6.7.07

A TEORIA VIGOTSKIANA SOBRE MEMÓRIA: POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES
PARA A EDUCAÇÃO
Almeida, Sandro Henrique Vieira de – PUC-SP
Antunes, Mitsuko Makino – PUC-SP
GT: Psicologia da Educação / n.20
Agência Financiadora: CNPq


Este texto tem como objetivo discutir as implicações da teoria vigotskiana sobre memória para a educação. Inicialmente serão discutidos os principais pressupostos teórico-metodológicos da psicologia sócio-histórica e as investigações vigotskianas sobre memória para que se possa, posteriormente, discutir as possíveis implicações destas proposições para a educação.

1. Aspectos gerais da teoria sócio-histórica e das investigações vigotskianas sobre memória
A teoria sócio-histórica (também conhecida como histórico-cultural ou Escola de Vigotski) teve seus primeiros e principais pressupostos teórico-metodológicos desenvolvidos no início do século XX, mais especificamente entre os anos de 1928 e 1934, por um grupo de cientistas da ex-União Soviética liderados por Vigotski.
Os caminhos traçados por este grupo tinham como principais diretrizes o materialismo histórico dialético, elaborados inicialmente por Marx e Engels e com importantes contribuições posteriores de Lênin, e a teoria de Darwin sobre a seleção natural das espécies.
Neste momento, as investigações vigotskianas tinham como eixo norteador três conceitos fundamentais: “(...) o conceito de função psíquica superior, o conceito de desenvolvimento cultural da conduta e o domínio dos próprios processos de comportamento.” (Vygotski, 1931; 1995, p. 19).[1]
Assim sendo, uma das preocupações centrais deste grupo neste período foi a investigação das funções psíquicas superiores, ou seja, aquelas caracterizadamente humanas. Para que estas funções sejam desenvolvidas é necessário que o sujeito se aproprie dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade.
No inicio de sua história ontogenética, o homem é um candidato à humanização, ou seja, torna-se humano ao apropriar-se da produção dos homens. Para humanizar-se o homem deve desenvolver suas funções psicológicas superiores e assim tornar-se cada vez mais livre, cada vez mais independente de suas necessidades naturais. As funções psicológicas superiores são desenvolvidas a partir das formas mais simples (funções psicológicas elementares), que são involuntárias e com uma relação imediata com a realidade.
As funções psicológicas elementares são predominantes na vida de um indivíduo por um curto espaço de tempo. Já em tenra idade a criança começa a se comunicar com o mundo por meio de sinais e instrumentos; suas relações já não são exclusivamente diretas e imediatas como em seus primeiros meses de vida.
Com o passar do tempo, por seu desenvolvimento, a criança, em e por sua atividade, vai intencionalmente usando instrumento físicos e linguagem como meios para sua ação sobre a realidade. Suas funções psicológicas já têm as características das funções psicológicas superiores (mediatas e intencionais), sendo estas operações externas. Com a complexificação das relações que essa criança estabelece com o mundo, aliada à complexificação de seu sistema nervoso (aparato biológico) e à apropriação dos conhecimentos humanos, a criança internaliza as estruturas que eram anteriormente exclusivamente externas:

Qualquer dos sistemas a que me refiro recorre a três etapas. Primeiro, a interpsicológica: eu o ordeno, você o executa; depois, a extrapsicológica: começo a dizer a mim mesmo; e logo a intrapsicológica: dois pontos do cérebro, que são estimulados a partir de fora, têm tendência a atuar dentro de um sistema único e transformar em um ponto intracortical. (Vygotski, 1931; 1991, p. 91).

Marx (1867; 1974, p. 31) já indicava a interiorização dos processos internos ao dizer que “(...) o movimento do pensamento é o reflexo do movimento real, transportado e transposto no cérebro do homem.” No entanto, é importante ressaltar que a formação da imagem subjetiva (também chamada de ideal ou reflexa) da realidade não deve ser explicada como decorrentes das propriedades anátomo-fisiológicas do encéfalo:

O materialismo se expressa aqui no fato de compreender que o ideal, como forma determinada da atividade social do homem, que cria objetos de uma ou outra forma, nasce e existe não na cabeça, mas com ajuda da cabeça na atividade material real como agente efetivo da produção social. (Ilyenkov, 1978, p. 186)

