
Perguntava a seus amigos.
"quando eu ainda não provoquei a inveja de ninguém?"
Os horizontes abertos pela nova ordem cintilaram diante dele como um angustiado desejo.
Em 494 a.e.c., o brilhante e ambicioso jovem celebrou seu trigésimo aniversário - alcançando a idade mínima exigida para, depois de anos de espera, concorrer a eleição ao arcontato. No ano seguinte, ele assim resolveu, faria uma tentativa - e a faria com boa chance de êxito. Podia não ter experiência na vida pública e ter um passado obscuro, mas possuía toda a aparência de uma estrela. Pescoço forte, cabelos cortados rente, rosto e corpo sólidos, Temístocles tinha a aparência, assim julgou a posteridade, de um verdadeiro herói, alguém indômito, indestrutível, dotado de grande força. No entanto, ele era simultaneamente, com sua inteligência, o exato oposto do monte de músculos: seu raciocínio, infinitamente ágil e sinuoso, haveria de conquistar a fascinação de seus concidadãos - e também atrair preocupações. Não havia arte maléfica exigida de um politico sob a nova forma de governo ateniense da qual Temístocles não se mostrasse seu mestre: ele era capaz de instigar a discórdia, formar uma rede de apoios, esquivar-se. Acima de tudo, a mais crucial, sabia como se tornar sempre visível. Mais do que viver das propriedades da família, por exemplo, escolheu estabelecer-se abaixa de Cerâmico, junto do Portão dos Enforcados, onde eram despejados os corpos dos criminosos e dos suicidas; um endereço insalubre, é claro, mas também - e foi isso que atraiu Temístocles - a uma distância que se podia vencer à pé da Ágora. Preocupado por não poder contar com pessoas das classes mais distintas coma visitantes desse lugar enfermiço, começou a convidar celebres músicos para ensaiar em sua casa; dedicado a fazer amigos e a influenciar pessoas, instalou-se como um advogado, o primeiro candidato da democracia a tentar mostrar-se habilitado a um cargo público pela prática da lei. Acima de tudo, naturalmente afável e gregário como era, ele cortejou os pobres; e estes, não estando habituados a serem bem tratados, devotadamente lhe retribuíram com seu amor. Percorrendo as tavernas, os mercados, as docas, indo debater onde nenhum outro politico jamais estivera, certificando-se de não esquecer o nome de nenhum votante, Temístocles voltou seus olhos para um eleitorado radicalmente novo.
Não que a ambição fosse sua única motivação. Se nada do que Temístocles fizesse era inteiramente divorciado de seus interesses, ele havia enxergado nos pobres não meros votantes, mas a salvação do futuro da cidade. Uma idéia espantosa para seus pares; no entanto, foi a genialidade de Temístocles que conseguiu ver mais longe e vislumbrar precisamente essa possibilidade, para o bem e para o mal. Mais lúcido do que qualquer um dos que eram mais velhos do que ele, o aprendiz de politico reconheceu que a melhor chance de sobrevivência de sua cidade estava não na terra seca, mas no mar - e que qualquer navio de guerra dependeria, para se mover, da energia dos músculos dos remadores. Mas seria difícil convencer quem quer que fosse de tal prognóstico, uma vez que foi formulado numa época em que Atenas mal tinha um porto, quanto mais uma frota de guerra. No entanto, Temístocles, olhar fixado, à moda dos visionários, em objetivos a longo prazo, não desanimava. Redigindo seu manifesto, começou a defender a urgente demolição das docas existentes e sua substituição por um novo parto em Pireu, a península rochosa situada logo depois da praia de Falero. A linha da casta ali tinha não uma, mas três enseadas naturais, o suficiente para qualquer frota, e que poderia ser fortificada sem grandes dificuldades. Verdade que ficava cerca de três quilômetros mais distante cidade do que Falera, mas Temístocles defendeu, apaixonadamente, que esse seria um pequeno preço a se pagar pelas imensas vantagens que traria um novo parta em Pireu: um porto seguro para a sempre crescente frota mercante ateniense; um centro de comércio para competir com Corinto e Egina; a imunidade contra os piratas de Egina. E talvez, no tempo devido, se o dinheiro pudesse ser levantado e as circunstâncias mostrassem essa necessidade, então talvez, quem sabe, ali poderia servir muito bem, ainda, como base naval...
Temístocles, que não desejava de modo algum sobressaltar os proprietários de terras com ariscas conversas sobre poder marítimo, decidiu não martelar nesse último ponto. Na entanto, os ecos, na primavera de 494 a.e.c., ressoavam por toda Atenas. As noticias vindas do Oriente se agravavam a cada dia. A frota de guerra persa finalmente começava a se movimentar. Os lideres jônios, assim se relatou, buscando esconderijo no interior, no pico do monte Mícale, depois sorrateiramente cruzando sua encosta como refugiados em sua própria terra, reuniram-se em Panionium, o há muito abandonado templo comunal. Lá, removendo as ervas daninhas, resolveram enfrentar os persas e apostar todo o seu futuro num único e desesperado lance. A revolta, como seus lideres percebiam angustiados, estava agora no fio de uma lâmina: de um lado, a liberdade - do outro, a escravidão, e, alias, como escravos fugitivos. Nenhuma escolha fora deixada aos jônios a não ser se porem como tripulantes de todos os navios de guerra que pudessem encontrar, e apostar nisso suas últimas reservas. Contornando o cabo de Mícale, seguiram navegando em direção ao sul, rumo a Mileto e à pequena ilha de Lade. lá, a cerca de três milhas dos grandes portos da cidade, instalaram sua base. Diante deles havia seiscentos navios inimigos - e a perspectiva de uma batalha decisiva.
Ainda assim, por dias, como se estivessem assustados diante da imensa proporção do combate que tinham pela frente, nenhum dos lados se aventurou a adiantar-se; e Os nervos, entre os jônios, entre os atenienses, e em toda a Grécia, começaram a tremer. No entanto, o impasse permanecia; e por toda a costa esperava-se ansiosamente por notícias.
Então, mais perto do verão, novidades enfim chegaram, tão sombrias e dolorosas como sempre se temera. Os jônios, levados à fome na pequena ilha que tinham como base, mostraram-se presa fácil dos agentes de seu inimigo. Quando sua frota, avançando para enfrentar um súbito ataque persa, saiu da bala de Mileto, sua linha de frente imediatamente se rompeu. Alguns capitães, de Samos, a ilha defronte do cabo Mícale, acertaram um acordo a parte com os persas não apenas para salvar a pele, mas também para pôr a perder a cidade sob cuja sombra o comércio de sua cidade vivia havia tanto tempo. Enquanto esquadrões inteiros imitavam o exemplo dos renegados e começavam a virar as costas para a batalha, a derrota, para o resto da armada jônia, parecia inevitável - e a posição de Mileto, insustentável. Com cadáveres coalhando seu porto, surtos de doenças nas ruas e todas as esperanças de vitória agora naufragadas nas águas que banhavam Lade, os milésios logo sucumbiram ao assalto das máquinas de sítio dos persas; e Artafernes, em 494 a.e.c., tomando a cidade, realizou uma terrível e cruel vingança, quase ao estilo assírio. A jóia do Egeu, no passado predileta aliada do rei persa, foi completamente incendiada. Seus homens foram chacinados; suas mulheres, estupradas; seus filhos, castrados; suas filhas, escravizadas. Enquanto os infelizes sobreviventes, acorrentados à traseira de carroças com pilhas de tesouros tomados de seus templos sagrados, começavam sua longa e penosa jornada rumo aos campos de trabalho e haréns da Pérsia, viram colonos passando na direção oposta, leais aliados que receberam a posse daquelas terras por concessão de Artafernes. Essa seria a sorte que o Grande Rei jurou que se abateria sobre todos os que se rebelassem contra seu poder; e o que o Grande Rei jurava que faria, sem dúvida, seria executado.
E para onde agora voltar o olhar? Será que a sua raiva conheceria limites? Se as noticias da aniquilação de Mileto foram recebidas em Atenas e Erétria com puro terror, por seus vizinhos também correu um calafrio de apreensão. Preocupadas, com suas próprias disputas, como sempre estiveram, até mesmo a mais paroquial das cidades gregas estava agora obrigada a erguer seu olhar para mais longe e reconhecer no poder persa um fator novo e prodigioso em suas considerações. Mas com que sentido? Havia muitas opções em aberto - e nem todas gloriosas. Os argivos, por exemplo, cujo entusiasmo pela liberdade era de longe secundado por sua aversão aos espartanos, já haviam tomado uma decisão muito antes da queda de Mileto. Forjando uma de suas farsas genealógicas que há muito era característica de sua politica externa, os embaixadores argivos foram até Sardes e informaram ao espantado Artafernes que os persas, de fato, eram descendentes - ruflar de tambores - de um antigo rei de Argos. Foi então pensada para a ocasião uma teoria totalmente falsificada, a não ser pelo fato de que o suposto ancestral, sacado do nada pelos argivos, era um matador de górgonas e salvador de princesas, um herói chamado Perseu, que poderia mesmo ter sido ancestral dos persas. Um acordo sujo foi firmado, sem maiores cerimônias, uma vez que tanto os persas quanto os argivos tinham excelentes razões de se permitirem alimentar a fantasia de que eram parentes; o primeiro poderia prever que passaria a dispor de uma boa base para se instalar no Peloponeso; o segundo esfregaria as mãos de contentamento ao sonhar em ver Esparta reduzida a escombros pelo seu primo distante, o Rei dos Reis.
Os espartanos, a despeito de sua antipatia pelos persas remontar da maneira desdenhosa como foram tratados por Ciro, há muito se limitavam a enxergar a pretensão dos argivos de se colocarem como parentes dos bárbaros mais como patética do que ameaçadora, Tal postura, no entanto, mudou rapidamente, no que as sombrias notícias começaram a chegar da Jônia. Um persa vitorioso, uma Argos revanchista: era uma perspectiva que parecia surgir dos piores pesadelos dos espartanos. Cleomenes, tendo antes se esquivado da chance de combater os bárbaros na Jônia, agora vislumbrava uma maneira de lhes aplicar um golpe, visando muito mais agradar aos seus conterrâneos: atacar Argos. No verão de 494 a.e.c., quando as forças persas ainda estavam pulverizando os rebeldes na Jônia, Cleomenes conduziu seus conterrâneos para o norte, em sua missão de aniquilação própria. Não permitiria que nada ficasse em seu caminho. Informado por seus videntes que um deus fluvial de Argos amaldiçoaria os espartanos se eles atravessassem suas águas, Cleomenes disparou desdenhoso:
"Mas é muito patriótico da parte dele!"
