4.2.11

O último bandeirante


O Barão de Rio Branco / Reprodução

A trajetória do homem que ampliou o território do Brasil e estabeleceu as diretrizes da diplomacia do país

CECÍLIA PRADA

Em 1º de dezembro de 1902 a cidade do Rio de Janeiro presenciava uma movimentação fora do comum – desde as primeiras horas do dia uma multidão em festa ocupava as principais ruas do centro, nas proximidades da Praça XV de Novembro e do Cais Pharoux. Ao som de fanfarras e de foguetes que espoucavam, entre flores e bandeiras desfraldadas, mais de 10 mil pessoas aguardavam ansiosamente uma personalidade chegada da Europa no navio Atlantique – que já podia ser visto, ancorado ao largo, rodeado das lanchas que haviam levado a bordo ministros de Estado, altas patentes do exército e da marinha, além de parlamentares. Ao meio-dia o ilustre viajante desembarcava, e se iniciava o grande préstito que o conduziria pelas ruas enfeitadas até o Palácio do Catete – com todas as honras reservadas aos chefes de Estado, aos heróis guerreiros, aos libertadores de povos.

Não se tratava, como se pensaria hoje, de nenhum esportista megacampeão, nem de um astro pop internacional. Os tempos eram outros – o homenageado tanto pela elite como pelo povo, e já consagrado pela mídia impressa da época, passara os últimos 26 anos fora do país. Era um erudito cuja maior paixão, cultivada no segredo de seu gabinete, consistia na pesquisa de documentos históricos e cartas geográficas. Um estadista. Um diplomata que em 1893 deixara a obscuridade de um cargo mantido desde 1876 – o de cônsul do Brasil em Liverpool, na Inglaterra – para iniciar, com brilhantismo, uma carreira como negociador internacional. "Advogado do Brasil" e ministro plenipotenciário junto aos governos dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França, ele conseguira resolver complexas questões de fronteiras que vinham se arrastando desde os primórdios de nossa colonização, como a da ilha da Trindade e a das Guianas, e incorporar ao território nacional a extensa e valorizada área do território das Missões, objeto de disputa entre Brasil e Argentina.

José Maria da Silva Paranhos Júnior – o barão do Rio Branco – regressava ao Brasil para assumir a pasta das Relações Exteriores, a convite do recém-empossado presidente Rodrigues Alves, ministério que ocuparia ininterruptamente, mesmo sob outros governos, até sua morte em 1912 – um período áureo de nossa diplomacia. Evitando conflitos armados, munido de argumentação baseada em toda uma vida de estudo e de habilidade política sem igual, durante sua gestão como chanceler o barão redesenharia de maneira definitiva o mapa do Brasil –1903, por exemplo, é lembrado como o ano do Tratado de Petrópolis, que estabeleceu a fronteira com a Bolívia e criou o território do Acre.

O legado de Rio Branco representou a incorporação pacífica e incontestada de uma área de 900 mil quilômetros quadrados ao longo de nossas fronteiras, fato que permite ver essa grande figura histórica como um verdadeiro "bandeirante" do século 19.

Pai e filho

Voltando àquela manhã festiva de 1902, contam os cronistas da época que, em certo momento, destacou-se da multidão que assistia à passagem do cortejo um preto velho. Aproximou-se do carro do barão para beijar as mãos "do filho do maior de todos os brasileiros, libertador dos escravos" – o visconde do Rio Branco, que passara à história pela autoria e acirrada defesa, em 1871, da Lei do Ventre Livre (que isentava do cativeiro os filhos de mãe escrava).

São unânimes os biógrafos em reconhecer nos Rio Branco (visconde e barão) uma identificação total de personalidades, interesses e convicções. E até mesmo a continuação, pelo filho, dos esforços diplomáticos empreendidos pelo pai, na questão das fronteiras na região do rio da Prata. Descendiam os Silva Paranhos de uma linhagem portuguesa, família abastada que dera a Portugal e ao Brasil um grande número de militares. Empobrecido por uma disputa judicial familiar, Paranhos pai teve de ser amparado pelos parentes para poder estudar, e no início de sua carreira lutou muito para manter a família – trabalhou como professor de matemática na Escola Militar e jornalista, até ingressar na política. Foi deputado e senador. Além de várias gestões na pasta dos Negócios Estrangeiros, foi também ministro da Marinha, da Guerra e da Fazenda. Em 1870 recebeu o título de visconde do Rio Branco. Em 1871 tornou-se presidente do Conselho de Ministros, formando o ministério mais longo e um dos mais importantes do Segundo Reinado. Promoveu a regulamentação do Código Civil e realizou o primeiro recenseamento geral do Império.

