13.3.12

Cabala: em busca do sentido oculto da Bíblia

A tradição mística judaica, que nos últimos tempos ganhou notoriedade pela adesão de artistas internacionais à sua versão moderna, busca compreender as entrelinhas da Torá para se aproximar de uma Verdade além das palavras


Coleção particular

A Árvore da Vida, um dos símbolos dessa antiga filosofia, representa a fundação do cosmos

por Alain Chouffan

Tudo começou depois da destruição do Templo de Jerusalém em 70 d.C. A Terra Prometida foi devastada pelos romanos, e arquivos históricos da cultura judaica desapareceram. Diante da catástrofe, sábios como Yochanan ben Zakai e Akiva ben Joseph deixaram a cidade em chamas para fundar uma escola na cidade de Jâmnia, com o objetivo de registrar em livros tudo aquilo que os judeus conheciam de sua história.

Que conhecimentos eram esses? Em primeiro lugar, que Moisés tinha recebido de Deus, sobre o monte Sinai, não somente a lei escrita (a Torá), mas também a lei oral (o Talmude) e os comentários esotéricos relativos àquela lei. Do hebraico gabbala (recebimento, transmissão, tradição), a cabala é, portanto, este último conjunto de ensinamentos.

Até o século II, os comentários esotéricos não eram escritos porque os sábios acreditavam que reproduzi-los no papel engessaria o conhecimento. Foi quando um respeitado aluno da escola de Jâmnia, o rabino Shimon bar Yochai, reuniu todos os relatos em um manuscrito secreto, o Sefer ha-Zohar (o Livro do esplendor). Reza a lenda que o material teria sido escondido um uma gruta perto da cidade de Safed, hoje em Israel.

O Zohar, considerado um texto canônico, só veio a público no século XIII, quando teria sido redigido em aramaico por Moisés de Leon (1240-1305), um cabalista espanhol de Guadalajara, que, por sua vez, atribuiu o texto ao rabino Shimon bar Yochai. Composto de 23 volumes, tornou-se instrumento cotidiano dos cabalistas, que procuravam desvendar os segredos da Torá.

Após a expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, os cabalistas ibéricos se dispersaram pelo Mediterrâneo, e um grupo de grandes eruditos se reuniu em Safed. Moisés Cordovero (1522-1570) foi sua primeira grande figura. Os ensinamentos de seu discípulo Isaac Luria (1534-1572), vulgo Ari Zal, o Santo Leão, foram inseridos em diversas obras, entre as quais o Sefer Ets Hayyim (Livro da árvore da vida).




Coleção particular

A Árvore da Vida, um dos símbolos dessa antiga filosofia, representa a fundação do cosmos

[continuação]

Essa cabala luriânica prosseguiu sua odisseia no século XVIII em Pádua, na Itália, onde Moshe Haim Luzzato tornou acessíveis os escritos de Ari Zal, à primeira vista impenetráveis. Seus textos continuaram marchando em direção ao norte da Europa e deram origem ao movimento chassídico, corrente mística do judaísmo que se inspira na cabala e foi criada por Baal Chem Tov na região das atuais Polônia e Ucrânia.

A partir do Renascimento o estudo da cabala extrapolou os círculos do judaísmo graças a cabalistas cristãos como Giovanni Pico della Mirandola, que encontrou em alguns aspectos dessa filosofia uma prefiguração e uma explicação de certos dogmas cristãos, principalmente o da Trindade. Fala-se que William Shakespeare e Isaac Newton também a teriam estudado.

Em princípio reservada a alguns eruditos e aos homens de mais de 40 anos, casados e pais de, no mínimo, dois filhos, a cabala explica o porquê do universo, bem como seu funcionamento. OZohar opera segundo dois grandes princípios: “A Torá fala de coisas do (aqui) embaixo, mas se refere, na realidade, às coisas do alto” . Além do sentido literal do texto (pschat, em hebraico), cada palavra possui um sentido oculto (sod), esotérico, que é preciso desvendar.

Os cabalistas afirmam que a Verdade não pode ser expressa pelas palavras, que denotam simplesmente o que os sentidos humanos e o intelecto captam. No entanto, a Torá foi escrita com palavras. Assim, afirmam os cabalistas, esse texto deve conter forçosamente a Verdade divina. Então, como fazer para descobri-la? Tentando ultrapassar o que seria o primeiro sentido da leitura, partindo para interpretações secundárias.

Para tanto, eles se baseiam no fato de que na língua hebraica cada letra corresponde a um algarismo (aleph: 1, beth: 2, guimel: 3, daleth: 4 etc.). Dessa forma, pode-se calcular o valor numérico de uma palavra e aproximar palavras de mesmo valor. Por meio dessas técnicas de permanente renovação de sentido, os cabalistas descobrem significados escondidos e infinitos na Bíblia.

Assim, eles entram em contato com a Fonte, o Infinito, o Deus oculto, que chamam de Ain Sof: aquele que não é concebível pelo espírito humano. Em contrapartida, Deus se manifesta por emanações, os dez sefirot, e os cabalistas procuram desvendar os segredos de seus mandamentos.

Dessa forma, a cabala tende a “desocultar o oculto”. Segundo a mística judaica, não existe, portanto, nada que não possa ser descoberto pelo homem. Isso é possível? “Sim”, responde um rabino que prefere se manter anônimo, “pois nessa doutrina tudo está interligado, do mais alto ao mais baixo, do mais rarefeito ao mais denso. Se houver uma separação, um curto-circuito, então ocorre a desordem, a desorganização, a desarmonia”.

Assim, a cabala é uma doutrina de troca, na qual o homem é ao mesmo tempo receptor e emissor. Quanto mais ele recebe, mais ele realiza sua razão de ser, que é dar. “A troca se harmoniza, se estende, aprofunda mais e mais adiante, mais e mais alto e mais baixo. A inteligência cósmica se encarna nele, até se identificar com ele. São essas, de modo muito resumido, as grandes linhas dessa mística”, diz o rabino.


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