Nosso conhecimento do mundo provém de nossa experiência, e somente dela. Esse era o alicerce da filosofia de John Locke, um dos fundadores do empirismo, um ramo filosófico que teria como expoentes, além do próprio Locke, os filósofos Berkeley e David Hume. Mas ele não só lançou os alicerces do empirismo. Locke deu uma fundamental contribuição na filosofia política ao desenvolver as ideias dademocracia liberal em pleno século 17.
Boa parte do pensamento de Locke atualmente já faz parte do senso comum, mas na sua época de intolerâncias religiosas e políticas, elas eram extremamente perigosas. A tolerância pregada pelo filósofo era vista como ameaçadora e acreditar que o conhecimento do mundo é baseado na experiência era uma idéia revolucionária que alterou o curso da filosofia. Homem multifacetado ele foi o único entre os grandes filósofos a ser ministro em um governo.
Para entender corretamente o poder político, e derivá-lo do seu original, devemos considerar em que estado todos os homens naturalmente se encontram, ou seja, um estado de perfeita liberdade para ordenar suas ações, e dispor de seus bens, e de pessoas, conforme julguem adequado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou estar na dependência da vontade de qualquer outro homem. Um estado também de igualdade, onde todo o poder e toda a jurisdição sejam recíprocos, nenhum tendo mais que outro...
John Locke e o empirismo
John Locke nasceu em 29 de agosto de 1632, em Somerset, na Inglaterra. Filho de um advogado rural, que lutou ao lado dos parlamentaristas na guerra civil que eclodiu em 1642, Locke deve exatamente a esse fato a oportunidade que teria de estudar na Westminster School, em Londres, considerada a melhor do país na época. Essa educação mudou a vida de Locke, pois foi graças a ela que ele pôde desenvolver seu talento excepcional.Locke foi educado num lar parlamentarista, mas em Westminster fez amizade com vários alunos monarquistas. Durante sua vida ele assistiria a essa intensa disputa que tomou conta da Inglaterra naqueles tempos. Locke deixou Westminster quando tinha 20 anos de idade. Ele matriculou-se na Christ Church, em Oxford, para estudar lógica, metafísica e os clássicos – a Universidade de Oxford permanecia naquele momento na era medieval. O maçante ensino, que ignorava as novidades da época, como a filosofia deDescartes e os progressos da ciência e da matemática, estimulou Locke a buscar novos desafios, e ele os encontrou nas experiências químicas e na medicina.
Após se graduar na Christ Church, Locke tornou-se membro do corpo docente (fellow) da universidade. Nessa época seu pai morreu e deixou para ele como herança várias propriedades cujos aluguéis seriam suficientes para sustentá-lo pelo resto da vida. Ele começou também a se corresponder com várias mulheres, mas apesar dos inúmeros flertes, aos quais era correspondido, ele parece não ter levado nenhuma dessas relações platônicas à frente.
Já os objetivos acadêmicos de Locke o levaram até a obra de Descartes. Finalmente, aos 34 anos de idade, ele descobria que a filosofia era sua principal área de interesse. Além de levar à superação dos pensamentos deAristóteles e da escolástica que dominavam a filosofia há quase dois milênios, Descartes deu ao processo de conhecimento do mundo alicerces mais seguros a partir da razão e da dedução. Mas Locke discordou que a dedução seria o melhor caminho para se alcançar a verdade. Para ele, somente poderia se chegar à verdade do mundo mediante a indução, ou seja, o método científico.
Locke começou então a construir seu pensamento. Nele, ele destronou a razão de Descartes para colocar em seu lugar a experiência. Segundo Locke, não temos nada parecido com ideias intuitivas. Somos uma folha em branco (tábula rasa) e é somente a partir da experiência externa e da reflexão (introspecção) que construímos nosso conhecimento. A razão é utilizada para chegarmos às conclusões a partir dessas experiências e daí fazemos as generalizações e as leis. Nascia o empirismo na filosofia moderna, que teria como seguidores Berkeley e David Hume, entre outros.