Assim, “(...) a natureza psíquica do homem vem a ser um conjunto de relações sociais deslocadas para o interior e convertidas em funções da personalidade e em formas de sua estrutura.” (Vygotski, 1931; 1995, p. 151).
Esse processo não ocorreu somente na evolução histórica do homem, mas também ocorre durante o desenvolvimento infantil, nas relações que a criança estabelece com o mundo, visto que a “(...) interiorização das acções, isto é, a transformação das acções exteriores em acções interiores, intelectuais, realiza-se na ontogénese humana.” (Leontiev, 1959; 1978, p. 184).
Para Vigotski, o processo de internalização deveria ser chamado processo de revolução, tendo em vista que há um salto qualitativo de uma estrutura para outra, a superação de um ponto nodal. “O salto é o processo de passagem de uma coisa de um estado qualitativo a um outro que é acompanhado por uma ruptura de continuidade.” (Kopnin, 1978, p. 216).
Há uma radical reestruturação da atividade psíquica e com isso há: “(...)1) uma substituição de funções; 2) mudança nas funções naturais (...); 3) o aparecimento de novos sistemas psicológicos, funcionais (ou funções sistêmicas) (...)” (Vygotsky, 1930; 1999, p. 55).
Ampliando um pouco mais a explicação do processo de internalização, Vigotski diz:

(...) [o] desenvolvimento, como freqüentemente acontece, não se move em círculo (...), mas ao longo de uma espiral, retornando em um plano superior a um ponto em que já passou.
Nós chamamos esta retirada da operação interna, esta internalização das funções psicológicas superiores conectadas com novas mudanças em sua estrutura, processos de revolução, tendo em mente principalmente o seguinte: o fato das funções psicológicas superiores serem construídas inicialmente como uma forma externa de comportamento e dependerem de um signo externo não é de forma alguma acidental, mas, ao contrário, é determinado pela natureza psicológica externa da função superior, que, como havíamos dito acima, não se origina como uma continuação direta dos processos elementares, mas é um método de comportamento aplicado no próprio indivíduo. (Vygotsky, 1930; 1999, p. 53).

Ao longo do desenvolvimento houve mudança de um processo que era interpessoal para um intrapessoal; é justamente essa estrutura qualitativamente nova que permite aos seres humanos controlar seu próprio comportamento.
Com o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, há mudanças filogenéticas e ontogenéticas, assim como mudanças estruturais e funcionais:

Geneticamente, em termos de filogênese, a característica básica é o fato de que elas [funções psicológicas superiores] foram formadas não como um produto da evolução biológica, mas do desenvolvimento histórico do comportamento; preservam uma específica história social. Ontogenéticamente, do ponto de vista estrutural, sua característica é que, em contraste com as estruturas imediatas dos processos psicológicos elementares, que reagem diretamente aos estímulos, são construídos baseados na utilização dos estímulos mediados (signos), e por causa disso, têm caráter mediado. Finalmente, com respeito à função, elas são caracterizadas pelo fato de que desempenham um papel novo e essencialmente diferente em comparação às funções elementares, e surgem como produto do desenvolvimento histórico do comportamento. (Vygotsky, 1930; 1999, p. 37).

Assim sendo, para o autor russo é necessário investigar não somente os aspectos filo e ontogenéticos, mas também o desenvolvimento histórico da humanidade.

Se desejarmos estudar a psicologia do homem cultural adulto, devemos ter em mente que ela se desenvolveu como resultado de uma evolução complexa que combinou pelo menos três trajetórias: a da evolução biológica desde os animais até o ser humano, a da evolução histórico-cultural, que resultou na transformação gradual do homem primitivo no homem cultural moderno, e a do desenvolvimento individual de uma personalidade específica (ontogênese), com o que um pequeno recém-nascido atravessa inúmeros estágios, tornando-se um escolar e a seguir um homem adulto cultural. (Vygotsky; Luria, 1930; 1996b, p. 151).