E mais desdenhosamente ainda, desviou-se para outro caminho. A seguir, conseguindo destroçar o exército argivo numa grande batalha junto a um vilarejo de Sepéia, e perseguindo os sobreviventes até um arvoredo sagrado, chamou individualmente pelos argivos, um por um, dizendo-lhes que seus resgates haviam sido pagos. No que iam deixando o santuário, Cleomenes os mandava executar. Quando os sobreviventes remanescentes finalmente perceberam o truque assassino, Cleomenes, friamente, ordenou a incineração do santuário sagrado.
Um crime chocante, com certeza - tão chocante, nas devidas proporções, por ter sido cometido por um grego, quanto à devastação de Mileto. Mesmo que Cleomenes, para se poupar da acusação de sacrilégio, tenha ordenado a hilotas que queimassem o arvoredo, a fumaça negra que se elevou do holocausto, oleosa e contaminada de carne humana, ofereceu um medonho indicativo para as demais cidades das intenções de Esparta. Nenhuma ameaça contra a Lacedemônia seria tolerada. Argos, privada agora de toda uma geração e de seu território, deixada tão frágil que até mesmo a pequena Micenas seria agora capaz de escapar ao seu jugo, lá estava como um mutilado exemplo do que poderia resultar de se desafiar o poder de Esparta. Os persas também poderiam se considerar avisados. Qualquer invasão seria enfrentada com uma resistência implacável. Esparta estava determinada a manter seu território e a lutar, não importando contra quem.
Parecia, então, que Atenas não teria de enfrentar sozinha o Rei dos Reis, afinal de contas. Já os atenienses, no inverno de 494 a.e.c., pareciam paralisados pela mesma indecisão que afetou de modo tão letal seus primos jônios. Talvez estivessem sendo abalados pela gravidade crescente das noticias que chegavam do outro lado do Egeu. A Jônia, no passado tão próspera, tão brilhante, tão linda, segundo os relatos que chegavam, havia se tornado uma terra devastada. Ervas daninhas cresciam nas pegadas dos esquadrões de retaliação persa; fugitivos que haviam se refugiado nos morros estavam sendo caçados com cães e aprisionados com o uso de redes; aqueles poucos milesios que não foram deportados, restou ficarem entre as ruinas enegrecidas do berço da filosofia, ainda trêmulos. A possibilidade de terem destino semelhante era quase demasiada para os atenienses suportarem. Na primavera de 493 a.e.c., quando uma tragédia foi encenada na Grande Dionisíaca, não baseada numa historia tirada da mitologia, como esperava a platéia, mas diretamente da queda de Mileto, a plateia inteira prorrompeu em lágrimas. A tragédia foi prontamente proibida e o dramaturgo, como castigo por ter inventado tal peça de agitação e propaganda e consternado os cidadãos daquela maneira, foi pesadamente multado. A reação dos atenienses à ameaça dos persas parecia ser enterrar a cabeça na areia.
E, no entanto, assim como em seu íntimo sabiam que a força de invasão do Grande Rei estava se aproximando, sabiam que sua chegada os deixaria com apenas duas opções, efetivamente: aquiescer, colaborar e se render - ou lutar. A escolha não poderia ser adiada por muito tempo. Havia indícios disso por toda a parte. Logo que os frequentadores do teatro enxugaram as lágrimas, outra lembrança vivida das nuvens de tempestade que se reuniam sobre o Oriente alcançara o porto de Falero. Miltíades chegou com o rastro de uma tênue gloria; tendo lutado contra os bárbaros muito mais heroicamente do que qualquer ateniense, escapou por um fio da vingança da armada persa, conseguindo evadir-se de uma esquadra lotada especialmente para intercepta-lo e que o perseguiu por todo o caminho até Atenas. Mas ele também tinha inimigos perto de casa: odiado por seus pares e temido pelo povo, seu glamour parecia não se ajustar bem a uma democracia em pé de guerra. Logo que desembarcou, foi processado "por sua tirania em Quersoneso". O julgamento foi marcado para o ano seguinte.
O veredicto implicava muito mais do que somente o destino de Miltíades. Será que os atenienses teriam a coragem de absolver um homem que por tanto tempo temeram como um tirano em potencial, mesmo tendo ele um histórico de luta contra os medos, algo de que os atenienses não tinham nenhuma experiência, ou sucumbiriam, em vez disso, aos mais imediatistas - e tradicionais - prazeres do fracionismo? Cada cidadão tinha seu ponto de vista; mas aquele com a maior influencia sobre os demais ao que tudo indicava era o arconte-ehefe, o chefe de Estado do ano. Isso bastou para aguçar as eleições de 493 a.e.c.; e quando se evidenciou a Vitoria de um candidato firmemente identificado com a anti-conciliação, Miltíades, sem dúvida, deve ter soltado um profundo suspiro de alivio. Verdade, Temístocles tinha muito o que invejar, e a tentação de trabalhar pela ruina de um rival carismático deve ter sido considerável; mas ele resistiu a isso. Miltíades, levado a julgamento, foi absolvido. Pouco depois, foi eleito chefe militar de sua tribo - um dos dez generais encarregados de aconselhar e dar apoio ao supremo comandante ateniense, o arconte de guerra. Isso, tão certo como o incêndio do arvoredo de Sepéia, deve ter parecido aos espiões persas como uma declaração de intenções hostil. Sem dúvida, serviu para proporcionar a Miltíades uma influência mais critica na formulação de uma política de defesa da cidade. A democracia, assim parecia, finalmente tomar a sua decisão. Os atenienses, assim como os espartanos, comprometeram-se com a luta.
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Antecedentes
Ninguém em Atenas tinha a menor dúvida de que o Grande Rei estava pessoalmente resolvido a destruir a democracia. Quando Dario recebeu a noticia de que Sardes estava ardendo em chamas, foi dito que ele exigiu que lhe trouxessem seu arco, o assustador símbolo do poder real, e disparou uma flecha para o alto, orando a Ahura Mazda para que lhe fosse concedido castigar os atenienses como esses mereceriam. Tamanha foi sua fúria que o apetite real, segundo se supôs, jamais se recuperou da comoção. Dia após dia, assim se comentava, ano após ano, toda vez que Dario se sentava a mesa para comer um servo sussurraria bem baixo em seus ouvidos: "Meu senhor, lembre-se dos atenienses."
Não era pouco, como proeza, para um povo até então obscuro, habitando um dos extremos do mundo, ser mencionado diariamente no mais exclusivo recanto do santuário de Persépolis. Os atenienses, ao mesmo tempo que sentiam calafrios diante da ameaça do Grande Rei, também poderiam sentir um certo arrepio de desesperado orgulho ao pensar nisso. Com efeito, o fato de Dario significativamente não ter vindo a toda pressa da Ásia para cair em cima deles, sugeria que poderiam ter algo do que se vangloriar. Sem dúvida, a verdadeira dimensão do império do Grande Rei e as exigências que desviavam sua atenção eram algo completamente distanciado da compreensão da maioria dos gregos. Cleomenes, informado durante a sua abortada reunião com Aristágoras de que Susa ficava a mais de três meses de jornada atravessando o mar, ficou assombrado, sem acreditar; e, no entanto, o leste de Susa, os domínios do Grande Rei, também levariam, por sua vez, três meses para a travessia. Seria um pequeno consolo para os atenienses, enquanto esperavam a hora de sua destruição, mas ensinar-lhes uma lição não seria a única e nem mesmo a mais urgente das preocupações de Dario.
Mas isso não queria dizer que não seria de todo uma preocupação. A memoria do Grande Rei era espaçosa e tinha alcance global. Não haveria crise no extremo mais distante da qual ele não se mantivesse estreitamente informado, Embora a grande extensão de seus domínios representasse considerável empecilho, a engenhosidade de seus servos estava sempre tentando encurta-la. Ninguém podia deixar de se surpreender com a rapidez das comunicações dos persas. Faróis, flamejando de posto em posto de vigilância, eram capazes de levar ao Grande Rei a informação de um incidente qualquer quase no exato instante em que acontecia. Em regiões mais montanhosas do império, e particularmente na própria Pérsia, onde os vales proporcionavam excelente acústica, informações mais detalhadas poderiam ser trazidas por uma cadeia de gritos. Os persas, escolados nas artes do controle da respiração e no uso máximo de seus pulmões, eram notórios por possuírem as vozes mais altas do mundo; muitas mensagens, ecoando pelos penhascos e ravinas, poderiam ser transmitidas em um dia atravessando terrenos que um homem á pé não cobriria em menos de um mês. Como os persas bem entendiam, num nível até então incomparável, informação era domínio. Controle a informação e se controlará o mundo.
A base mais fundamental da grandeza dos persas não era, portanto, sua burocracia, nem mesmo seus exércitos, mas suas estradas. Precisos filamentos de poeira e terra prensada, eram elas que proviam a imensidão do corpo imperial com um sistema nervoso ao longo do qual informações fluíam permanentemente, de sinapse em sinapse, indo e vindo do cérebro. As distâncias que tanto atordoaram Cleomenes eram rotineiramente vencidas pelos mensageiros reais. Todas as noites, depois de um árduo dia de cavalgada, o mensageiro encontraria um posto de descanso esperando por ele, equipado com cama, provisões e cavalos descansados, prontos pela manhã. Uma mensagem muito urgente, trazida a galope através de tempestades e cruzando a madrugada, poderia chegar a Persépolis, vinda do Egeu, em duas semanas. Era um incrível, quase mágico, nível de velocidade. Nada comparável jamais fora conhecido ate então. Não é de admirar que o controle do Grande Rei de um tal serviço - a supervia de informação original - teria espantado extremamente seus súditos e os deixado atordoados, vislumbrando então uma inequívoca dimensão e manifestação do poder persa.
O acesso a essas vias era ferozmente restringido. Ninguém poderia por o pé numa estrada real sem um passe, um viyataka. Considerando que todo documento de viagem era emitido diretamente de Persépolis ou pelo gabinete de um sátrapa, a sua mera posse indicava prestígio. Na verdade, era no viyataka que essas manias gêmeas do imperialismo persa, por papelada e rígida estratificação social, com toda a perfeição se reuniam e combinavam. Não havia melhor maneira para um funcionário de descobrir seu preciso lugar de importância na hierarquia imperial do que chegar a uma estação de descanso a noite, entregar seu viyatakaao administrador do lugar e contar as rações que, em troca, lhe seriam entregues. Se fosse um dos grandes homens do reino - digamos, um dos co-conspiradores, colegas de Dario -, então ele e sua escolta poderiam receber até cem quartos de galão de vinho. Caso estivesse situado no ponto mais baixo da cadeia de cargos, poderia se ver, por sua humilhação, recebendo uma ração de vinho menor do que um cavalo particularmente favorecido. Os persas achavam o viyataka tão satisfatório como base para a ordenação do mundo que não apenas funcionários e soldados, mas também mulheres e crianças, e até mesmo pássaros, se viram definitivamente marcados no esquema imperial pelas cédulas de ração. Um pato, por exemplo, se estivesse sendo engordado para a mesa real, poderia esperar engolir um quanto de galão de vinho todos os dias. Uma menina, em comparação, teria de se contentar com um por semana.
