4.2.11

Florianópolis Ilha misteriosa


Praia da ilha do Campeche / Foto: Valéria Lages

Litoral catarinense esconde tesouros arqueológicos e rara beleza

VALÉRIA LAGES

Mais de 180 instigantes desenhos gravados em pedra há 6 mil anos, rochas enormes encontradas em posições bastante estranhas, ossadas pré-históricas, pontas de flechas e machadinhas, ruínas da época da caça às baleias. Um legítimo museu a céu aberto. Além do valioso acervo arqueológico, a ilha do Campeche exibe ainda uma exuberante beleza natural. Aves e animais em extinção vivem em meio à Mata Atlântica preservada, e rica fauna submarina se esconde em cavernas e piscinas naturais sob águas claras esverdeadas. Vez ou outra, botos e baleias-francas freqüentam seu entorno, e pingüins e lobos-marinhos chegam até a fina areia branca da pequena praia de 500 metros de extensão. Tudo isso a apenas 30 minutos de barco da praia da Armação do Pântano do Sul, sudeste de Florianópolis.

Devido à importância histórica e ambiental, que lhe valeu o título de Patrimônio Arqueológico e Paisagístico Nacional, a ilha do Campeche será transformada no primeiro parque ecológico e pré-histórico do país, segundo projeto do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável pelo tombamento. E também irá se candidatar ao título de Patrimônio da Humanidade, concedido pela Unesco, agência cultural da Organização das Nações Unidas (ONU).

Entrecortada por 24 trilhas – muitas abertas por imigrantes açorianos e por homens que caçavam baleia, no século 18 –, a ilha tem área equivalente a 59 campos de futebol, com 592 mil metros quadrados. Com espécies secundárias da Mata Atlântica, a floresta se estende até o mar, onde tocas abrigam garoupas, meros, polvos e barracudas. Nos troncos das árvores crescem orquídeas, bromélias e orelhas-de-pau (enormes cogumelos alaranjados). E na beira da praia há árvores frutíferas plantadas por membros da Associação Couto de Magalhães de Preservação da Ilha do Campeche, entidade que detém a concessão da maior parte das terras. Além de percorrer mata, restinga e costões que levam a diversos sítios arqueológicos pré-históricos, as trilhas ainda escancaram vistas especiais das praias e ilhas da costa leste de Florianópolis.

O mar, ao redor da ilha, às vezes reserva surpresas e, dependendo do dia, pode fazer da travessia uma aventura. As frentes frias que chegam à região costumam trazer fortes ventos que, eventualmente, impedem os barcos de sair. Mas na maioria das vezes a viagem é tranqüila. Às 23 horas apagam-se as escassas luzes mantidas por geradores, e a noite predomina, mandando para a cama os poucos pescadores que moram na ilha.

Marcas do passado

Vestígios evidenciam a presença de diferentes grupos humanos na ilha do Campeche em diversas épocas. Dos povos primitivos, sabe-se que eram caçadores, pescadores e coletores que se alimentavam de moluscos (ostras, berbigões, mariscos), origem dos sambaquis – grande quantidade de conchas e outras sobras do cotidiano acumuladas em uma espécie de lixo pré-histórico. Os itamaracás pescavam e caçavam, como indicam pontas de flecha e lança. Índios tupis-guaranis também habitaram a ilha.

Do período pré-histórico, há três tipos de sítios arqueológicos: os de habitação, com restos de cozinha e de sepultamento; oficinas líticas (amoladores ou brunidores nas pedras onde eram afiadas, polidas e arredondadas ferramentas utilitárias); e artes rupestres, também chamadas de inscrições ou petróglifos (desenhos feitos por meio de abrasão ou raspagem, a maior parte sobre o diabásio, rocha escura e de superfície lisa que esquenta ao sol). "Pesquisas subaquáticas devem revelar muitos outros indícios submersos", ressalta Dalmo Vieira Filho, superintendente do Iphan.

As oficinas líticas estão na beira da praia, supostamente onde trabalhavam os antigos habitantes da ilha. "Talvez precisassem da água do mar e da areia para esfregar pedra bruta, conchas, ossos e dentes de animais sobre a rocha", analisa Rossano Bastos, arqueólogo do Iphan. Nos sítios caracterizados como de habitação, encontram-se pedras afiadas, ossadas e pedaços de cerâmica, alguns com desenhos iguais aos feitos sobre as rochas.