Para Vigotski, Luria, Leontiev e outros pesquisadores é o processo de apropriação dos conhecimentos e experiências historicamente acumuladas que permite ao indivíduo a possibilidade de se tornar pertencente ao gênero humano, desenvolvendo as funções psicológicas superiores: “A civilização é uma conquista demasiado recente da humanidade para que possa ser transmitida por herança.” (Vygotski, 1931; 1996a, p. 55). A educação, na constituição dessas funções, tem papel fundamental na construção da humanidade em cada indivíduo singular por meio da própria história de humanização dos homens.
É importante ressaltar que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores não extingue as funções psicológicas elementares, assim como as funções psicológicas superiores internalizadas não anulam as mediadas por estímulos externos, visto que Vigotski, fundamentado no materialismo histórico e dialético, não fazia a dissociação entre natural e social, entre os processos elementares e os superiores. O que ocorre é um domínio das formas superiores sobre as inferiores devido às diferenças qualitativas entre suas estruturas; há superação por incorporação.
E, assim sendo, “(...) as formas inferiores não se aniquilam, mas se incluem na superior e continuam existindo nela como instância submetida.” (Vygotski, 1931; 1995, p. 129).
As funções psicológicas internalizadas ficam cada vez mais interligadas, há uma mudança na relação existente entre as funções superiores, modificando a estrutura funcional da consciência e formando um novo sistema psicológico caracterizado pela intrínseca interconexão e inter-relação das funções. É esse sistema que dá ao indivíduo a percepção de totalidade do psiquismo.
Quanto mais o homem se apropria das objetivações humanas (genéricas), mais ele se individualiza, mais consciente ele está da produção de sua vida por sua atividade. Somente assim, em sua dimensão ontológica, do homem se tornando humano, é que poderemos pensar em liberdade, ou seja, na superação cada vez maior dos limites biológicos.
No caso específico da memória (capacidade de conservação e reprodução de informações), Vigotski aponta que a memória elementar caracteriza-se por ser involuntária e ter base biológica, tendo assim, uma relação direta e imediata com os estímulos externos. As informações armazenadas são muito próximas às detectadas pelos órgãos dos sentidos.

Essa memória [natural ou elementar] resulta da ação direta das impressões externas das pessoas e é tão direta quanto a percepção imediata, com a qual ainda não interrompe a conexão direta. Do ponto de vista estrutural, a mais importante característica desse processo como um todo é o imediatismo, uma característica que relaciona a memória da pessoa com a do animal; sendo correto chamá-la de memória natural. (Vygotsky, 1930; 1999, p. 46).

O autor russo aponta que com o desenvolvimento o indivíduo começa a utilizar instrumentos para a realização de suas atividades. Essas ferramentas medeiam a relação do homem com o mundo material, permitindo a estes uma maior liberdade, pois podiam ir além do que lhes era permitido pelo aparato biológico.
Com o auxílio dos instrumentos, o homem pôde dominar voluntariamente a memória: “O desenvolvimento histórico da memória começa a partir do momento em que o homem, pela primeira vez, deixa de utilizar a memória como força natural e passa a dominá-la.” (Vygotsky; Luria, 1930; 1996b, p. 114)[2]. O homem começa a utilizar o próprio corpo, madeiras, pedras e cordas como meios auxiliares em sua organização da vida cotidiana. Exemplos dessa utilização é o uso de pequenas pedras (cálculos) para contar os animais do rebanho ou o comportamento de contar nos dedos uma soma qualquer.
Ao transformar um objeto da natureza em instrumento, o homem teve que se apropriar da natureza e da sua (do homem) realidade social e conhecer as propriedades dessas realidades para transformar o objeto em instrumento.

Esse domínio, como se dá com o domínio de qualquer força natural ou elementar, só significa que, em certa medida, o desenvolvimento do homem acumula – no caso em questão – experiência psicológica e conhecimento adequado das leis, por meio das quais a memória opera e começa a incorporar essas leis. (Vygotsky; Luria, 1930; 1996b, p. 114).

Essa transformação de objeto em instrumento é o processo de objetivação, mas que só foi possível graças à apropriação que o homem fez da realidade e das propriedades do objeto. O objeto não sofreu apenas a ação humana, mas passou a comportar funções sociais criadas pelo homem. E para que esse objeto (objetivado) se tornasse realmente um instrumento, ele foi apropriado por outros homens como instrumento, que o objetivaram e o aperfeiçoaram ou criaram outros a partir do primeiro.
Um rico exemplo de memória mediada por estímulos externos é a escrita assim como outras manifestações culturais.