Homens, mulheres, crianças, cavalos, aves aquáticas: ninguém poderia eludir as meticulosas prescrições dos burocratas de Dario. Não era apenas no interior das cortes dos sátrapas que o Grande Rei tinha seus olhos, sempre vigilantes, examinando tudo, farejando pistas. Todas as transações conduzidas nas estações de descanso requeriam um formulário a ser selado tanto pelo administrador quanto pela pessoa que recebia, e então enviado para os arquivos centrais em Persépolis. Tao rigidamente controlados eram os itinerários dos viajantes nas estradas reais que aqueles que se retardavam ou deixavam de chegar num destino determinado na data marcada, poderiam ter certeza de que perderiam suas rações da noite. Aqueles que viajavam nas estradas sem um viyataka não apenas passariam fome, mas seriam perseguidos e mortos. Mesmo o correio, se fosse despachado sem a aprovação do rei ou de um sátrapa, seria destruído. Apenas os mais espertos poderiam ter alguma esperança de escapar à vigilância das patrulhas das estradas. Histieu, por exemplo, em 499 a.e.c., desesperado para se comunicar com seu sobrinho, na tão distante Mileto, sabre os planos dele de uma revolta, raspou a cabeça de seu escravo mais confiável, tatuou uma mensagem em seu crânio liso e pacientemente esperou até que o cabelo crescesse outra vez. "Então, quando o escravo estava com cabelo de novo, Histieu enviou-o para Mileto com ordens de não fazer coisa alguma a não ser dizer a Aristágoras para raspar sua cabeça e examinar o que então seria revelado. Tal foi a inventividade necessária para ludibriar o viyataka.
Como, pois, os inimigos do Grande Rei poderiam pensar em competir com os prodigiosos serviços de inteligência de Dario? Não muito, era a resposta. Os rebeldes jônios, por exemplo, deslocados na borda mais distante da Ásia, tiveram apenas uma vaguíssima noção das intenções e movimentações das tropas pensas - uma falha muito mais salientada ainda pela surpreendente capacidade de Dario, a cerca de 25O quilômetros do palco de guerra, de inteirar-se dos acontecimentos quase imediatamente. Foi ele que, por exemplo, nas primeiras semanas de 494 a.e.c., pessoalmente formulou os planos pana a ofensiva final que algumas semanas mais tarde resultaria na grande vitória persa em Lade e o saque de Mileto. As informações de que Dario dispunha naquela ocasião foram particularmente exatas e detalhadas, fornecidas por seu principal especialista militar em assuntos gregos, um general chamado Dátis, que veio da Jônia viajando diretamente pela via expressa para mantê-lo a par das últimas noticias do front. Nada poderia ter indicado melhor a suprema importância atribuída ao Grande Rei do que um homem da estatura de Dátis ter feito pessoalmente a longa jornada, vindo de Persépolis. Dátis - como Harpago, originalmente o conquistador da Jônia, era um medo. Mas era também, no mundo competitivo dos bilhetes de ração e salvo-condutos, um personagem tão importante quanto os mais importantes entre as persas. Sua ração diária de vinho era de setenta quartos de galão; um suprimento de bebida diante do qual a própria irmã do rei não teria virado o nariz. Mas se tratava da devida recompensa para uma capacidade e um histórico militares excepcionais.
Na verdade, os serviços de inteligência persas nem sempre tinham as coisas sob controle, nem Dario poderia ter um faro infalível para talentos. Uma das piores falhas aconteceu poucos anos antes da chegada de Détis a Persépolis, quando o Grande Rei, numa surpreendente demonstração de erro de julgamento, mandou Histieu de volta a Sardes como seu agente secreto pessoal. Espantado por ter de receber, e bem, o dissimulado milésio em seu quartel-general, mas sem querer ofender seu irmão, Antafernes revelou pana Histieu, sem pestanejar, toda extensão de suas suspeitas, esperando assim intimidar o indesejado hospede, evitando que ele se passasse prontamente para o inimigo.
"Não vamos perder tempo com meias-palavras."
Ameaçou o sátrapa.
"Aristágoras pode ser um problema agora, mas foi você que o pôs lá."
Histieu, empalidecendo, compreendeu o recado, porém fugir de Sardes naquela mesma noite dificilmente seria algo inerente a sua capacidade de dissimulação. Pescando nas aguas turvas dos círculos de espionagem com consumada habilidade, revelando a si mesmo primeiro a um lado e depois ao outro como um agente duplo, buscou fazer com que os métodos de Artafernes, sempre mais sinuosos, se voltassem contra seu próprio perpetrador, ousando até mesmo fomentar uma revolta contra a corte do sátrapa. Ao que parecia, os gregos não eram o único povo que poderia ser cindido por disputas entre si: a crise logo assumiu um vulto tão ameaçador que Artafernes, lutando freneticamente para manter sua autoridade, foi forçado a um expurgo de grandes proporções de seus concidadãos. Tamanha impiedade, no entanto, para a sorte do sátrapa, foi na conta exata para impedir a desintegração do comando provincial persa - e, é claro, daquele momento em diante Histieu passou a ser um homem marcado. Nenhum episódio, em todo o esmagamento da revolta jônia, poderia ter dado a Artafernes maior prazer do que a captura, um ano depois da vitória em Lade, do traiçoeiro ex-favorito de seu irmão. Acorrentado e arrastado para Sardes, o irreprimível Histieu serenamente insistiu em ser enviado de volta ao Grande Rei - uma exigência que Artafernes atendeu ciosamente, empalando-o e então enviando, por um mensageiro expresso, sua cabeça decepada e mergulhada em sal para Susa.
A execução de Histieu e a paralela fuga de Miltíades para Atenas marcaram efetivamente o final da resistência jônia. Mas não do trabalho de Artafernes. Já tendo ganhado a guerra, era agora sua tarefa, igualmente árdua, conquistar a paz. A jônia fora esmagada por seis verões de guerra selvagem. Os campos estavam sem cultivo; os navios, sem uso, estragavam-se em portos de águas estagnadas; estradas haviam desaparecido sob o capim; vilarejos e cidades inteiras, reduzidas a ruinas carbonizadas, haviam sido abandonadas. Padecendo de fome, os jônios escavavam em desespero os poucos campos que ainda não tinham sido arruinados pelas sarças e pelo mato; e embora sangrados como foram em quase todas as suas energias e potencial humano, logo começaram a procurar por suas armas outra vez. Artafernes deu mostras de que não toleraria nada disso e interveio imediatamente. Representantes de vários estados jônios foram convocados a Sardes e, sem rodeios, receberam ordens de prestar um juramento de perpétua amizade. Dali para a frente, todas as disputas de fronteira não seriam mais resolvidas pelos embates armados tão tradicionais entre os gregos, mas por arbitragem apoiada diretamente na sanção das forças gregas. Como até mesmo os jônios reconheciam, tratava-se de uma evolução que não seria inteiramente desvantajosa para eles. Para proteger seus súditos de seus próprios instintos, tão malignos, para promover a estabilidade, para facilitar a obtenção de um fluxo regular de tributos: isso, então, como sempre fora, permanecia atribuição mínima de um sátrapa. O tenor já tendo servido aos seus propósitos, Artafernes podia agora se dedicar, com um suspiro de alivio, a conquista dos corações e mentes de seus súditos. Bastante ciente do desagrado dos jônios em relação a qualquer tipo de Tirania, ele estava inclusive preparado para condescender, em determinadas circunstâncias, a preferencia deles pela democracia. Afinal, contanto que a paz do rei fosse mantida, importava muito pouco como os gregos haviam decidido governar a si mesmos.
Essa indulgência, é claro, não era estendida àqueles que permaneciam em armas. Até mesmo enquanto Artafernes aplicava na tão ferida Jônia o bálsamo de um acordo recordado dali para a frente por muito tempo como um modelo de imparcialidade e justiça, o continuo desafio dos atenienses permanecia como uma ferida aberta. E também uma permanente ameaça. Quanto mais fosse protelada a punição de Atenas, maior era o risco de que Estados terroristas pudessem proliferar através de todos aqueles ermos montanhosos e inacessíveis da Grécia: uma perspectiva de pesadelo para qualquer estrategista persa. No entanto, a geopolítica estava longe de ser a única motivação ressoando na consciência do Grande Rei. Não era a toa que Ahura Mazda entregara o mundo em suas mãos. Não havia tarefa mais sagrada atribuída a ele do que a obrigação de devastar, onde quer que pudessem proliferar, as fortalezas da Mentira. Atenas era um ninho de rebeldes, para deixar as coisas claras - mas a cidade também mostrava abertamente ser algo ainda mais sinistro, um lar de demônios, daiva, de falsos deuses que haviam tomado o rumo da rebelião contra o Senhor Mazda, seguindo o caminho da cólera, adoecendo a vida das pessoas. Somente o fogo, do mesmo modo como já havia purificado e purgado os altares dos jônios, poderia redimir da Mentira a cidade de Atenas e seus templos. Para o bem espiritual do universo, assim como para a estabilidade da Jônia, todo o Egeu deveria ser transformado num lago persa - e sem demora. Posto de descanso na nova e arrebatadora fase da expansão imperial e guerra santa: a queima de Atenas prometia tomar-se ambas.
Mas como melhor alcançar isso? Duas ações se impunham: completar a conquista dos acessos a terra ao longo do litoral do norte do Egeu e, simultaneamente, sob ameaça, forçar as cidades da Grécia a se render. Na busca do primeiro objetivo, uma armada e um exército descansados foram enviados para a Trácia, na primavera de 492 a.e.c., com ordens de estender o domínio persa ainda mais para oeste, penetrando a Macedônia e talvez prosseguindo além. O comandante, um arrojado e jovem nobre chamado Mardônio, chegou a frente oeste já banhado no brilho dourado do carisma natural. Filho de Gobrias, o amigo mais próximo de Dario entre os Sete, sua intimidade com a Casa Real fora confirmada pelo casamento com a filha do Grande Rei. Mas Mardônio não era apenas prodigiosamente bem relacionado; ele era também um general de autêntico élan e muita perspicácia. Alexandre, rei da Macedônia, logo se curvou ao inevitável: a Macedônia fora formalmente absorvida pelos domínios do Grande Rei, cujo alcance agora estendia-se até o sopé do monte Olimpo Verdade, a Vitória ainda mal havia perdido o brilho do novo quando a frota inteira de Mardônio naufragou numa tempestade nas águas próximas ao monte Athos, e o próprio Mardônio, desfechando um ataque demasiadamente exuberante contra uma problemática tribo montanhesa, foi gravemente ferido - mas esses reveses não seriam o bastante para minar o prestigio persa. A Macedônia, sem duvida, permanecia garantida para o Grande Rei; Alexandre, com muita prática em ser o próprio catavento, sabia precisamente dizer para onde soprava a situação.