À beira-mar ou em ilhas – algumas de difícil acesso, o que indica a habilidade para navegação dos antigos povos –, a arte rupestre está presente em quase todo o litoral catarinense, mas é no Campeche que se encontra a maior concentração. "Devido à diferença de luz, a visibilidade das inscrições varia de acordo com o horário do dia e a estação do ano. Por isso, ainda podem ser encontradas mais sinalações", ressalta o arqueólogo. A quantidade surpreende os visitantes: "Vi marcas pré-históricas em muitos lugares, mas nada como aqui", diz o francês Hugues Picon, que já esteve em 64 países.

As inscrições rupestres têm formas geométricas e antropomórficas, semelhantes às de outras encontradas em diversas partes do mundo. "Isso pode sugerir que seus autores eram nômades, mas a série de hexágonos, que lembra uma rede de pesca, é exclusiva da ilha do Campeche", destaca Keler Lucas, pesquisador e autor de livros sobre arte rupestre.

Outras peculiaridades tornam notáveis os rochedos da ilha. Com cerca de 10 metros de altura, a Pedra Fincada parece ter sido colocada em pé. No amanhecer do dia 21 de dezembro (solstício de verão, que marca o dia mais longo do ano), sua sombra se projeta sobre pedras no chão, sinalizadas com gravuras. No equinócio de outono (21 de março), quando se registra uma igual duração do dia e da noite, a sombra bate em outro grupo de pedras, também assinaladas. Seria esse o calendário de seres que, vivendo junto à natureza, dependiam do dia e das estações para suas atividades? Teria a Pedra Fincada sido colocada na posição em que está para permitir observações cosmológicas, a exemplo de Stonehenge, na Inglaterra, onde um complexo observatório astronômico foi elaborado com rochas há milhares de anos?

Com formato fálico, a Pedra Fincada evoca também outras interpretações. O pesquisador americano John Robert, diretor da Bradshaw Foundation, entidade internacional que estuda a arte rupestre, a definiu como a delimitação da porção masculina da ilha. A parte feminina seria marcada por outra grande pedra que, devido à sua forma, foi apelidada de Bunda da Shirlei, brincadeira com uma antiga freqüentadora da ilha.

A Pedra do Ímã também dá o que pensar: desnorteia as bússolas. O fenômeno pode ser causado por alta concentração de ferro na rocha, metal que altera o comportamento do instrumento. O curioso é que há desenhos apenas nessa pedra, em nenhuma mais de seu entorno. Apenas coincidência ou os povos pré-históricos já sabiam de seus efeitos?

Pedras indecifráveis

É impossível ficar indiferente às inscrições. A autoria das sinalações é incerta, porque vários povos habitaram a ilha. A idade exata também não se sabe – podem ter até 6 mil anos, como outros petróglifos de Florianópolis analisados com carbono 14. E o significado, a mais desafiadora das discussões, continua um mistério.

Apesar de a ilha ser quase toda circundada por costões, praticamente todos os petróglifos estão na sua face leste. Por isso, talvez estejam relacionados com o nascimento do sol e da lua. Alguns desenhos foram feitos em lugares que demandam muita habilidade para ser alcançados, como o conjunto apelidado de Letreiro, grande painel localizado a 8 metros de altura.

Keler Lucas está convencido de que as inscrições são obra de povos que reverenciavam as forças da natureza. "São símbolos universais, considerados sagrados nas religiões primitivas e feitos em locais onde eram realizados os rituais. A ilha do Campeche é a nossa ilha da Páscoa", compara. Segundo ele, o "homenzinho", desenho que parece uma pessoa com os braços para cima, encontrado em diversas partes do planeta, expressaria um tipo de saudação. O estudioso também analisa a arte conhecida como "dupla máscara", semelhante à feita pelos astecas: "Uma das máscaras tem o sinal da terceira visão entre os olhos, que representa o uso de 100% da capacidade mental, simbologia também presente entre os maias, egípcios e hindus. A outra máscara corresponde ao corpo etéreo", explica.

Suas opiniões baseiam-se na história dos povos indígenas que viviam nas Américas e nas antigas culturas orientais. Lucas afirma que vários desenhos são feitos com uma sucessão de sete linhas retas, "um número cabalístico, que remete ao calendário e à órbita planetária". Outras formas geométricas também expressariam conhecimentos superiores, como o círculo (manifestações celestiais como estrelas, energias e divindades), o quadrado (matéria) e o triângulo (ligação entre eles).

Para a ciência, no entanto, tudo não passa de "achismo". "É pura interpretação, não há nada comprovado. Não se podem avaliar os desenhos pelo que parecem porque, antigamente, os referenciais eram outros", enfatiza o arqueólogo Rossano Bastos.