Tudo o que a humanidade enculturada lembra e conhece hoje em dia, toda a sua experiência acumulada em livros, vestígios, monumentos e manuscritos, toda essa imensa expansão da memória humana – condição necessária para o desenvolvimento histórico e cultural do homem – deve-se à memória externa baseada em signos. (Vygotsky; Luria, 1930; 1996b, p. 120).

Como já apontado há a internalização das funções psicológicas superiores, o indivíduo começa a sistematizar seu conhecimento, desenvolvendo ainda mais a memória mediada que, assim como seu pensamento, está sendo organizado por conceitos. A memória torna-se cada vez mais lógica, isto é, a memória intencional baseia-se no pensamento abstrato e se organiza em conceitos. Esses processos são, agora, predominantemente internos e “(...) ao chegar à adolescência, passa à mnemotécnica interna que pode ser denominada memória lógica ou forma interna de memorização mediada.” (Vygotski, 1931; 1996a, p. 137).
Percebe-se até aqui a mudança que ocorre na estrutura da memória, que passa de mneme (elementar) para mnemotécnica (superior), ou seja, de uma estrutura imediata para uma mediata, com um elo entre o estímulo e a ação, sendo que, como já explicitado, a forma superior supera por incorporação a inferior.
No entanto, como o desenvolvimento, não é somente a estrutura da memória que se modifica, mas também, e principalmente, modificam-se as relações que essa função psicológica estabelece com as demais; são estabelecidas relações interfuncionais assim como uma interconexão.
Recordar é, agora, buscar uma seqüência lógica e essa nova função está fundamentada em “(...) uma complicada fusão do pensamento e a memória, que tem recebido a denominação empírica de memória lógica.” (Vygotski, 1930; 1991, p. 76).
As funções psicológicas, cada vez mais, estão inter-relacionadas, isto é, cada função psicológica estabelece relações com as demais funções, proporcionando assim, um funcionamento integrado do psiquismo, a formação de um sistema psicológico.
Com a apropriação das formas superiores, o indivíduo (o adolescente e o adulto) começa a ter maior controle de suas ações e a memória passa a ser uma função do pensamento, ou seja, o indivíduo recorda ou memoriza um conteúdo que ele deseja e o faz por meio de signos auxiliares. Esses conteúdos memorizados são constituídos de elementos abstratos (assim como de conteúdos gráfico-visuais) e a memória baseia-se na lógica.
Desta forma Vigotski pôde estabelecer uma ligação entre as funções psicológicas superiores com o desenvolvimento cultural e o domínio da conduta, os três fundamentos dos estudos vigotskianos.
Com o desenvolvimento das funções psicológicas superiores é possível a ação voluntária do indivíduo; ação esta que não é imediata, como conseqüência direta dos estímulos ambientais: “(...) uma ação voluntária começa somente aonde um indivíduo controla seu próprio comportamento com a ajuda de estímulos simbólicos.” (Vygotsky, 1930; 1999, p. 36). Assim, o sujeito pode planejar sua ação, ação esta que se torna intencional, orientada pela realidade.
O autor russo considerava a memória uma função de suma importância para o comportamento voluntário. Por meio da evocação de conteúdos memorizados (armazenados) é possível ao indivíduo a elaboração de estratégias de ação, assim como permite ao sujeito que continue se lembrando dessas estratégias enquanto a ação é executada. Vigotski tanto valorizava essa função psicológica, que concordava com a proposição spinoziana de que “Intenção é memória.” (Spinoza, apud Vygotski 1932; 1993a, p. 374).
Em síntese, pode-se dizer que, segundo Vigotski, com a utilização dos meios auxiliares foi possível ao homem ir além de suas possibilidades e limitações naturais. A utilização dos instrumentos culturais é aprendida pelas crianças quando estas se apropriam dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade e começam a organizar suas funções psicológicas, tendo como base o uso de conceitos e abstrações. Essas funções psicológicas e, mais especificamente, a memória, são internalizadas, tornando-se intrapsicológicas, proporcionando ao sistema psicológico um funcionamento intencional. Assim, boa parte dos conteúdos recordados por um adulto, que tenha desenvolvido suas funções psicológicas superiores, são mediados por signos internos ou externos, como a escrita, que pode aumentar a possibilidade de controle da conduta e do livre arbítrio.