Mas a questão-chave para os estrategistas era se os gregos do sul se mostrariam igualmente sensíveis ao vento da politica. Em 491 a.e.c., um ano depois da conquista da Macedônia, embaixadores foram mandados numa viagem exploratória pela Grécia, com exigências de água e terra. A maioria das cidades, para satisfação dos persas, apressou-se a atender aos embaixadores. Algumas, entretanto, recusaram-se. Duas em particular não poderiam fazer sua adesão as trevas da Mentira, e a daiva, aquelas sementes de maus propósitos, de forma mais clara. Em Atenas, não apenas as exigências do Grande Rei foram rechaçadas, sem major cerimônia, como os seus embaixadores, em flagrante desrespeito as Leis internacionais, foram levados a julgamento diante da Assembleia, condenados e executados. Talvez - dado que Atenas era comprovadamente um Estado terrorista e que o homem que havia incentivado a execução dos diplomatas era Miltíades, um notório fugitivo da justiça do Grande Rei - essa afronta não representasse surpresa alguma. Mais chocante, e mais perturbador por conta de suas implicações, foi que os espartanos resolveram se recobrir da escuridão de um sacrilégio ainda mais grave. Não houve julgamento para os embaixadores do Grande Rei em Esparta; em vez disso, pendurados por sobre um poço, a eles foi dito, antes de serem afogados, que se queriam terra e água, poderiam eles mesmos ir recolhê-las.
Isso posto, em seu franco desafio, sua ironia brutal e seu desdenhoso desrespeito às convenções religiosas, foi um espetáculo com as marcas características de Cleomenes bem aparentes. A democracia ateniense parecia, afinal, ter chegado a um acordo com o rei espartano que por duas vezes tentou destruí-la. Quando os atenienses, ao descobrirem que Egina havia dado terra e água ao Grande Rei, enviaram a noticia para Esparta, Cleomenes viajou para lá pessoalmente para repreender os medofilos. Os príncipes-mercadores de Egina, no entanto, dependentes do comércio internacional, relutavam em ofender a grande superpotência do Oriente - mesmo que o rei espartano lhes cobrasse isso. Procurando um caminho por onde flanquear Cleomenes, apelaram para Demarato, seu colega no trono. Demarato, grato por uma oportunidade de apunhalar seu odiado rival pelas costas mais uma vez, ficou contente em prestar seu apoio. Os eginetas foram encorajados a firmar posição. Cleomenes foi repelido.
Embora disfarçando ao máximo sua intervenção no assunto, Demarato não foi discreto o suficiente para impedir seu colega de farejá-lo. O contragolpe de Cleomenes, desfechado em seguida ao seu retorno a Esparta, foi brutal e assestado com sagacidade. Resolvido agora a exterminar de uma vez por todas seu insuportável colega, Cleomenes aproximou-se do primo de Demarato, um desprezível ninguém chamado Leotícides, e prometeu a ele o trono caso ele ajudasse a derrubar seu parente. Não foi surpresa que Leotícides tenha agarrado a oportunidade. Como era do conhecimento de seus inimigos, Demarato tinha um esqueleto no armário esperando para ser trazido para fora. Emaranhadas que fossem as circunstâncias do nascimento do próprio Cleomenes, as do seu colega de trono não eram tão melhores assim. A mãe de Demarato, a menina no passado sem atrativos, mas agraciada com a aparição de Helena, havia se tomado tão linda que o rei de Esparta, dominado pelos seus encantos, usou sua real influência para sequestrá-la do marido. Sete meses depois, a nova rainha dera a luz um filho. Mas seria o pai o rei ou um plebeu? Uma questão ha muito colocada, assim se poderia acreditar, pelo fato de que o filho da rainha - o próprio Demarato - estava no trono havia 24 anos. Um mero detalhe para Cleomenes, no entanto; e quando Leotícides, levantando o problema da legitimidade da filiação de Demarato, propôs levar o caso para ser arbitrado em Delfos, já haviam sido providenciados judiciosos subornos para os sacerdotes.. garantindo assim a cumplicidade de Apolo.
O oráculo obedientemente se pronunciou contra Demarato. Em Esparta ele foi formalmente deposto pelos éforos, e Leoticides, dócil e venal, tomou o seu lugar. Acompanhado de seu novo colega, Cleomenes prontamente se dedicou a enfrentar os eginetas, que, dessa vez, preferindo não ousar enfrentar dois reis espartanos, capitularam imediatamente. A pedido de Cleomenes, até mesmo concordaram em entregar reféns como prova de sua boa vontade para com seu pior inimigo, os atenienses. Nenhuma força de invasão chegando a Ática poderia usar Egina como base. Cleomenes, há muito injuriado por seus vizinhos, de repente se viu intensamente louvado por seus inestimáveis esforços pela causa comum grega. Os agentes persas confirmaram sua impressão de que o rei espartano era o mais perigoso e o mais capaz inimigo do Grande Rei e o maior empecilho, também, aos planos persas de conquista do Ocidente.
No entanto, nada ainda estava perdido. Como os persas tinham bons motivos para apreciar, não havia aliança grega tão unida que não pudesse em algum momento se desintegrar. Justamente quando parecia que Cleomenes tinha lastreado bem sua posição, e definitivamente, vazaram noticias sobre os subornos que haviam sido dados a Delfos. O escândalo agitou toda Esparta. Não houve quem não ficasse indignado. Cleomenes, pego pela primeira vez em flagrante, foi forçado a fugir da cidade em desgraça. Não, é claro, que estivesse disposto a acatar passivamente o exílio. Desdenhando da necessidade de pedir a seus cidadãos permissão para retornar, tentou, em vez disso, intimidá-los. Cleomenes sempre teve talento para espalhar a confusão; mas agora essa tendência o levava à acintosa traição. Contrariando a política de dividir para governar que havia patrocinado em todo o seu tempo de reinado, buscou arregimentar o norte do Peloponeso em sua defesa - e a tal ponto que seus concidadãos perderam toda a coragem e se apressaram a convidá-lo para retornar. Mas longe de isso significar o perdão; e Cleomenes, ao retomar para Esparta, estava efetivamente selando seu fim. Começaram a circular boatos de que ele estava maluco. Os próprios espartanos culpavam a bebida. Os argivos preferiam ver no declínio de Cleomenes a prova cabal da ira dos deuses. Seja qual for a causa, no entanto, na prática, todos concordavam que o rei, que apenas um ano antes havia sido saudado como o bastião da Grécia, era agora um lunático. Houve poucas reclamações quando seus dois meio-irmãos que ainda viviam, Leônidas e Cleombrotus, no final de 491 a.e.c., atestaram sua loucura, o que permitiu que o acorrentassem ao cepo. Nem também houve protestos quando seu cadáver foi encontrado na manha seguinte, com pedaços de carne cortados de suas pernas, dos quadris e da barriga, com uma faca suja de sangue largada no chão junto dele. O veredicto, que forçava demasiadamente a plausibilidade, mas que foi aceito por todos: suicídio.
Assim perecia o mais formidável inimigo do Grande Rei na Grécia. Com ele, também deixou de existir um estilo de liderança - sem escrúpulos, não haja dúvidas, mas decidida e disposta a ação - que os sempre cautelosos espartanos nunca deixaram de achar preocupante. De fato, as mesquinhas circunstâncias do fim de Cleomenes fizeram bastante para confirmar essas preocupações em relação a todos os líderes fortes. Verdade, Leônidas, o novo rei, era o sucessor de seu irmão em mais de um sentido, porque havia se casado, com as bênçãos do pai, com Gorgo, a filha Única de Cleomenes - tão rica quanto uma herdeira, assim como uma menina bastante precoce. Não importava, Leônidas permanecia como um homem novo no trono e possivelmente maculado pelo fratricídio, não se sabia ao certo em que grau; ele iria levar algum tempo ate tomar pé. Mas quem então estaria disponível, com o tacão persa ameaçando cair sobre eles, para assumir a liderança? Leotícides? Este estava ocupado demais, tripudiando sobre o infeliz Demarato. A Gerúsia? Ou o Eforato? Mas ambos eram, por natureza, instituições conservadoras, e seria muito pouco provável que sancionassem uma politica de defesa preventiva, como Cleomenes teria feito. Espiões persas, fornecendo informações a Sardes naquele inverno, tinham excelentes noticias a transmitir sobre Esparta. A conturbação da cidade, a luta de facções, que teria parecido aos estrategistas de Dario como tipicamente grega, parecia agora estar lhes oferecendo uma brecha perfeita, uma oportunidade para atacar Atenas e tira-la do mapa, enquanto a cidade tivesse de se defender sozinha.
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A Batalha de Maratona
Não era uma chance que poderia ser perdida. Nas primeiras semanas de 49O a.e.c., a há muito esperada ordem de invasão finalmente foi dada. Um grande exército, poderoso e bem-equipado, totalizando, talvez, 25 mil homens, deixou Susa. Com Mardônio ainda se recuperando de seus ferimentos, o comando da expedição foi confiado a dois outros generais com conhecimento minucioso do front: Artafernes, o filho, de mesmo nome, do sátrapa de Sardes; e, efetivamente como comandante supremo, Dátis, o medo, o veterano de setenta galões ao dia da revolta jônia e um homem que, algo pouco usual na elite imperial, tinha um conhecimento tão especializado do inimigo que poderia, de fato, falar um grego claudicante. A estratégia, que esses dois comandantes deveriam seguir, fora traçada diretamente pelo Grande Rei: atravessar o Egeu com uma imensa armada, levar os benefícios do domínio e da paz persas a todas as ilhas, e então, com este objetivo concluído, reduzir Atenas e Erétria à escravidão, e fazer escravos para o rei. A conquista do restante da Grécia, incluindo Esparta e o Peloponeso, deveria esperar; e no entanto, mesmo dentro dessas instruções de Dario, os planos da expedição eram extremamente ambiciosos. Certamente, como uma operação anfíbia, prometia ser de uma proporção jamais vista desde a invasão do Egito, havia 35 anos. Acrescente-se a isso o plano de não acompanhar a costa, mas ir de ilha em ilha diretamente para a Grécia, o que era uma estratégia tão ousada e inovadora como nenhuma outra já concebida por Dario.