Seu primogênito, "Juca" – o futuro barão, nascido no Rio de Janeiro em 1845 –, recebeu desde pequeno uma educação apurada, ministrada pelo próprio pai. Aos 7 anos acompanhou-o, com a mãe e uma irmã, em uma primeira missão ao Prata. Ao assumir o cargo de chanceler, em 1902, diria Rio Branco que desde menino vivera "como se sua casa fosse o prolongamento do Ministério do Exterior". Em uma carta daquele ano, conservada no Arquivo do Itamaraty, dizia: "Meu pai, quando ministro, trabalhava em casa, no seu gabinete, e tinha sempre a seu lado dois ou três auxiliares (...) Vi assim funcionar em casa a Secretaria dos Negócios Estrangeiros".

A continuidade casa/ministério revestia-se de duplo aspecto, no caso da família Rio Branco, pois a viscondessa mantinha também um brilhante salão, freqüentado pelas figuras proeminentes do governo e da sociedade, e pela intelectualidade – do qual dizia Pandiá Calógeras (in Estudos Históricos e Políticos): "Nesses salões, que não eram excepcionais durante o Segundo Reinado, aprendiam-se a cortesia, o respeito às opiniões alheias; as maneiras de apurado tom, que o barão conservou até o último momento, nele constituíam segunda natureza e tanto prendiam a quem com ele tratava".

Um "animal noturno"

Nada, porém, no aspecto físico, nas maneiras, no modo de vida que levava Juca Paranhos fazia prever, na adolescência, na mocidade, a personalidade por assim dizer maciça – física e mentalmente – do grande estadista que ele mais tarde se tornaria. Diz um dos seus maiores biógrafos, Álvaro Lins, que durante os anos em que estudou direito, primeiro em São Paulo e depois no Recife, Juca era apenas um rapaz bonito, esbelto, louro, com uma cabeleira longa, e que "todo o seu aspecto físico estava revelando a biológica indecisão característica dos adolescentes". Não foi um estudante brilhante, não parecia demonstrar muito interesse pelos estudos, e formou-se com um mero "plenamente".

O certo é que durante esses anos todos o jovem Paranhos já votava muitas horas a seu estudo predileto e particular – história. Tanto que em 1868, com apenas 23 anos, foi empossado como membro do austero e reputado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, na época presidido pelo próprio imperador – como título para sua admissão, submetera um alentado estudo biográfico sobre o barão do Serro Largo.

Depois de formado, Paranhos filho tentaria, sem sucesso, ser professor de história e promotor público. Terminou por optar pelo jornalismo – este foi, como a história, uma de suas grandes paixões por toda a vida. Aos 24 anos, tornava-se, por influência do pai, deputado. Iniciava-se simultaneamente na prática diplomática, desempenhando pequenas missões. Ressalta Álvaro Lins que seu papel era o de um "agente de ligação, um explicador" entre o governo, a Câmara e os meios de comunicação.

Como todo rapaz do seu meio, Juca Paranhos sabia conciliar o trabalho com uma intensa vida social. Nas rodas elegantes da Rua do Ouvidor, participando de noitadas e partilhando a intimidade das artistas que volteavam em teatros e cabarés, foi adquirindo fama de "boêmio". Desde aquela época e até o fim de sua vida, o que chocava as pessoas eram os hábitos diferentes de repartir o dia e, principalmente, a noite. Definido como "animal noturno", provocava comentários escandalizados: por que Juca Paranhos almoçava às três da tarde e jantava alta madrugada? E o que costumava fazer rondando os bastidores do Teatro Alcazar? (Logo se saberia...)

Comer, dormir e trabalhar a horas rotineiras e aprazadas nunca foi do feitio do barão, até o fim da vida. São conhecidas as histórias de suas noitadas de trabalho ininterrupto no gabinete do Itamaraty, onde muitas vezes os contínuos o surpreenderam adormecido sobre mapas. Costumava alimentar-se frugalmente durante o dia. Ia jantar com os amigos a horas tardias nos restaurantes da moda do Rio de Janeiro, cujo cardápio anunciava "uma profusão de delicados pitéus a qualquer hora do dia ou da noite".

