22.2.19

Santo Agostinho e a concepção cristã da História


Voltaire Schilling




Esplendidas estátuas de deuses olímpicos, em geral reproduções de atletas e de saudáveis apolos, dominavam o espaço público das cidades e dos templos da época do paganismo greco-romano antigo. Todavia, se os crentes daqueles tempos viam seus ídolos com olhos otimistas, sempre esculpidos belos e cheios de vida, a concepção da História deles não era nada otimista. Viam a época em que lhes coube viver como um tempo de ruínas e decadência. O cristianismo, pelo contrário, apesar de difundir a imagem de um filho de Deus sofredor, lacerado e pregado numa cruz, incutiu nos seus seguidores, especialmente a partir da obra de Santo Agostinho (354-430), uma ideia otimista do porvir.


Santo Agostinho (354-430)Foto: Reprodução
O fim dos Tempos do Apocalipse

A concepção cristã da História exposta no Apocalipse de São João, derradeiro livro incluído na Bíblia, era ainda aterrorizante. Num determinado momento do futuro, segundo o relato do evangelista São João, por ocasião do Juízo Final, cenas pavorosas ocorreriam. Apavorantes assombrações, Grog e Magog, vindas do fundo da terra emergiriam das fendas dela para horrorizar o mundo dos vivos. Todavia não se atribua apenas às atordoantes passagens do Apocalipse o temor à proximidade do Dia do Juízo Final.


Pode-se dizer que a alta teologia, a teologia de Santo Agostinho (354-430) exposta no “A Cidade de Deus”, 413-426, por igual contribuiu para uma interpretação no mínimo um tanto ambígua do que poderia considerar-se como as etapas finais da Cristandade, deixando uma sombra de inquietação pairando mesmo entre os poucos ilustrados daqueles tempos.


O Bispo de Hipona dividia, como tantos outros antes e depois dele, a História do mundo em várias idades, em seis para ser-se mais exato. Santo Agostinho incorporou nesta visão do destino da Cristandade, percorrendo etapas distintas ao longo da História, inclusive os acontecimentos históricos referentes aos judeus. A Quinta idade, por exemplo, datou do cativeiro da Babilônia até a vinda de Cristo, sendo que a Sexta teria se iniciado após o nascimento do Salvador.

O atemorizante é que, na classificação de Agostinho, esta idade derradeira da Cristandade se encerraria com a aparição do Anticristo, cujos sinais do seu advento já estavam anunciados de certa forma pela invasão dos bárbaros no século 5 seguida da destruição do Império Romano.
A concepção pagã da História

Esta, no entanto, é uma das tantas interpretações conhecidas que aponta para um possível pessimismo agostiniano. Entretanto, para Etienne Gilson, o grande historiador belga da filosofia medieval e cristã, Santo Agostinho, ao contrário, erigiu uma concepção da História otimista. Ele, pela primeira vez, apresentou no Mundo Antigo uma visão que rompia com a concepção cíclica que os filósofos e poetas pagãos greco-romanos tinham da História e mesmo da vida. Para eles, como foi exposto de maneira cabal por Hesíodo na Teodicéia, a grandeza já havia ocorrido no passado remoto, nos quatro períodos anteriores à Quinta Idade, a do ferro, época de inevitável perversão e decadência.

No entender dos antigos pagãos avançava-se sempre para etapas piores, da Idade do Ouro para a Idade do Ferro, da exuberância para a degradação. No futuro da humanidade era a ruína quem a aguardaria.


Hesíodo (viveu entre o século 8 e 7 A.C.)Foto: Reprodução
Rumo à Redenção

Santo Agostinho, ao contrário deles, viu na História o périplo a ser percorrido pelo povo de Cristo, partindo da imperfeita e pecadora Cidade Terrestre até atingir a consagradora Cidade Celeste, da impura Cidade dos Homens em direção à castíssima Cidade de Deus. Uma longa viagem do Pecado à Redenção. Quase o mesmo roteiro do povo judeu depois de liberto do cativeiro do Egito dirigindo-se à Terra da Promissão.

Longe de ter uma percepção negativa do futuro, ele animava e esperançava o cristão de que dias melhores certamente viriam e que era possível, no devir ainda indeterminado, que o Reino dos Céus finalmente se instalasse na terra.

De certo modo, esta concepção da História como a previsão de um inevitável desaguar na felicidade coletiva futura, foi por igual herdada pelos filósofos otimistas dos Tempos Modernos, tais como Condorcet (Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain, de 1795) e Hegel ( Vorlesungen über der philosophie der Geschichte, de 1830), assim como pela larga maioria dos reformadores sociais contemporâneos.
Bibliografia

Agostinho, Santo – A Cidade de Deus. Petrópolis RJ: Editora Vozes, 1990. 2 v.

Brown, Peter – Santo Agostinho. São Paulo-Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.

Cremona, Carlo – Agostinho de Hipona: a razão e a fé. Petrópolis RJ: Editora Vozes, 1990.

Gilson Etienne – La filosofia en la Edad Media: desde los orígines patrísticos hasta el fin del siglo XIV. Madri: Editorial Ggredos, 1958.

Fonte: https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=37776256#editor/target=post;postID=7331289288835869650