No entanto, Dátis e Artafernes poderiam nutrir poucas dúvidas sobre obterem um êxito incontestável. Todos os dias, a jornada para o oeste trazia novas evidencias da quase inacreditável extensão dos recursos do Grande Rei: os grupos de trabalhadores fazendo a manutenção das estradas, populações inteiras, às vezes, trazidas dos extremos mais distantes da terra; os guardas, postados junto a cada ponte, todas as flotilhas de pontões, todas as trilhas pelas montanhas; as tropas a sua retaguarda, não apenas persas e medos, mas recrutas arregimentados de lugares ainda mais para o Ocidente, báctrios, sogdianos e sakas, tão hábeis com o machado. O que eram os atenienses para povos como esses? Nem mesmo um nome. E, no entanto, marchavam, dirigidos pela vontade de um rei distante dali, mas onipresente; e todas as noites, não importava onde se detivessem, esses homens das estepes, das montanhas, dos vilarejos do Irã, receberiam suas provisões, tiradas de monstruosos depósitos, supridos ciosamente com cântaros de vinho, pães e cevada para seus cavalos. E quando, finalmente, depois de ultrapassar as Portas da Síria, já descendo para a planície da Cilícia, na costa sul da atual Turquia, encontraram ali, aguardando por eles, uma imensa frota de navios, alguns construídos como armas de guerra, outros para transportar cavalos, subiram as pranchas de embarque, tanto homens quanto cavalos; Dátis deu a ordem; e a armada se fez ao mar.
Rumores precedendo sua aproximação circularam logo por toda a Grécia. Ninguém poderia ficar despreocupado. Embora a monstruosa armada rumasse francamente para o Egeu, mesmo para os sobressaltados atenienses isso não chegava a parecer uma ameaça concreta e imediata. Ora, inúmeras armadas persas já haviam sido observadas da Jônia - e todas elas haviam se dirigido para o norte, acompanhando a costa, a caminho do Helesponto. Que razões teriam para tomar outro curso agora? A armada prosseguia, passando pelas ruínas dos portos de Mileto, dirigindo-se para os canais entre o monte Micale e a ilha de Samos - assim parecia. Mas, então, já em Samos, algo totalmente inesperado aconteceu: de repente, a armada mudou seu curso. Um estremecimento de quem não conseguia acreditar no que via percorreu quem observava do litoral. Os persas não estavam indo para o norte, mas para o oeste! Só poderia haver uma explicação: Dátis e sua força-tarefa estavam rumando para mar aberto, para a Grécia - para a Ática.
Enquanto a armada persa velejava atravessando o Egeu, seu comandante dava uma aula avançada sobre as artes de construção de um império. Primeiro: a surpresa, o assombro. Entrando na enseada de uma Naxos perplexa, vingou-se, mesmo tardiamente, do desastre da expedição de uma década antes, incendiando a cidade e submetendo todos os habitantes à condição de escravos, arrastando-os, acorrentados, para os navios, enquanto seus lares e templos ardiam. A seguir: conquistar corações e mentes. Chegando ao porto seguinte da rota traçada, a ilha de Delos, sagrada em toda a Grécia por ser o local de nascimento de Artemis e Apolo, Dátis reagiu a noticia de que os délios haviam fugido diante de sua aproximação com injuriada inocência:
"Vocês, homens iluminados pelo sagrado."
Protestou ele.
"Que estranha idéia fazem de mim, para fugir dessa maneira."
Tal queixa poderia parecer mera dissimulação - pois os persas, afinal de contas, depois da queda de Mileto, não hesitaram nem um instante em saquear o sagrado oráculo de Didima e em carregar com eles, para Ectábana, a grande estátua de bronze de Apolo. Mas os delios estavam Lamentavelmente enganados se imaginaram que esse duro tratamento a que foram submetidos os rebeldes do templo implicava de algum modo desrespeito pelo grande Apolo! Afinal de contas, foram os próprios rebeldes que mostraram ao deus da luz um grosseiro desrespeito, ao se voltarem para a Mentira e desse modo entregarem seu sagrado oráculo a contaminação das levas da daiva. Dátis, resolvido a não permitir que essa sutileza teológica deixasse de ser captada pelos gregos, empenhou-se em encenar uma espetacular demonstração de devoção a Apolo, colocando-se de pé diante do altar do deus e queimando em seu louvor cargas e mais cargas de olíbano. Então, tendo marcado com grandes gastos seu ponto de vista, prosseguiu em seu tour pelas ilhas, angariando a submissão de todas, pegando reféns, recrutando homens à força. Ninguém sequer pensava em lhe opor resistência. As duas nuvens de fumaça - uma ardendo com a fumaça negra da incendiada Naxos, a outra recendendo ao perfume que se elevava até as narinas de Apolo - haviam cumprido seu papel. Era como se a armada, dirigindo-se para Erétria e Atenas, ainda navegasse sob suas sombras - e como se essa mesma sombra estivesse derivando para oeste inexoravelmente, de modo a mergulhar a Grécia inteira na escuridão.
Claro que, no final de julho, Dátis já havia alcançado o extremo leste de Eubeia. Ainda não tinha a Ática à vista. Entretanto, as atenienses teriam de aguardar; porque, em vez de ir direto para a continente, Dátis havia decidido que investiria primeiro contra o menor e menos formidável dos dois objetivos que compunham a lista de vinganças de Dario. A frota persa navegou as cerca de 72 quilômetros de canais que iam se estreitando e que separavam a Ática da Eubéia, ate que, finalmente, já tendo penetrado bastante o território, tornou-se possível divisar, emoldurada por um fundo de picos de montanhas, a cidade rebelde de Erétria, com sua Acrópole instalada num outeiro acima de uma planície de campos cultivados e olivais. Vasculhando o litoral ansiosamente, Depois logo emitiu um suspiro de alivio, uma vez que as erétrios, em vez de combater sua força-tarefa nas praias onde desembarcariam e onde se mostrariam mais vulneráveis, optaram por recuar para trás de suas muralhas. Os persas imediatamente iniciaram o ataque. Por cinco longos dias, a luta foi sangrenta e desesperada; no sexto, a traição entregou a cidade aos que a cercavam. Dois quinta-colunas abriram os portões. Ambos eram membros, coma Dátis sabia que assim seriam os traidores em potencial, da aristocracia - de fato, os homens mais respeitáveis de toda Erétria. Intimidando as massas, cortejando as elites: mais uma vez, a politica predileta dos persas havia triunfalmente demonstrado seu valor. Como acontecera na Jônia, e agora cm Eubeia, ruínas que deixavam à mostra as entranhas dos prédios testemunhavam a aptidão dos gregos para a traição e para a ódio de classes.
E um homem, desviando o rosto do espetáculo da queima de Erétria e das fileiras de escravos sendo arrastados para a deportação, teria sem dúvida vista ou o prenúncio sombrio do destino de sua própria cidade e de seu próprio povo, a não ser que pudesse persuadi-los a ver a razão, a abrir seus portões e recebe-lo de volta. Hipias, o tirano exilado de Atenas, estava agora com mais de 8O anos. Já não via sua terra natal havia duas décadas. No entanto, considerava-se devotadamente como a última e melhor esperança dos atenienses; somente ele poderia resgatar sua infeliz cidade para a luminosidade grandiosa da graça de Dario.
Não foi se sentindo culpado, então, mas imbuído de alto patriotismo e da crença no seu próprio destino que o idoso Pisistrátida embarcou num navio persa e guiou a frota de Dátis de volta pelo caminho que havia seguido. Atravessando os estreitos, no extremo oposto do golfo eubeniano, a costa da Ática surgiu escarpada e bem elevada em relação ao mar. O desembarque na costa norte seria impensável. Mas bastava rodear o promontório e um perfeito local os aguardava: uma baía em forma de cimitarra, ampla e protegida dos ventos, com praias onde uma frota inteira poderia ir à terra, com uma planície além delas, perfeita para a cavalaria de Dátis, e uma escolha entre duas estradas que contornavam o monte Pentelikon e iam para Atenas. Hipias teria boas razões para se lembrar desse local. Mais de cinquenta anos antes, ele e seu irmão haviam desembarcado ali com seu pai, Pisístrato, quando o então futuro tirano, em sua terceira tentativa, finalmente conseguiu estabelecer domínio sobre Atenas. Agora, com a frota persa, dirigindo-se para o mesmo ponto de desembarque, Hipias sabia que a história, sem dúvida, estava prestes a se repetir. Assim como as visões de seu irmão haviam feito no passado, suas próprias visões haviam oferecido a ele uma tentadora olhadela no que estava por vir. Na noite anterior, havia sonhado que estava dormindo com sua mãe; e assim, no que a proa do navio encontrou a macia terra, o velho se preparou para desembarcar, para abraçar sua terra natal e para fazer o presságio se tomar realidade.
Enquanto isso, a sua volta, a baía estava enegrecida de tantos navios, e homens estavam se atirando no mar, caminhando através das águas rasas até as praias cobertas de algas, milhares e milhares de homens, uma imensa multidão armada, de uma dimensão jamais vista na Grécia; e já naquele momento, de vários pontos, batedores estavam levantando poeira ao atravessarem as planícies de Maratona.
O pior inimigo com que um hoplita poderia se defrontar durante uma batalha era o pânico. Bastava que um homem perdesse a esperança na vitória para abandonar seu posto na linha de batalha, deixar cair seu escudo e começar a empurrar seus companheiros para os lados, na luta desesperada para fugir, e imediatamente um tremor de medo poderia percorrer toda a falange, e a fuga daquele único soldado, em questão de segundos, se tornaria uma debandada geral. Um fenômeno perturbador - algo que os gregos preferiam atribuir não a falibilidade mortal, mas sim a algum caprichoso evento sobrenatural, o hálito de um deus, talvez, transmitindo um calafrio pelas fileiras, ou a súbita aparição de um herói raivoso despertando de seu túmulo e atravessando com largas passadas o campo de batalha. No entanto, mesmo essa teoria, embora se mostrasse um bálsamo para o orgulho ferido de um exército derrotado, ainda carregava consigo uma preocupante implicação: que a disposição de luta de uma falange sempre seria vulnerável ao acovardamento de alguns poucos. Homens usam elmos e peitorais para se proteger - mas os escudos, eles os carregam em beneficio de todos os que formam a linha. Marchar para a guerra sem completa confiança na resistência dos companheiros para a luta que viria era o bastante para um hoplita começar a acreditar que estava marchando para a morte.
Assim, quando os homens em Atenas, observando de suas muralhas o monte Pentelikon e vendo o fulgor das chamas do grande farol instalado ali, alertando para o desembarque dos persas, souberam que o momento tão temido havia anos finalmente chegara, as opiniões de qual seria a melhor maneira de se defrontar com o perigo não foram de modo algum unânimes. Noticias sobre o fabuloso tamanho das hordas asiáticas já circulavam a solta pela cidade, e era evidente para os mais sensatos dos estrategistas atenienses que qualquer exército que a democracia pudesse colocar no campo de batalha estava fadado a se ver em horrenda inferioridade numérica. Acrescente-se a isso a devastadora superioridade dos invasores com sua cavalaria e o paralisante dado de que nenhum exército grego, jamais em cinquenta anos, conseguira derrotar os persas em combate aberto, e os argumentos para ficarem onde estavam, guarnecendo as muralhas e encolhendo-se como podiam para suportar o cerco devem ter parecido quase irresistíveis.