Era grande seu prestígio na vida mundana e social, e refinada, desde a mocidade, sua elegância. E reconhecida a sua bem-humorada disposição para festas e divertimentos, bailes – era exímio dançarino –, revistas teatrais, espetáculos de cancã. Foi assim que o destino do amor romântico o fisgou, de repente, em uma noite do início de 1872, fazendo-o conhecer no Alcazar uma atriz belga, Marie Stevens, por quem se apaixonou perdidamente.

Um enorme escândalo social – seria inadmissível, para a família, para a sociedade, para o próprio imperador, o casamento do filho do presidente do Conselho de Ministros com uma pequena e insignificante atriz. O visconde do Rio Branco empenhou-se na separação do casal e conseguiu fazer com que Marie retornasse à Europa. Mas quando ela escreveu a Juca, de Paris, dizendo que estava para nascer o primeiro filho de ambos – o que aconteceu em 1873 – ele a chamou imediatamente de volta. Marie se tornaria sua esposa e mãe de seus cinco filhos, mas por pouco a ousadia dessa mésalliance não custou ao jovem Paranhos a ruína de seu futuro diplomático e político. Valeu-lhe a inexorável condenação do imperador e o obrigou a enfrentar uma luta feroz para conseguir sua primeira nomeação na carreira.

Embora continuasse a admirar e seguir com entusiasmo os artigos publicados pelo jovem Paranhos, dom Pedro II opunha-se ferozmente a dar-lhe um posto diplomático. Situação espinhosa inclusive para os amigos dos Rio Branco – o gabinete Caxias-Cotegipe chegou a ameaçar demitir-se, se a sonhada nomeação para o consulado em Liverpool não fosse efetuada. O impasse só foi resolvido quando, aproveitando uma ausência do imperador, o decreto da nomeação foi apresentado pelo gabinete à princesa Isabel, que o assinou em 27 de maio de 1876.

A dupla face do gênio

Talvez o austero e moralista imperador tivesse razão em se opor à nomeação do jovem Paranhos. Provavelmente desconfiava das razões que faziam aquele homem tão inteligente e culto insistir em ser apenas um cônsul em Liverpool. A situação geográfica privilegiada da cidade, considerada na época "o maior porto do mundo", distante apenas cinco horas de Londres e 15 de Paris, deve ter influído na escolha de Rio Branco. Após uma breve tentativa de instalar a família na Inglaterra, ele desistiu e levou-a para Paris, onde residiu de 1876 a 1901, mas sem abandonar seu posto no consulado.

Avesso a rotinas, como sempre ele conseguia viver nessa "duplicidade", aliando o trabalho consular – que definia como suas "grandes maçadas" – ao privilégio de viver na capital cultural do mundo, na Belle Époque. Uma atitude que provocava críticas e engordava sua lenda de "incorrigível boêmio". Dizem que, aos brasileiros que o encontravam em Paris, explicava sempre: "Cheguei ontem e volto amanhã".

O importante é que viver em Paris representava para Rio Branco a possibilidade de aprofundar seus estudos de história, de geopolítica, que seriam mais tarde fundamentais à sua obra de negociador internacional e estadista. Adquiria fama como o brasileiro que mais conhecia seu país e manteve sempre contato com as maiores mentes do Brasil e de Portugal – convivendo nos próprios círculos parisienses com amigos, como Eduardo Prado, Joaquim Nabuco, Rodolfo Dantas, Oliveira Lima, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, ou correspondendo-se com os ausentes. A amizade com o historiador Capistrano de Abreu, enriquecedora experiência intelectual para ambos, processou-se dessa forma. Capistrano viera do Ceará para o Rio de Janeiro quando Paranhos já se preparava para embarcar para Liverpool, e os dois mal se haviam conhecido. Mantiveram, porém, durante anos, uma correspondência fraternal, partilhando suas pesquisas e descobertas nos domínios da história. Curiosamente, nunca abandonaram o tratamento cerimonioso – "Vossa Excelência" e "senhor conselheiro".

O mesmo aconteceria mais tarde quando Rio Branco, já ministro de Estado, receberia várias vezes em sua casa em Petrópolis o escritor Euclides da Cunha – seus biógrafos descrevem uma cena curiosa e freqüente: costumavam varar a madrugada discutindo problemas brasileiros, muitas vezes Euclides já deitado e o barão de pé, vindo de uma festa ou solenidade, de casaca e cartola. Uma intimidade que também não dispensava o tratamento cerimonioso, "Vossa Excelência, senhor barão..." "O senhor, doutor Euclides..." Aliás, o diplomata fez questão, sempre, de ser "o senhor barão" – com o advento da República incorporara Rio Branco ao nome de família –, e jamais, a não ser no círculo íntimo, ninguém o chamava pelo primeiro nome, ou pelo apelido da mocidade.