Anjos da guarda

A conservação dos sítios arqueológicos tem fiéis aliados: são os moradores, com idade entre 14 e 25 anos, que vivem nas comunidades próximas à ilha. Há três anos eles integram o Projeto Guias Jovens, criado para frear a depredação causada pelo turismo descontrolado, proporcionando aos monitores alternativa de renda e de ocupação durante as folgas escolares.

Além da preservação da ilha, os guias garantem informação e segurança ao visitante, já que há caminhos perigosos. "Os monitores tiveram aulas de arqueologia, folclore, biologia, ecoturismo, espanhol e primeiros-socorros", detalha Hugo Alaluf, idealizador do programa.

Apesar de terem resistido a milhares de anos, nos últimos tempos os petróglifos vinham sofrendo depredação – chegaram até a ser pichados.

As sinalações feitas no chão estão desaparecendo, gastas pelo trânsito dos visitantes, como as "pegadas", assim apelidadas devido à forma de um pé com mais de 50 centímetros. Pescadores atribuem as marcas a gigantes. Grandes "unhadas", sulcos na pedra resultantes de afiação, contribuem para a lenda.

Muitos rochedos com gravuras e amoladores não estão mais em seu local original – rolaram naturalmente ou foram dinamitados por caçadores de tesouro que acreditavam que os desenhos faziam parte do "mapa da mina".

Os petróglifos sofrem também a ação do tempo: salinidade, umidade, sol, chuva e profusão de liquens, cuja remoção está sendo estudada. "A limpeza das pedras requer muito cuidado, pois os produtos são ácidos e podem corroer as inscrições", pondera Cíntia Chamas, arquiteta do Iphan.

Entre os habitantes da ilha estão também os quatis, sempre à procura do que comer. Dóceis e simpáticos, é difícil acreditar que se tornaram uma praga na ilha. Na década de 50, um casal desses mamíferos foi introduzido no ecossistema local. Como não são nativos, não enfrentaram predador e se multiplicaram livremente – cada fêmea chega a gerar nove filhotes por ano. Calcula-se que já passem de mil, ao passo que em outros pontos do país a espécie está ameaçada de desaparecimento.

Enquanto são estudadas alternativas para frear a superpopulação, que já extirpou as cobras da ilha, os quatis agora ameaçam os ovos das aves, muitas em perigo de extinção e colaboradoras do reflorestamento natural, como o tié-sangue, pássaro vermelho que se destaca na mata verde.

No passado, outras espécies também foram trazidas para a ilha – tatus, macacos (depois exterminados) e pacas (caçadas por pescadores com tarrafas, espécie de rede de pesca) –, além de diversas aves: jacu, uru, saíra, capitão-do-mato, pombinha, aracuã ("quando ela canta, é sinal de que o tempo vai melhorar", ensinam os pescadores).

A intervenção humana também teve conseqüências na impressionante Caverna dos Morcegos, antiga morada dos mamíferos que migraram para outras grutas, espantados pelo movimento de turistas. Para promover sua volta, os visitantes são orientados a fazer silêncio e não tirar fotografias. Chegar até ali exige estafante caminhada de uma hora em beiradas íngremes de penhascos, costões escorregadios, pedras muito altas, subidas e descidas na mata.

Para entrar, é preciso se espremer entre pedras marcadas com tiros de canhões, resultado de treino de antigas embarcações, reza o conto popular. Após a odisséia, a visão é fantástica: no salão negro o contraste com a luz que emana de uma fenda na rocha. A espuma branca do mar invade a caverna e inunda a escuridão, ecoando furiosa entre as paredes rochosas.

Baleias dizimadas

Em março do ano passado, um temporal revelou na praia da ilha do Campeche vestígios há muito escondidos na areia. Chuva e vento desencobriram restos de uma construção de 1772 onde eram esquartejadas baleias caçadas na região. A prática constituiu importante ciclo econômico catarinense no século 18, quando as baleias-francas quase foram exterminadas em todo o mundo. Santa Catarina foi um dos últimos redutos a deixar de matá-las. "Apesar de a caça estar proibida no Brasil desde os anos 30, até 1973 as baleias continuaram a ser dizimadas no estado", informa José Truda Júnior, coordenador do Projeto Baleia-Franca, que pesquisa esses cetáceos. Fazendo as pazes com o passado, eles voltaram às águas catarinenses na última década.