Contudo, a decisão de deixar a cidade e enfrentar os invasores já foi efetivamente tomada. Logo que foi confirmado o desembarque dos persas em Maratona, os hoplitas da democracia e todos os cidadãos que podiam pagar os custos de se armarem, algo em tomo de 1O mil no total, prepararam-se para reunir alimentos e se pôr em marcha. Deixaram a cidade sob o comando do arconte da guerra, Calimaco - mas a estratégia era toda de Miltíades, e fora adotada depois de dias de tenso debate na Assembléia, como uma decisão oficial do povo ateniense. O julgamento do maior combatente ateniense a haver enfrentado os medos não era coisa para ser descartada sem maiores cerimônias; e Miltíades, contra os argumentos de todos aqueles que haviam defendido uma politica defensiva, apresentara seu ponto de vista de maneira irrefutável. Sim, os invasores haviam desembarcado com uma força avassaladoramente superior; e, era verdade, haviam trazido com eles sua temível cavalaria; mas era precisamente por isso que precisavam ir ao encontro deles. Duas estradas vinham de Maratona, contornando o monte Pentelikon e indo para Atenas: se deixassem os persas assumirem o controle de apenas uma dessas estradas, seus cavalarianos varreriam a Ática inteira. Se os atenienses marchassem rápido, no entanto, e controlassem os dois acessos para a planície, poderiam conter a cabeça-de-praia persa. Verdade, com isso, praticamente já estariam se lançando no combate - mas não era apenas numa falange que nervos abalados poderiam provocar um desastre. Afinal de contas, bastaram dois traidores para abrir o portão de Erétria. Poderia uma cidade como Atenas, que fora transpassada por uma década com tremores sobre traição, quinta-colunas e aproveitadores recebendo o ouro do Grande Rei realmente ter esperança de resistir a um cerco? Não se podia acreditar nisso. Seria preferível, é claro, se o pior acontecesse, morrer lutando a ser apunhalado pelas costas ignominiosamente.
No entanto, o povo ateniense, apesar de haver votado a favor da politica de enfrentamento defendida por Miltíades, ainda evitava acreditar que poderia ter de erguer-se e lutar sozinho contra o terrível invasor. No mesmo momento em que o exército da democracia, rumando para Maratona, desapareceu das vistas daqueles que ficaram em Atenas, um cidadão estava partindo na direção oposta, para o sul, penetrando o Peloponeso. Seu nome era Filípides, um atleta celebrado como o grande corredor de sua cidade, um homem de admirável vigor e velocidade. Ao cobrir a impressionante distância de cerca de 225 quilômetros em dois dias, ele se viu, na segunda noite de sua corrida épica, descendo as encostas acidentadas das montanhas do norte da Lacedemônia e entrando no vale Eurotas. Quando o sol se pôs atrás dos picos do monte Taigeto, Filípides alcançou o amontoado de acampamentos e templos desprovido de muralhas que constituía Esparta.
As cenas que presenciou ali não poderiam ser mais contrastantes com as que deixou para trás em Atenas. Toda a Lacedemônia estava em fête. Filípides havia chegado no auge de um dos mais sagrados festivais espartanos, o Caméia, e pela cidade inteira rapazes repousavam depois de todo um dia gasto em brutais brincadeiras de pegar, enquanto os mais velhos festejavam em tendas de campanha arranjadas deliberadamente de modo a imitar a disposição que teriam num acampamento de guerra. Longe de significar que os espartanos estariam prontos para se pôr de pé e marchar para a batalha, essa paródia de seu tradicional estio bélico na verdade representava justamente o contrário: a Caméia era um tempo de paz. Não haveria a menor possibilidade, informaram, lamentando, os espartanos a Filípides, de interromper tal sacrossanto período de trégua. Somente quando a lua subisse cheia no céu iluminando em tom de prata o mês de agosto, eles poderiam marchar para Maratona. Na noite da chegada de Filípides, ainda faltava uma semana para o festival terminar. Acrescentando-se a isso o tempo de marcha, os atenienses não deveriam esperar ver o exército espartano por pelo menos dez dias. Claro que, se ainda estivesse vivo, Cleomenes, aquele que escarnecia dos tabus e era um inveterado inimigo da Pérsia, insistiria numa partida imediata - mas ele estava morto, e Esparta, ainda sob o impacto de seu trágico fim, continuava em estado de choque. E também em relação a luta entre facções. O ressentimento entre Leoticides e Demarato, em particular, estava continuamente envenenando a vida política, com o novo rei zombando a todo instante de seu predecessor como se ele fosse um plebeu. Com os espartanos enredados em tal tumulto, não seria nada conveniente enraivecer ainda mais os deuses - mesmo que, como Filípides afirmou...
"...Os atenienses estejam suplicando por sua ajuda, imploram a vocês que não assistam passivamente enquanto toda a Grécia é esmagada, implorando a vocês que não a deixem ser escravizada por invasores de fala incompreensível".
No entanto, mesmo abalado por achar dez dias uma demora perigosamenete longa demais, e que os atenienses poderiam não conseguir sustentar-se enquanto isso, o desolado corredor não retomou de sua missão de mãos vazias.
Na volta para Atenas, foi saudado por uma figura que o chamou pelo nome, nos altiplanos depois de Tegéia, por uma figura com pernas de bode, dois chifres proeminentes e um enorme falo. Talvez fosse uma alucinação provocada pelo desespero, pela exaustão ou por uma insolação - mas Filípides não teve dúvidas de que um deus viera lhe falar. De fato, um deus afeito a enganar pessoas - porque Pã tinha um estranho senso de humor e era perfeitamente capaz, se estivesse aborrecido com uma cidade, de fazer com que todos os cidadãos dentro de suas muralhas tivessem uma espantosa ereção. Mas nessa ocasião, ao aparecer a Filípides, o deus veio somente com palavras de encorajamento, reafirmando ao corredor sua afeição pelos atenienses e prometendo ajudá-los muito em breve. Pã não entrou em detalhes; mas considerando que era, como seu nome sugeria, o deus do pânico, o qual ao surgir no campo de batalha poderia simplesmente fazer um exército inteiro sentir um calafrio amedrontado, ao mesmo tempo que acendia no adversário a chama da coragem, suas palavras devem ter soado a Filípides cheias de esperança e bons augúrios.
Sobretudo quando, ao chegar a sua cidade, encontrou não os monturos fumegantes de escombros que temia ver, mas uma cidade que ia conseguindo manter seus nervos sob controle. De fato, as noticias vindas dofront pareciam quase promissoras: os hoplitas atenienses haviam marchado com tal rapidez para Maratona que conseguiram guarnecer ambas as estradas para Atenas, então prontamente se entrincheiraram antes que es invasores surgissem da planície. Além disso, juntaram-se a eles no front cerca de oitocentos homens de Platéia: todos os hoplitas que a minúscula cidade fora capaz de reunir. Um reforço que não chegava a ser substancial, mas se tratava de um gesto de gratidão destemido e uma demonstração tão tocante de amizade que os atenienses sentiram-se poderosamente encorajados por isso. Talvez agora pudessem começar a ter esperanças, ao escutarem as noticias trazidas per Filípides, de continuarem sustentando Maratona sem precisarem ainda lutar, pelo menos até que as forças de Esparta chegassem como reforço. Talvez, no final das contas, sua cidade pudesse ser preservada da investida avassaladora dos persas.
Não que a onda de otimismo, entre um povo privado de seus combatentes, pudesse, é claro, manter-se completamente intacta. A imaginação voava, assustada, enquanto amedrontadas dúvidas percorriam as nervosas ruas. E se a armada persa contornasse a costa da Ática, enquanto os hoplitas atenienses estavam parados em Maratona, e de repente desembarcassem em Falero? E se traidores estivessem em contato com Hípias? E se tivessem planos para conseguir abrir os portões? Os mais sombrios boatos tinham, inevitavelmente, seu foco nos Alcmeônidas. Mas nada poderia ser provado contra eles; não, a despeito dos rumores, havia evidencias de traição efetiva ou de derrotismo por parte de mais ninguém. Os portões da cidade continuavam bloqueados. Filípides, partindo agora para Maratona, poderia relatar aos generais não apenas as noticias de Esparta e de seu encontro com Pã, mas que o moral, em Atenas, continuava firme.
No entanto, quando o corredor chegou ao acampamento ateniense e teve sua primeira visão do que seus concidadãos estavam enfrentando, deve ter sentido sua própria determinação esmorecer. O espetáculo da planície de Maratona era capaz de gelar o sangue; tão aterrorizante, talvez, quanto a visão que se abrira diante dos defensores das muralhas de Tróia, uma vez que, quando, desde aqueles tempos tão antigos, houvera uma força de invasão que se comparasse com a de Dátis? No extremo da baía, abrigado por um comprido promontório conhecido na região como Rabo de Cachorro, os navios persas foram arrastados para a areia, e agora se estendiam ao longo da curva da praia por quilômetros. Já os asiáticos, em número monstruosamente grande, usando seus trajes exóticos, brilhantemente coloridos, enxameavam a planície, esmagando sob seus pés forasteiros aquela que seria a suada colheita dos fazendeiros atenienses, brotando do sagrado solo da Ática. Seus cavalarianos, galopando até junto das linhas atenienses, empinavam os cavalos, faziam-nos voltar-lhes as costas, empinavam e retomavam várias vezes, provocando nuvens de poeira que se dispersavam rapidamente, enquanto debochavam da falta de arqueiros de seus adversários.
No entanto, não haviam se atrevido a atacar as linhas, até o momento - isso porque os atenienses, estando postados em terreno elevado, com uma elevação ainda mais íngreme as suas costas, e um arvoredo sagrado para Héracles protegendo-os da aproximação da cavalaria persa, ocupavam uma formidável posição defensiva. Agora, com a chegada de Filípides à sua base, poderiam calcular com precisão quanto tempo ainda precisariam sustentar aquela posição até que os espartanos chegassem: somente uma semana. Perfeitamente factível, na opinião da maioria dos generais atenienses. Quando os demais escutaram as notícias trazidas por Filípides, no entanto, perceberam que elas tomavam a perigosa hora do confronto ainda mais próxima. Os persas, como Miltíades oportunamente observou, possuíam uma mestria sinistra nas artes da espionagem: haveria pouca dúvida de que Dátis já estaria contabilizando as extravagâncias do cronograma dos espartanos; pouca dúvida, igualmente, haveria de que ele teria se dado conta de que seu tempo estava se esgotando. Considerando que as forças atenienses tinham - ate agora - surpreendentemente evitado de se desintegrar em traições e deserções, como era evidente que Dátis esperava que acontecesse, os comandantes persas logo se veriam obrigados a adotar uma outra estratégia - e Miltíades, em particular, parecia ter poucas dúvidas sobre o que essa nova estratégia seria. Com os atenienses bloqueando ambas as estradas para o sul, só restaria um caminho para Dátis atacar Atenas antes da chegada dos espartanos: por mar. Se - quando - os invasores começassem a embarcar, os atenienses teriam de se defrontar com uma difícil escolha; ficar onde estavam e se arriscar a ver a cavalaria inimiga, transportada pelo mar, ser recebida de portões abertos em Atenas por quinta-colunas, ou avançar para campo aberto e oferecer combate aos persas. Ambas eram perspectivas temerárias, mas somente a última, assim defendia Miltíades, oferecia uma mínima esperança de vitória.