Envolvia-o uma aura de impessoalidade, no trato profissional ou social. Nunca, mesmo quando moço, deixava transparecer o que pensava ou o que sentia. E esse foi certamente o segredo do seu excepcional desempenho diplomático. Na família, conservou sempre a mulher no plano tradicional, apagado, como uma digna "mulher de diplomata". Quando ela morreu, em 1898, registrou no seu diário, apenas: "Marie faleceu hoje, 11 de janeiro, às 11:55 da manhã". Nunca mais o barão, que nessa época contava 53 anos, ligou-se a mulher alguma. Segundo Álvaro Lins, em um depoimento mais tarde feito ao presidente Rodrigues Alves, o barão confessaria que aos 50 anos deixara completamente de ter interesse em sexo.

O grande ministro

O exercício da diplomacia revestia-se, no tempo de Rio Branco, de uma finesse especial. Em 1895, após o triunfo da sua missão em Washington, foi convidado pelo presidente Prudente de Morais para vir ao Rio de Janeiro, onde receberia uma grande homenagem popular. Recusou, pois parecia-lhe este um ato de descortesia para com o governo argentino, que perdera para o Brasil o território das Missões. Aliás, o mesmo savoir-faire fora usado pelo ministro argentino Estanislao Zeballos – ao tomar conhecimento do resultado da arbitragem feita pelo presidente Stephen Grover Cleveland, voltara-se para Rio Branco, cumprimentando-o pelo seu feito.

Rio Branco hesitou muito em aceitar o cargo de ministro de Estado. Confessava que tinha outros planos para sua velhice – ser fazendeiro de café em São Paulo e preparar uma grande História Militar e Diplomática do Brasil. É numerosa a correspondência dessa época com os amigos, justificando sua recusa e pedindo que o deixassem em paz. No fim, rendeu-se aos argumentos contrários, por enxergar um dever na aceitação do mais alto cargo. Dali em diante o Itamaraty passou a ser sua única obsessão. Transformou em residência seu próprio gabinete de trabalho – um biombo separava a cama simples e um toalete sem espelho da mesa atulhada de papéis a despachar. Para descansar e receber os amigos ia para sua casa de Petrópolis.

Durante os dez anos de sua gestão, continuou o trabalho de assentamento de fronteiras – com a Bolívia, Peru e Uruguai – e foi reconhecido internacionalmente como "o líder respeitado das Relações Exteriores de toda a América do Sul". Foi o responsável pelo sucesso de Rui Barbosa na segunda Conferência da Paz, realizada em Haia em 1907. Nos últimos anos voltou-se para o sonho do pan-americanismo (retomado meio século mais tarde por Juscelino Kubitschek). Dizia Rio Branco: "Já construí o mapa do Brasil. Agora meu programa é contribuir para a união e a igualdade entre os países sul-americanos. Uma das colunas dessa obra será o ABC (hegemonia do eixo Argentina-Brasil-Chile)".

Sua principal glória foi, contudo, a popularidade de que sempre gozou. Chegou a ser indicado duas vezes, em 1909, candidato à presidência da República, mas recusou. Dizia que só aceitaria se fosse candidato único, pois não lhe parecia bem concorrer com outros colegas de ministério para o cargo.

A obsessão com o trabalho, o sedentarismo e a ausência de vida regular apressaram sua decadência física. Uma crise de insuficiência renal vitimou-o em poucos dias. Faleceu em seu gabinete de trabalho no Itamaraty, no dia 10 de fevereiro de 1912. Sua morte coincidia com o fim de um período histórico – no plano interno do país, liquidava-se a época considerada a mais feliz da República, a chamada "república dos conselheiros". No plano mundial, estava sendo liquidado também o século 19 – do qual Rio Branco fora um típico representante, com suas idéias, sua formação, sua política. Acabava um mundo que acreditava no direito, no arbitramento internacional, na força das idéias. Formavam-se já as negras nuvens da 1ª Guerra Mundial, que inauguraria os mitos da violência e da força, a exaltação dos fatos contra os códigos, o doentio e exaltado desprezo das leis e dos tratados.