2. Memória, desenvolvimento e aprendizagem
Em toda a obra vigotskiana há uma intensa preocupação com a educação (1926; 2001a, 1932; 1993a, 1931; 1995), e em diversos momentos de sua obra ele discutiu a relação entre memória e educação.
Na obra ‘Psicologia pedagógica’ (1926; 2001b), Vigotski aponta que a memorização pode ser potencializada com exercícios (práticas de repetição, por exemplo), iniciando a discussão sobre o uso de relações especiais (associações). Em um segundo momento – após/durante suas investigações sobre as funções psicológicas superiores (1928-1934) – o autor russo passa a discutir a possibilidade de controlar/melhorar a memorização, tendo como referência à memória mediatizada por instrumentos externos (como a escrita) ou internos (linguagem).
Essa nova forma de abordar o desenvolvimento psicológico (ou seja, em sua materialidade, historicidade e dialeticidade) permitiu a Vigotski compreender o desenvolvimento em sua totalidade, integrando não só educação e memória, mas o desenvolvimento da memória com as demais funções psicológicas (sistema psicológico) e educação e desenvolvimento. Os dois primeiros tópicos apontados já foram aqui sucintamente discutidos, fazendo-se necessária a abordagem mais específica do último – a relação educação/desenvolvimento.
De toda a obra vigotskiana, essa relação (em outros termos, a relação ensino-aprendizagem, tendo como núcleo a zona de desenvolvimento proximal) é uma das mais, se não a mais, debatida e aplicada, como indicam Wertsch e Tulviste (2002) e Silva (2003). No entanto, aqui essa relação será investigada tendo a memória como eixo.
Nos textos de Vigotski não há explicitamente uma definição de aprendizagem. Ter-se-á, pois, que deduzir esse significado, tendo a relação desenvolvimento/ aprendizagem e o conceito de zona de desenvolvimento proximal como referências.
Diferentemente dos autores de sua época, Vigotski entende que a aprendizagem e o desenvolvimento seguem linhas diferentes e que suas inter-relações não são simétricas nem paralelas. Para o autor “(...) o processo de desenvolvimento não coincide com o da aprendizagem, o processo de desenvolvimento segue o da aprendizagem, que cria a zona de desenvolvimento potencial.” (Vigotskii, 1933; 1994, p. 116).[3]
Para Vigotski, a zona de desenvolvimento proximal é “A diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio dos adultos e o nível das tarefas que podem desenvolver-se como uma atividade independente define a área de desenvolvimento potencial da criança.” (Vigotskii, 1933; 1994, p. 112). Com isso, a aprendizagem, como expressara Vigotski nesse mesmo texto, é fonte do desenvolvimento, impulsionadora deste e, num movimento dialético, por ele impulsionada.
É importante explicitar que a zona de desenvolvimento proximal não é exclusiva dos primeiros anos do desenvolvimento. Nos textos vigotskianos em geral ela tem a criança como foco (por exemplo, 1933; 1994; 1934; 1996c, 1934; 1993b); no entanto, essa proposição é válida para qualquer idade. Faz-se necessário explicar tal afirmativa e para tal retomar-se-á à questão da aprendizagem.
Tendo os escritos citados de Vigotski como referência primária e sua obra total como base, pode-se definir aprendizagem como sendo a apropriação pelo indivíduo dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade, compreendendo estes desde as produções acadêmicas/formais até os hábitos cotidianos de uma sociedade; enfim, é a apropriação das ações práticas e teóricas elaboradas social e historicamente. Nessa conceituação está sintetizada tanto a aquisição de conteúdos quanto a consolidação dos mesmos na memória e a conexão dinâmica dessas informações com os demais conteúdos anteriormente apropriados pelo indivíduo em sua atividade.

É somente pela aprendizagem em suas formas especificamente humanas, isto é, quando há a transmissão de indivíduo para indivíduo das ações práticas e teóricas elaboradas socialmente, que este processo, impressionante em sua complexidade e cheio de contradições dialéticas, é completado. (...) a assimilação que ocorre durante o processo de aprendizagem também resulta em adaptação à atividade que não é somente resposta às características específicas da existência humana, mas uma atividade que responde à existência de ambos no mundo material e no mundo das relações humanas e também no mundo da idéias, conceitos e conhecimento em que a experiência da atividade social geral é refletida. Aprendizagem, então, é uma forma de manifestação da vida do homem: respondendo às suas necessidades e motivos vitais; ela é intencionalmente motivada e é por si mesma capaz de tornar-se um fim. Ela é, portanto, sujeito de leis internas, as leis que dirigem o desenvolvimento da vida do indivíduo. (Leontiev, 1961, pp. 243-244).

