13.12.08

Quarenta anos depois, especialistas apontam 'herança maldita' do AI-5

Ato publicado em 1968 mergulhou o país em fase mais sombria da ditadura.Para analistas, 'legado' da época sobrevive em práticas políticas até hoje.

Depois de 40 anos da aprovação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), não ficaram apenas as lembranças de perseguição e tortura do regime militar brasileiro (1964-1985), segundo acadêmicos ouvidos pelo G1. Para eles, muitas das práticas iniciadas na época deixaram marcas na forma como hoje se faz política no país.

O texto, aprovado numa sexta-feira 13 de dezembro de 1968, deu plenos poderes ao presidente-marechal Artur da Costa e Silva e, entre outras medidas, permitiu o fechamento do Congresso, a intervenção do governo federal nos estados, a censura prévia e suspendeu o habeas corpus em casos de crimes políticos ( leia a íntegra do AI-5 ).

A professora de ciência política Maria Antonieta Leopoldi, da Universidade Federal Fluminense (UFF), vê pelo menos dois legados negativos do AI-5 nos dias de hoje.

Para ela, ao contrário dos militantes que entraram para a luta armada – como o ex-ministro José Dirceu e o petista Vladimir Palmeira – e foram exilados, toda uma geração de jovens não voltou para a política.

É desta época também, segundo a pesquisadora, a herança de uma autonomia da área do governo que, afirma, perdura até hoje. Para ela, o fato de as equipes econômicas não prestarem contas ao Congresso sobre a política de juros altos é um legado da época. “O Delfim Netto [então ministro da Fazenda] se tornou um verdadeiro ‘czar’ da economia. Os militares queriam que o Brasil crescesse, não interessava a maneira de governar. Delfim monta uma área econômica com pessoas leais a eles e criaram esse insulamento burocrático – hoje a gente paga esse preço do Ministério da Fazenda e do Banco Central que não tem muitos canais de comunicação com a sociedade”. O G1 tentou falar com o ex-ministro Delfim Netto, um dos signatários do AI-5, que afirmou, por meio de sua assessoria, que já havia falado tudo sobre o período aos livros de história. O professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) David Fleischer diz ver com “estranheza” a relutância do governo Lula, após seis anos, para abrir os arquivos da época, apesar das cobranças de entidades de direitos humanos e até de integrantes do próprio governo


Reunião que aprovou o AI-5, com o presidente Artur da Costa e Silva à cabeceira da mesa (Foto: Arquivo / AE)

“Tem muita gente de destaque no governo Lula que foi atingida duramente na luta contra o regime militar naquele período. A minha impressão é que o pessoal do governo Lula tem uma certa apreensão com relação às Forças Armadas”, afirma. O cientista político lembra o episódio recente em que as Força Aérea rechaçou, com apoio do Exército e Marinha, a punição a acusados de tortura durante o regime militar.








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MPs e violência

Já para o professor de sociologia da Unicamp Marcelo Ridenti o excesso de medidas provisórias editadas pelos governos é uma versão atual do decreto-lei, instituído pelo AI-5 e que não precisava passar pelo Congresso. “Elas [as medidas provisórias] que até hoje o governo tem legislado muito com elas são herdeiras de uma prática autoritária. É um jeito de governar com o Executivo no comanda o tempo todo”, compara o professor, um dos organizadores do volume “O golpe e a ditadura militar, 40 anos depois, 1964-2004” (EDUSC, 2004).
Passeata pela morte do estudante Edson Luís, no Rio (Foto: Arquivo / Agência Estado)

Outra “herança maldita” da época, segundo Ridenti, é a tolerância da sociedade brasileira à prática de tortura.

“É um tipo de prática da política que continua vigorando até hoje para presos comuns. É sabido que nas delegacias de policia, embora seja ilegal, você tem confissões por meio de torturas. É um legado também complicado dessa época, do AI-5 que, de certa maneira, deu condições para acobertar essa situação”, afirma. O professor cita como exemplo o recente caso de um cabo da Polícia Militar, absolvido da acusação de homicídio em júri popular, que matou o menino João Roberto, de 3 anos, ao confundir o carro da família com o de bandidos. “É justamente essa a mentalidade. Houve um engano, mas se fosse um bandido, você poderia punir com crime de morte? É a violência social incorporada pelas pessoas no dia-a-dia. O período da ditadura deu muita margem para que autoridades politicias exercessem arbitrariedades. A decisão do júri mostra que está incorporada em parte significativa da sociedade essa mentalidade violenta: a polícia tem que matar bandido. Se matar algum inocente por acaso, paciência”, critica.

Legado 'positivo'
Se é possível ver aspectos positivos do período chamado de “ditadura dentro da ditadura”, a professora Maria Antonieta Leopoldi aponta o regime militar brasileiro como um dos únicos que manteve, na maior parte do tempo, partidos políticos, Congresso e eleições presidenciais com mandato. “No Brasil, mesmo com um Congresso controlado e partidos que o regime militar criou, você teve uma vida política partidária, fragmentada mas houve. Isso permitiu uma transição mais tranqüila à democracia. Partidos como o PDT e o PT são formados em 79, com a abertura”, lembra. Para Marcelo Ridenti, embora seja uma “época terrível da história do Brasil”, não se deve ocultar o fato de que houve uma certa modernização da sociedade brasileira, que chama de “modernização autoritária”. “Outras ditaduras da América Latina foram retrógradas do ponto de vista econômico. No Brasil, se promoveu um certo desenvolvimento, ainda que com preço político absurdo. Houve avanços nas áreas de educação, comunicações. Não se pode imaginar que os militares eram demônios. Atuaram num processo político contraditório.”
Fonte: G1