Passou-se um dia, depois outro, depois mais outro. Quatro dias, agora, era o que faltava para a chegada dos espartanos, e o impasse permanecia. Os navios persas se conservaram ameaçadores, mas imóveis, nas areias da praia. O sol mergulhou por trás das montanhas que margeavam a planície de Maratona. A lua, finalmente, brilhou, cheia, no céu de agosto. Na distante Lacedemônia, estariam os homens de Esparta se preparando para marchar para a guerra? E no acampamento persa? A planície poderia estar iluminada por um fantasmagórico brilho prateado, mas era difícil, a quilômetros dos navios dos invasores, distinguir o que exatamente estaria acontecendo sob as sombras do Rabo de Cachorro. Alguma coisa, sem dúvida, porque uma grande comoção, o rumor de milhares e milhares de pés pisoteando o chão, podia ser ouvido, ainda fraco, mas crescendo, aproximando-se das linhas atenienses. Parecia que os invasores estavam avançando com toda a sua força, finalmente. Mas seria um ataque maciço ou uma manobra para distrair o adversário? A resposta logo viria. Dótis não era o único comandante a ter percebido a importância vital da inteligência de guerra. Alguém - e pode-se apenas pressupor que tenha sido Miltíades, muito experiente nas artes persas da guerra - havia recrutado espiões entre os invasores. Sob a noite de lua cheia, alguns jônios engajados nas tropas persas, sorrateiramente atravessando a planície, entraram no arvoredo que ocultava da vista o acampamento ateniense. As noticias que traziam não podiam ser mais urgentes. Sem demora foram transmitidas a Calimaco e os dez generais de tribos que juntos compunham o alto-comando ateniense.
"A cavalaria partiu!"
Era o momento pelo qual Miltíades estava esperando. Era evidente, se seus espiões haviam trazido uma informação acurada, que as forças persas tinham se dividido, com uma força de retenção avançando para atrair a atenção dos atenienses, enquanto distante, na retaguarda, a cavalaria estava sendo clandestinamente embarcada. Um conselho de guerra foi reunido às pressas: Miltíades implorou a seus colegas generais que votassem para entrar imediatamente em batalha. Nunca, instou ele, haveria uma chance melhor de vitória: o exército do inimigo estava dividido e toda a sua cavalaria, a exceção do que não era mais que um esqueleto da força principal, havia partido. Quatro dos nove colegas de Miltíades concordaram; cinco, aterrorizados com a perspectiva de atacar as forças persas em terreno aberto, sem arqueiros, sem cavalaria e ainda espantosamente inferiorizados em número, não. O voto decisivo era agora do arconte de guerra, Calimaco, que já havia muitas vezes demonstrado não achar vergonha nenhuma ceder ao conhecimento superior do mais famoso ateniense a ter lutado contra os medos. E foi o que fez de novo, apoiando Miltíades. A ordem foi dada. A batalha seria travada ao amanhecer.
Por todo o acampamento ateniense os homens foram despertados com a notícia de que, em questão de horas, estariam avançando contra um inimigo jamais derrotado por um exército hoplita em combate aberto e cujo nome, quando pronunciado, bastava para provocar um calafrio na espinha dorsal dos gregos. No entanto, reunindo todas as últimas energias de reservas físicas e morais, e espremendo o que lhes restava de coragem até um ponto verdadeiramente excruciante, haveria alguma chance de evitar a obliteração, a das suas famílias e da sua cidade, então os hoplitas atenienses teriam de respirar fundo agora e agarrar-se a isso. Escravos, encarregados de cuidar de suas preciosas armaduras, ciosamente trouxeram as panóplias polidas. Os atenienses nus foram transformados em assustadores autômatos de bronze. Então, envergando seus peitorais e as proteções para suas pernas, seus escudos e lanças nas mãos, seus elmos erguidos para trás na cabeça, os hoplitas tomaram suas posições nas linhas de batalha, colocando-se lado a lado com seus companheiros de demos, de suas trincas e de suas tribos. Era um costume dos atenienses cerrarem suas falanges com oito fileiras na largura; mas Miltíades, com medo de serem flanqueadas pela infantaria persa, mais ligeira e hábil, e pelo restante da cavalaria inimiga, ordenou que o centro ficasse mais estreito, de modo que a linha dos atenienses correspondesse exatamente a dos invasores, agora cada vez mais visíveis a menos de dois quilômetros de distância sob a luz bruxuleante do amanhecer. Com os primeiros raios de sol tocando as colinas cinzentas da Eubéia, sacrifícios foram oferecidos aos deuses; os augúrios obtidos foram favoráveis, os generais então assumiram suas posições exatamente na linha de frente. Calimaco, como era de costume para o arconte de guerra, ficou no comando da ala direita; os plateus foram colocados na esquerda; Temístocles e um companheiro, também uma estrela ascendente na democracia, Aristides, lideravam suas tribos no centro da falange, que tinha seu coração temerariamente enfraquecido. Miltíades em pessoa, designado como comandante-geral do dia, colocou-se onde todos poderiam escutá-lo e finalmente ergueu o braço, apontou para os persas e gritou:
"A eles!"
Houve um lampejo metálico por toda a extensão da linha de frente no instante em que os hoplitas baixaram seus elmos e ergueram os escudos, envergando as lanças. Finalmente, chegava a hora em que não havia mais volta. Com a cabeça quase totalmente encapsulada em metal, todos os membros da falange se perceberam assustadoramente apartados da visão e dos sons do campo de batalha, mal enxergando o inimigo a sua frente, mal conseguindo escutar o troar das trombetas que ordenavam aos atenienses que iniciassem a carga. Apenas o súbito movimento de seus companheiros à frente, de ambos os lados, e a crescente pressão dos homens por trás deles pareciam reais. Descendo para a extensão aberta das planícies, a falange começou a se mover, pesadamente, mantendo a sua formação, nem uma vez sequer ameaçando se romper. Tudo foi absorvido pela tensão e pelo êxtase do momento, porque se e verdade que um instante de fraqueza de uns poucos, dentro de uma muralha de escudos, pode se mostrar fatal para muitos, era também verdadeiro o contrário, que mesmo um hoplita tremendo de medo, enquanto avançava, mijando em pé descontroladamente, sujando de merda seu manto, poderia se fortalecer por estar ao lado de seus amigos e parentes, um individuo em meio a um poderoso corpo de homens armados, nascidos livres. Como, portanto, sem estarem conscientes disso, qualquer ateniense ousaria fazer o que fizeram todos da falange naquele amanhecer de agosto, avançar contra o inimigo que o mundo inteiro tinha como invencível, atravessar o que muitos, temerosos, devem ter pensado que seria a planície da morte?
Mais tarde, histórias extraordinárias seriam contadas sobre esse avanço. Foi dito que os atenienses atravessaram correndo a extensão de cerca de 1.6OO metros, tendo em vista que homens corajosos o bastante para atacar os persas pela primeira vez na vida deveriam ser sobre-humanos. Na verdade, nenhum homem usando toda uma panóplia hoplita com cerca de 3O quilos de bronze, madeira e couro seria capaz de correr por toda uma distância dessas e ainda ter forças suficientes para lutar efetivamente. Mesmo no relativo frio daquela manhã, ainda cedo, o suor rapidamente começaria a se misturar com a poeira levantada por 1O mil pares de pés, cegando parcialmente os hoplitas que avançavam e provocando pontadas em seus olhos, de modo que a visão do inimigo que tinham a frente - Os arqueiros extravagantemente vestidos empunhando seus arcos, os fundeiros, ainda armando seus disparos, a expressão de deboche e desdém nas fileiras persas - ficaria ainda mais borrada. Logo, quando os atenienses penetraram de vez a terra de ninguém, a primeira flecha começou a assoviar, descendo sobre eles; então, erguendo o monstruoso peso de seus escudos para proteger o peito, os hoplitas, aí, sim, começaram a correr. Simultaneamente, como se a falange fosse uma feroz criatura acuada, eriçando seus pelos no que se voltava para seu inimigo, aqueles que estavam nas primeiras três fileiras abaixaram-se, apontando suas lanças, preparando-se para a colisão iminente. Agora, com 15O metros ainda para percorrer, uma densa nuvem de flechas e pedras disparadas por atiradeiras caíam sobre eles, espocando contra seus escudos, arrancando seus elmos, atingindo um ou outro hoplita na coxa, as vezes varando-lhes a garganta, mas mesmo assim os atenienses, enfrentando a chuva negra, apenas aceleravam suas passadas. Os homens nas fileiras inimigas que estavam em seu caminho já iam erguendo, atabalhoadamente, seus apetrechos de defesa feitos de vime, e de repente se deram conta, horrorizados, de que a muralha de escudos e de lanças com pontas de metal, longe de propiciar alvos fáceis para seus arqueiros, como haviam imaginado a principio, não iria ser detida. Cem metros, cinquenta, vinte, dez. Então, quando o brado de guerra ateniense, uma aterrorizante ululação, se elevou ainda mais alto do que o ribombar de seus pés sobre o solo seco, a cacofonia do choque dos metais e os gritos do inimigo abatido pelo pânico, a falange esmagou-se de encontro as linhas persas.