A ilha integrava as atividades baleeiras da praia da Armação, em Florianópolis, onde há ruínas semelhantes. Assim como a vizinha Matadeiro, a Armação ainda carrega no nome a lembrança daqueles tempos. Havia na ilha três tanques para fervura do óleo retirado do animal, usado como combustível para lamparinas e como liga em edificações. "Uma vez, depois de uma ressaca do mar, meu pai e eu contamos 53 cabeças de baleia na areia", relata o pescador Nabor João dos Santos, de 54 anos.

Antes da tempestade, vestígios da antiga construção já podiam ser vistos entre as raízes e o tronco de uma centenária figueira na beira da praia. Como a restinga é um solo muito pobre, as raízes da árvore procuraram as ruínas para se fixar, retirando os nutrientes necessários do material orgânico usado na edificação – barro, conchas e óleo de baleia.


Um ilustre visitante

Moradores mais antigos da praia do Campeche, em Florianópolis, explicam que a ilha do Campeche (localizada em frente, a 1,8 mil metros de distância) incorporou o nome dado à praia pelo famoso escritor Antoine de Saint-Exupéry.Teria sido "Zé Perri" (como os nativos o chamavam) que batizou a praia, então de intensa vida pesqueira, como Champ du Pêche (campo de pesca, em francês), reduzido pelos moradores a "Campeche". Pioneiro da aviação comercial entre França e Brasil, o autor de "O Pequeno Príncipe" e "Vôo Noturno" pousava sobre as dunas do Campeche, à época um povoado com 25 famílias de pescadores e agricultores.

A caminho de Buenos Aires para levar correspondência, o piloto das Linhas Aéreas Latécoère (mais tarde, Air France) fazia uma escala técnica em Florianópolis para recolher malotes postais, abastecer o avião e descansar no prédio da empresa, ainda hoje erguido na Avenida Pequeno Príncipe, principal via do bairro Campeche. Saint-Exupéry aterrissou ali cerca de 15 vezes entre 1926 e 1939, quando as operações de vôo postal foram suspensas devido à 2ª Guerra Mundial. Durante sua permanência no Champ du Pêche, Saint-Exupéry pescava, caçava passarinhos, comia tainha e freqüentava os engenhos de açúcar e de farinha com os habitantes do local.


Pesca ameaçada

Ainda hoje se vêem marcas de fogo no alto da Pedra do Vigia, rochedo de granito de 14 metros de altura, localizado no costão sudeste da ilha do Campeche. "A gente fazia fumaça para avisar o pessoal da praia da Armação, em Florianópolis, para vir pegar peixe. Era o único jeito de se comunicar", lembra o pescador Nabor João dos Santos. "Lá de cima a gente via a manta de peixes se aproximar. A praia ficava roxa de tanta manjuva, mas há três anos elas não aparecem, porque os barcos atuneiros pescam antes", lastima-se.

Protegida dos ventos predominantes na região (nordeste no verão, sul e sudeste no inverno), a ilha é um dos melhores locais para a pesca na costa catarinense. Essas condições há muito atraíram os pescadores artesanais da Armação, mas nos últimos anos a fartura também trouxe dezenas de embarcações industriais que depredam a vida subaquática.

Grandes barcos pegam cardumes inteiros próximo à ilha para usá-los como isca para o atum em alto-mar. Como a manjuva é base da cadeia alimentar local, peixes como pescada, corvina, tainha e anchova ficam sem alimento e desaparecem da região, restando ao pescador artesanal apenas os peixes que vivem junto às pedras, onde é proibido colocar rede. "Às vezes há 12 atuneiros só na frente da praia. Cada um deve pegar 10 toneladas de manjuva por dia", calcula Nabor.

A ação dos atuneiros prejudica 430 pescadores artesanais da praia da Armação. A maioria está aposentada, mas, como o dinheiro é pouco, muitos continuam a trabalhar. É o caso do irmão de Nabor, Esperândio João dos Santos, de 68 anos, 40 de pescaria. Apesar da idade, ele ainda sai para o mar, mesmo no frio e na chuva, para sobreviver. No verão, quando o peixe escasseia, levar turistas para a ilha do Campeche é a principal fonte de renda dos pescadores.

Próximo ao costão da ilha, mas respeitando o limite de 50 metros exigido pela legislação, Nabor e seu pessoal são os únicos que mantêm a tradicional pesca de cerco, rede armada em círculo cuja técnica não é predatória porque a malha é larga e os filhotes conseguem escapar. Na alta temporada, ele e a família tocam um modesto restaurante na ilha.