Locke e a filosofia política
Em 1663, quando era fellow da Universidade de Oxford, Locke começou a aprofundar seus pensamentos sobre política e uniu essas ideias à filosofia. De forma ousada e original, Locke sugeriu que o elemento vital em todos os problemas políticos é a natureza dos seres humanos. E para entender essa natureza é necessário descobrir como o ser humano constrói seu conhecimento do mundo. Enquanto filosofava sobre política, Locke foi nomeado secretário em uma missão diplomática em Brandenburgo. Após essa experiência em terras germânicas, voltou para Oxford.Na sua volta às aulas na universidade, Locke conheceu Lord Ashley, uma das figuras políticas mais poderosas da Inglaterra. Apesar de não ter habilitação para isso, Locke foi nomeado médico particular de Ashley. Nessa função, ele trouxe à luz um dos filhos do aristocrata e conduziu uma cirurgia que introduziu um tubo de prata para drenar com sucesso um abscesso no fígado de Ashley.
Enquanto trabalhava para Ashley, ele escreveu “Ensaio sobre a tolerância”, uma obra política na qual afirmou que ninguém sabe o suficiente para impor a outro a forma de sua religião. As opiniões que desenvolveu no livro sobre nossas responsabilidades morais e nossa liberdade eram revolucionárias para a Inglaterra do século 17. Em função disso, ele decidiu não publicar a obra. Quando Ashley se tornou Lorde Shaftesbury, em 1672, ele fez de Locke o secretário do Conselho de Comércio e Agricultura. No cargo, o filósofo ajudou a elaborar a constituição da Carolina, colônia britânica na América do Norte.
Locke começava assim a colocar em prática sua filosofia política. Suas ideias que constituíram a democracia liberal teriam forte influência nas décadas seguintes. Muitas delas estão presentes nas constituições dos Estados Unidos e do Reino Unido, e durante muito tempo na constituição francesa também. Esses pensamentos fizeram a base de sua obra-prima, o “Ensaio sobre o entendimento humano”. Contemporâneo de grandes cientistas, como Galileu Galilei e Isaac Newton, de quem tornou-se amigo, o pensamento de Locke reflete a revolução em andamento na ciência naqueles anos. O pensamento liberal de Locke se mostraria ainda mais ousado com a publicação em 1689 da obra “Dois tratados sobre o governo civil”. Nela, ele mostra como o assentimento do povo é o único fundamento da autoridade de um governo: “... qualquer autoridade que exceda o poder a ela conferido pela lei e faça uso da força que tem sob seu comando para atingir a vítima de forma não permitida por essa lei pode ser combatida como qualquer homem que mediante força viole o direito de outro”. Para Locke, o governo deveria agir somente com o objetivo de proteger a vida, a liberdade e a propriedade.
Locke sempre teve uma saúde que exigia cuidados, principalmente por conta da asma. Apesar de nunca ter se casado, ele amava uma das mulheres com que havia flertado na sua juventude: Damaris Cudworth que havia se casado com Sir Francis Masham. Mas eles continuavam a se corresponder e ele a freqüentar a residência do casal no campo. Lady Masham parecia entender como ninguém as necessidades emocionais e intelectuais do filósofo. Além disso, o ar do campo lhe fazia muito bem e um certo dia o casal convidou Locke para mudar-se definitivamente para a residência. Locke passou a ocupar dois dos quartos, mas não se aposentou. Ele era o principal conselheiro sobre assuntos políticos no Parlamento e viajava com frequência para Londres, além de continuar à frente do Conselho de Agricultura e Comércio.
Mas com a piora de sua asma, em 1699 ele foi obrigado a começar a abrir mão de sua atuação política. Nos quatro anos seguintes ele escreveria sobre diversos assuntos e conviveria harmoniosamente com o casal que lhe hospedava, num típico ménage à trois inglês, sem escândalos. Em 28 de outubro de 1704, John Locke morreu, após passar a véspera apoiado nos braços de Lady Masham.