O impacto foi devastador. Os atenienses haviam apurado seu estilo de combate contra outras falanges, escudos de madeira batendo contra escudos de madeira, as pontas de ferro das lanças chocando-se contra peitorais de bronze. Dessa vez, no entanto, naqueles terríveis primeiros momentos de colisão, não houve nada além de um pulverizador impacto de metal contra carne e ossos; então, o esmagamento produzido pela mare ateniense sobre homens vestindo, no mínimo, jaquetas sem manga acolchoadas como proteção e armados, talvez, apenas com arcos e fundas. As lanças feitas de madeira de seixo dos hoplitas, em vez de se partirem, como acontecia sempre que uma falange se chocava com outra, podiam, em vez disso, desferir repetidos golpes, e os inimigos que conseguiam esquivar-se das temíveis estocadas podiam facilmente ser esmagados sob o peso dos homens que avançavam cobertos de bronze. Logo, nas alas do exército persa, homens aterrorizados começaram a debandar, disparando pela planície, enquanto os atenienses, perfurando e cortando o que tinham pela frente, prosseguiam na sua tarefa letal. Apenas no centro, onde a falange havia sido bastante enfraquecida, os invasores conseguiram levar a melhor na batalha, suportando a colisão e então, lentamente, empurrando os hoplitas para trás. Era onde as melhores tropas dos invasores estavam lotadas: os próprios persas, com armaduras mais pesadas do que a da maioria dos demais recrutados, e ossakas, aqueles combatentes brutais oriundos dos extremos orientais das estepes, com seus machados perfeitamente habilitados a rachar o elmo de um hoplita ou penetrar seu peitoral. Ainda assim, as alas atenienses conseguiram contorná-los, atacando-os a seguir pelos flancos, reforçando as tribos que mais estavam sob pressão, as de Aristides e Temístocles, de modo que logo o centro dos persas também começou a se desfazer e a matança ficou ainda mais encarniçada. Foi então que os poucos persas e sakasque haviam ficado para trás finalmente se juntaram a debandada geral, fugindo para alcançar seus navios, a alguns quilômetros de distância, na planície, atravessando as areias aos tropeços. Foram perseguidos pelos atenienses, exultantes com o seu triunfo e ao mesmo tempo quase sem conseguir acreditar, totalmente assombrados pela maneira como Pã cumprira a sua promessa.
Porém, se a batalha fora ganha, a vitória ainda estava longe de ter sido decisiva. A necessidade de ambas as alas atenienses terem de se deslocar para resolver a batalha no centro dera aos marujos tempo mais do que suficiente para manobrar os navios persas e deixá-los preparados para a partida, puxando para bordo os apavorados soldados que a duras penas conseguiam atravessar os baixios. Era verdade que muitos de seus camaradas haviam sido esmagados durante a debandada ou haviam afundado no grande pântano que se estendia para o norte, onde os navios persas estavam parados sobre a areia, morrendo ali um número tão grande deles que, segundo mais tarde foi estimado, foi o lugar mais fatídico da matança. No entanto, enquanto Dátis e Artafernes mantivessem o controle de sua armada, esta permaneceria sendo uma ameaça; e Miltíades e seus homens, incapazes de atacar os navios que já estivessem navegando, naturalmente se desesperaram por capturar ou queimar todos os que ainda permanecessem nas areias. A luta nas praias, então, foi tão feroz quanto qualquer outro momento da batalha e, para os atenienses, igualmente fatal: qualquer hoplita que tentasse alcançar a popa de um navio tinha a mão decepada por um machado e tombava para trás esvaindo-se em sangue, que jorrava do ferimento fatal; Calimaco, o arconte de guerra, foi morto, como também um dos generais de tribo. Sete navios foram efetivamente capturados, mas todo o restante conseguiu escapar. A estrada para Atenas poderia estar bloqueada para os persas - mas não o mar.
E o que aconteceu aos navios transportando a cavalaria, que haviam partido antes da batalha? A pergunta atormentava o alto-comando dos atenienses. Enquanto retornavam vadeando os baixios e passando pelos cadáveres que flutuavam nas águas rasas, ao mesmo tempo que voltavam o olhar por sobre a planície, na direção de sua cidade, os exaustos hoplitas podiam avistar, cintilando na encosta do monte Pentelikon, o lampejo de uma superfície brilhante, muito polida, colocada num ângulo proposital de modo a poder apanhar os raios do sol nascente. Era evidentemente um sinal previamente providenciado, e algo que só poderia ser destinado a armada persa, já em algum lugar distante, mar adentro. Era impossível decifrar seu significado exato - mas todos os atenienses pensaram logo em traição.
A consternação percorreu as fileiras. Distantes mais de 4O quilômetros, seus lares e famílias estavam ainda completamente indefesos. Exauridos, empapados de suor e sangrando, não tinham escolha a não ser correr de volta para Atenas o mais depressa de que suas pernas fossem capazes. Ainda não eram dez da manha quando deixaram o campo de batalha; no final da tarde, numa espantosa demonstração de energia e determinação, haviam chegado à cidade. E bem a tempo, também - pois logo depois os primeiros navios da frota persa começaram a avançar para Falero. Por umas poucas horas, permaneceram parados fora da enseada; então, quando o sol enfim se pôs, naquele dia tão comprido e decisivo, ergueram as ancoras, viraram e começaram a navegar para o leste, penetrando a noite. A ameaça de invasão estava encerrada.
Assim foi que os atenienses escaparam de um destino terrível, igual ao de Mileto e Erétria, e se mostraram, nas ressoantes palavras de Miltíades:
"uma cidade destinada a ser a maior de toda a Grécia".
Em Maratona, seus cidadãos contemplaram o seu pior pesadelo bem diante de seus olhos: não apenas que o povo ateniense fosse transportado à força para longe de seu solo ancestral, que gerou a todos eles, de suas casas, seus campos de cultivo, seus demos, mas, o que seria ainda pior, que suas linhagens, em meio a hediondas cenas de mutilação, fossem extirpadas. Todo hoplita lutando naquele dia devia saber que o Grande Rei, enfurecido pela quebra de promessa dos atenienses, havia ordenado contra eles o pior de todos os atos de vingança: a castração de todos os seus filhos. Teriam os atenienses, talvez em seus sinais sombrios receios, temido que os próprios deuses haveriam de apoiar uma sentença tã cruel? Os atenienses de fato traíram suas promessas de lealdade para com Dario; e era hábito entre os gregos, quando firmavam um juramento, pisar nos testículos cortados de algum animal e orar para que seu primogênito sofresse o mesmo castigo se quebrassem sua palavra. Ao avançar sobre o inimigo em Maratona, os atenienses haviam, com efeito, buscado forças dentro deles mesmos para enfrentar aquele que era o pior de todos os seus medos - e o conseguiram de forma espetacular.
E muito mais ainda. Quem quer que houvesse enviado o sinal aos persas, do monte Pentelikon, mantinha-se em silêncio agora. Quando chegaram as noticias de que Hipias, despojado de todas as suas esperanças, falecera de frustração no caminho para o exilio, isso apenas confirmou o que todos já sabiam: que ninguém mais, depois de Maratona, deveria apostar seu futuro na perspectiva de se tornar tirano de Atenas. Todo mundo agora estava a favor de que o poder fosse exercido pelo povo. Ou pelo menos a favor de que o poder fosse exercido pelo povo que vencera a famosa batalha: os fazendeiros, a aristocracia proprietária de terras, os que podiam possuir armaduras. Cento e noventa e dois deles, assim se descobriu, morreram na batalha - e a esses heróis da liberdade ateniense foi concedida uma honraria única. Nada de túmulos em Cerâmico para eles; em vez disso, pela primeira e única vez na historia da cidade, os mortos foram sepultados, como um tributo a sua coragem, no campo onde haviam morrido. Foi erguido um grande túmulo por sobre seus cadáveres com mais de 15 metros de altura, e placas de mármore com a lista dos nomes dos que ali tombaram foram colocadas nas laterais do monumento. Nem mesmo o mais altivo dos nobres da aristocracia poderia se gabar de algo que sequer se comparasse a isso. Misturados a poeira que lutaram tão corajosamente para defender, os mortos repousariam lado a lado, sem nenhuma distinção de classe nem de família. Eram cidadãos - nada menos nem nada mais do que isso. Que titulo poderia reivindicar com mais orgulho qualquer ateniense? Atenas em si era tudo.
Mesmo os espartanos, quando ali chegaram depois dos extenuantes três dias de marcha forçada, olharam para os homens que haviam vencido os medos sem ajuda de ninguém com um inédito e incontido respeito. Avançando em sua marcha para examinar o campo de batalha, encontraram em Maratona, já se decompondo em meio a poeira da planície ou semi-afundadas no lodo do pântano, provas o bastante das proporções da ameaça que fora tão heroicamente rechaçada. Seis mil e quatrocentos invasores jaziam ali, engordando as moscas - e isso era apenas uma fração da força de combate que Dátis comandava. Quantos incontáveis milhões mais o Grande Rei poderia ter sob seu comando, já se reproduzindo, enxameando a inóspito interior da Ásia, nem os atenienses nem os espartanos faziam questão de pensar a respeito. Todos os gregos, olhando para os persas mortos e comemorando a grande vitória, devem ter sentido um estremecimento de apreensão. No entanto, os espartanos, examinando metodicamente o campo de batalha, agachando-se junto aos cadáveres, fazendo anotações, devem ter achado muita coisa que os tranquilizou. Era a primeira oportunidade que tinham para estudar as armaduras e as armas dos lendários senhores do Oriente; e o que viram não os impressionou muito. Dátis pode ate ter levado um imenso exército para Maratona - mas nada que as espartanos pudessem reconhecer como capaz de lhes fazer frente.
Enquanto isso, enquanto continuavam sua inspeção, uma grande fossa estava sendo cavada nas margens ao sul dos pântanos. Nessa sepultura improvisada, os cadáveres dos invasores foram jogados sem nenhuma cerimônia. Nada de monumento para as hordas persas chacinadas. Um túmulo mudo e inglório, mas que outra sorte mereciam homens que em vida nada haviam conhecido sabre o companheirismo numa cidade, ou sobre liberdade em relação a régios ditadores, ou sobre a disciplina de uma falange, mas que em vez disso avançavam atabalhoados como meros animais de rebanhos, suas vozes animalescas berrando, cheias de som e de fúria, coisas sem nenhum significado? Os jônios haviam rotulado os persas de bárbaros; agora, nos desdobramentos da sua grande vitória, os atenienses começaram a fazer o mesmo. Era uma palavra que evocava perfeitamente seu medo do que haviam visto no inicio da manhã na planície de Maratona: um exército de tamanho incontável e comportamento bizarro, falando indistintamente, a caminho de sua destruição - sem dúvida, indivíduos de fala enrolada, um balbuciado. No entanto, bárbaro, especialmente na boca de um veterano da famosa batalha, também poderia sugerir algo mais: desdém, um tom de superioridade, ou mesmo de desprezo - uma postura que, sem dúvida, poucos gregos ousariam adotar antes daquele fatídico amanhecer de agosto.
Maratona ensinou não apenas aos atenienses, mas a toda a Grécia, uma portentosa lição: a humilhação nas mãos da superpotência não era inevitável. Os atenienses, como nunca se cansavam de lembrar, haviam demonstrado que as hordas do Grande Rei podiam ser derrotadas. O colosso tinha pés de barro.
A liberdade, afinal de contas, podia ser defendida.
Referências Bibliográficas
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Primeira Guerra Persa