Essa definição quase que por si só explica o conceito de zona de desenvolvimento proximal e o porquê dela ser válida para todos os indivíduos independentemente da idade. Como já exposto, os processos psicológicos superiores são, de início, exclusivamente externos, internalizados pelo indivíduo ao longo de seu desenvolvimento, à medida que o sujeito apropria-se dos produtos humano-genéricos. Em um segundo momento, essas funções psicológicas, por suas inter-relações, formam um sistema psicológico com um centro único, a personalidade.

Dito isto, não é necessário sublinhar que a característica essencial da aprendizagem é que engendra a área de desenvolvimento potencial, ou seja, que faz nascer, estimula e ativa na criança um grupo de processos internos de desenvolvimento no âmbito das inter-relações com os outros, que, na continuação, são absorvidos pelo curso anterior de desenvolvimento e se convertem em aquisições internas da criança. (Vigotskii, 1933; 1994, p. 115).

Quando um conteúdo é aprendido, o indivíduo memorizou aquelas informações que, em conexão com aquelas por ele já apropriadas, são significadas ou re-significadas; isto é, o indivíduo promove a síntese de seus conhecimentos, alterando assim sua compreensão da realidade.
Essa alteração – ou seja, o quanto, o que e até mesmo quando, haja vista que um dado conhecimento pode ter novas significações durante o tempo – é muito variável, pois depende não só dos conteúdos apropriados, mas também de como o indivíduo significou estes conhecimentos (sentido pessoal) e do tipo de apropriação que foi realizado, se baseado em conceitos espontâneos ou científicos, se na cotidianidade ou por meios sistematizados, assim como por quais caminhos esse conhecimento chegou a ele.
Todo o aprendizado ocorre em conexão com as emoções envolvidas nesse processo, assim como com os conhecimentos anteriormente apropriados pelo indivíduo. Muitas vezes os conteúdos memorizados não têm uma relação direta com os já adquiridos pelo indivíduo ou são indiferentes ou frustrantes, mas é possível que esse conhecimento seja re-significado em um outro momento se houver aprendizado de novos elementos por meio da atividade.
Nesse ponto a educação tem um papel fundamental. Nas palavras de Saviani (1989, p. 86) “Se a educação é mediação, isto significa que ela não se justifica por si mesma mas tem sua razão de ser nos efeitos que se prolongam para além dela e que persistem mesmo após a cessação da ação pedagógica.”
Os efeitos que persistem não estão somente nos indivíduos que puderam desenvolver suas funções psicológicas superiores e que agem intencionalmente na realidade, mas também persistem, principalmente, na sociedade que se constrói pelo trabalho conjunto desses indivíduos.
Não é demais reafirmar que nesse processo o indivíduo deve ser compreendido como um todo e que aqui se está evidenciando os processos mnemônicos, embora estes certamente não existam sozinhos. “Em realidade, a mudança das conexões interfuncionais, isto é, a mudança da estrutura funcional da consciência é o que constitui o aspecto central de todo o processo de desenvolvimento psicológico.” (Vygotski, 1934; 1993b, pp. 210-211).
Exemplificando essa interconexão e inter-relação das funções psicológicas e a integração da consciência, tomemos um estudante qualquer que se prepara para um exame, lendo um livro: a percepção do mundo a sua volta se altera, a atenção centra-se no texto, nos pontos mais importantes que devem ser memorizados; o pensamento estabelece relações lógicas sobre o conteúdo estudado, além de organizar as outras funções. Nesse processo está envolvida também a linguagem, tanto a escrita (texto) quanto a interior, que auxilia no estudo.
Tornando um pouco mais complexa essa situação hipotética, o estudante precisa criar um tema de pesquisa inédito e o conteúdo do texto que ele está lendo é o principal argumento para o possível tema. Para resolver essa tarefa não basta ao estudante reproduzir os projetos e pesquisas estudados; um tema inédito exige a criação de algo novo (imaginação criadora) e para tal é imprescindível, além de um amplo conhecimento dos produtos culturais da humanidade, que ele tenha controle de suas ações, de sua conduta. Nesse processo estão envolvidos os motivos geradores da ação, os afetos e as emoções. Dependendo de quais motivos e afetos estão encerrados na atividade, o desempenho do estudante será mais ou menos eficaz. Supondo que o aluno esteja fazendo a tarefa obrigado e não tem o mínimo interesse nos resultados e processos de seu trabalho, pode-se supor que sua atenção será baixa ou que terá que se esforçar mais para mantê-la em um nível satisfatório. Conseqüentemente, a memorização será afetada, assim como os demais processos psicológicos, pois estes funcionam como uma totalidade, inter-relacionados. Com esse exemplo pode-se observar a interconexão das funções psicológicas e o quão é importante o desenvolvimento das formas superiores para o domínio da conduta. Pode-se observar também o quanto as ações cotidianas (e não cotidianas) dependem das informações apreendidas pelo indivíduo em sua história de vida, seja para escrever, falar, criar, planejar o futuro, sendo necessária a recordação de informações. Pode-se observar também o quão é importante é o desenvolvimento das formas superiores do psiquismo para o domínio da conduta.
Tendo em vista esta dependência das informações apropriadas (memorizadas) pelo indivíduo, é possível ao educador – e às pedagogias que os fundamentam – desconsiderar a memória enquanto processos de relevância ímpar para o desenvolvimento do indivíduo? Certamente não! No entanto, a história da relação educação-memória não é nada amistosa.
É bastante conhecido o uso que a pedagogia tradicional fez (e faz) do decorar, ou em outras palavras, da memorização mecânica (ou por repetição) de conteúdos. Tal modelo de aprendizagem é claramente expresso nas formas de avaliação desta pedagogia, cuja principal característica é a reprodução, palavra por palavra, ipsis litteris, das palavras do professor/livro.
Assim sendo, os processos mnemônicos neste modelo restringem-se à memória mecânica, estudada por Ebbinghaus (1964) no final do século passado. As curvas de memorização e esquecimento por ele elaborado são a principal referência para se justificar sua eficiência.
Já o modelo pedagógico subseqüente a este, o escolanovista, desconsiderou totalmente a investigação e a utilização de recursos mnemônicos como instrumento de aprendizagem. Na ânsia de se contrapor aos pontos críticos da pedagogia tradicional, os autores escolanovistas desconsideraram os procedimentos de ação tradicional junto com processos importantes (como os relacionados à memória) envolvidos na relação ensino-aprendizagem. Houve (e há) neste modelo uma supervalorização dos aspectos emotivos e procedimentos envolvidos na educação em detrimento do aprendizado de conteúdo. Esta pedagogia “(...) considera que o importante não é aprender, mas aprender a aprender.” (Saviani, 1989, p. 21).
Atualmente há uma tendência em resgatar os estudos da memória (utilizando exclusivamente os modelos das neurociências) em diversas teorias educacionais e psicológicas (cf. Gentile, 2003). Existem diversos modelos explicativos do funcionamento e estrutura da memória nas neurociências, variando de uma para a outra de acordo com as referências teórico-metodológicas dos pesquisadores que as elaboraram. O que ocorre em algumas das teorias educacionais é uma mera e plena transposição desses modelos para a realidade escolar, o que pode acarretar em uma redução dos complexos processos que envolvem a memória e a educação a modelos puramente biológicos.
Isto posto, faz-se necessário que o educador vá além destas três posições. No entanto, como isto é possível? Que ações são necessárias para que o educador não entenda a memória como um depósito ou como um monstro responsável pelos dilemas da educação contemporânea?
Primeiramente, e essencialmente, é necessário que o educador conheça a estrutura e o funcionamento dos processos mnemônicos, tanto em seus aspectos neurais (pelo menos em seus aspectos gerais, tomando, é claro, o cuidado para não se restringir à elas) quanto aos demais aspectos, como por exemplo, a relação da memória com as outras funções psicológicas, as várias formas de se organizar o espaço escolar e o trabalho educativo para que os conteúdos sejam efetivamente memorizados. Enfim, o educador deve conhecer o que é e como funciona a memória tanto filo quanto ontogenéticamente.
Isto é necessário para que os educadores planejem suas aulas tendo em vista o como os alunos aprendem, seus diversos tipos de memória e a melhor forma de apropriação de conteúdos pelos discentes, elaborando assim os melhores caminhos e técnicas para fazê-lo.
Posteriormente, o educador deve organizar a transmissão dos conteúdos escolares de tal forma que haja não somente a memorização das informações, mas que também haja a relação/aproximação destes conteúdos com os outros já aprendidos, assim como com a sua vida cotidiana. Desta forma é relevante o planejamento da seqüência dos conteúdos, o melhor encadeamento das informações para que sujeito possa relacionar os conteúdos corretamente promovendo assim um efetivo desenvolvimento do indivíduo e uma ampliação de sua zona de desenvolvimento proximal.
Os elementos aprendidos são relacionados com os demais, desconstruindo a idéia de que cada conteúdo/disciplina é uma gaveta/receptáculo sem conexão com os outros conhecimentos. Assim, os conhecimentos apropriados podem ser compreendidos em sua totalidade e não de forma fragmentada, como um arquipélago de informações.
Entende-se aqui que este pode ser um rico instrumento para que o aluno (assim como o professor) passe a significar a educação/sistema educativo de uma outra maneira, valorizando-a, pois participará efetivamente do processo ensino-aprendizagem.
Por fim, é necessário uma dupla ressalva:
1. o modelo vigotskiano de estrutura e funcionamento da memória é bastante rico e pode contribuir muito para a ação educativa. No entanto, nos últimos anos houve avanços significativos no estudo da memória, sendo necessário também o estudo e compreensão dos modelos atuais.
2. ressaltamos aqui, por um simples fato de delimitação de tema, a memória. É de extrema importância investigá-la, estudá-la e compreende-la em relação com as demais funções psicológicas, com o conhecimento do ambiente/realidade e, mais especificamente na relação com a educação, conhecer as políticas educacionais e modelos pedagógicos envolvidos no processo educativo.

3. À guisa de conclusão
Vigotski elaborou e iniciou um grande projeto de psicologia, com seus interesses abarcando uma extensa gama de áreas indo desde os estudos sobre fisiologia dos processos nervosos até a filosofia e história da psicologia.
Nos estudos vigotskianos sobre memória esta característica fica evidente, haja vista que o autor discutiu tanto a organização e funcionamento cerebral quanto as concepções de homem/mundo que fundamentaram as investigações sobre a psicologia da memória.
Para Vigotski era essencial a apropriação pelo indivíduo dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade. Essas informações (memorizadas pelo sujeito) são o substrato da ação presente e do planejamento da ação futura, ou seja, eles são o fundamento do controle da conduta, não sendo exagero afirmar que, para o autor russo, a memória cumpria um papel central na atividade teleológica; tanto que ele aceitava a premissa spinoziana de que intenção é memória.
Apesar dos conteúdos memorizados serem o fundamento da ação intencional, faz-se relevante ressaltar que essa condição é necessária, porém não suficiente, para o processo de humanização do indivíduo. Para tal é urgente o desenvolvimento pleno das funções psicológicas superiores (e da consciência) e, mais do que isso, a mudança radical das condições concretas de existência do indivíduo para que, enfim, os homens passem do reino da necessidade para o reino da liberdade, no qual este possa ser livre.
Dessa forma, vê-se a intrínseca relação entre memória e conhecimento; conhecimento e educação; educação e aprendizagem; aprendizagem e desenvolvimento ontogenético; ontogênese e sociedade; sociedade e história e, por fim, reiniciando o processo em espiral, entre história e memória.


4. Referências

EBBINGHAUS, Hermann. Memory: a contribution to experimental psychology. Tradução: Henry Ruger e Clara Bussenius. New York: Dover, 1964. 123 p.

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[1] O primeiro ano refere-se à data da publicação original e a segunda ao ano da edição utilizada. Essa distinção só será apresentada nas obras que se julgar necessário para situá-las no tempo.

[2] Tal posição (que pode ser estendida às demais funções psicológicas superiores) parece ter fundamento na passagem de Engels (1876; 1985, p. 224): “(...) somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a Natureza como um conquistador dominando um povo estrangeiro, como alguém situado fora da Natureza; mas sim que lhes pertencemos, com a nossa carne, com o nosso sangue, nosso cérebro; que estamos no meios dela; e que nosso domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder chegar a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente.”
[3] A área de desenvolvimento potencial é outra denominação para zona de desenvolvimento proximal. O nome dado varia entre as traduções, sendo a expressão proximal a que mais se aproxima do termo russo utilizado por Vigotski.