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O ponto de partida do Egito moderno, independente, deu-se com os Motins de Cairo, ocorridos entre os dias 26 e 27 de janeiro de 1952. Naquela ocasião milhares de cairotas, seguidos por seus compatriotas de outras cidades, saíram para as ruas, em fúria, para manifestar sua indignação com a continuidade do mando britânico sobre o país dos faraós. A explosão popular selou para sempre a sorte da monarquia colaboracionista do rei Faruk, logo derrubada por um golpe militar nacionalista no dia 22 de junho de 1952. Ação que pôs fim ao domínio de 70 anos dos britânicos sobre o Egito.
A insurgência das massas
Apesar dos esforços do Partido Wafd, fundado por Saad Zaghlul, em 1918, no sentido de alcançar a independência nacional, livrando o Egito da presença britânica, o resultado final depois de décadas de luta fora pífio. Bem pouca coisa os lideres wafdistas haviam conseguido arrancar de Londres naquelas décadas todas, a não ser representar um arremedo de oposição nacionalista no Parlamento do Cairo, que funcionava de acordo com o modelo inglês.
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Todavia, os egípcios, tal como ocorrera no final da Primeira Guerra Mundial, tinham enormes expectativas de poder, enfim, ver os britânicos pelas costas. Entretanto, sete anos já se haviam passado desde a derrota final de Hitler, em 1945, e nada dos britânicos acenarem com um adeus definitivo.
Cairo olhara com esperanças para a Índia, que conquistara a independência por meio de uma negociação acertada entre Gandhi e Lord Mountbatten, em 1947, e desejava o mesmo para o Egito. Os britânicos por igual - atendendo a ONU e a pressão conjunta dos Estados Unidos e da URSS -, haviam evacuado da Palestina em maio de 1948, sem maiores delongas. Os anos correram e nada disso foi providenciado em relação a situação dos ingleses no Egito. Era demasiado obvio para todos que a monarquia Faruk, reinando desde 1936, fazia as vezes de um regime fantoche que não merecia ser considerado como um poder independente num país realmente livre (*).
(*) Exemplo disso foi a assinatura do Tratado anglo-egipcio de 1936, segundo o qual os britânicos mantinham acampados na Zona do Canal do Suez uma guarnição de 10 mil soldados (o que na prática retirava qualquer soberania dos egípcios sobre a principal artéria marítima do país), continuavam com suas bases marítimas em Alexandria e Port Said, como também tinham direito à livre locomoção das suas tropas por todo Egito em caso de guerra. Por último, numa situação de aberto conflito, o Egito mantinha-se aliado do Império Britânico.
Vendaval humano no Cairo
A procrastinação dos britânicos foi a causa oculta do motim. Se eles haviam saído da longínqua Índia e da Palestina, ali perto, porque raios não iam embora do Egito! Um desacerto entre as tropas inglesas do tenente-general Sir George Erskine e a guarnição egípcia na cidade de Ismailia - que desandou num choque armado no qual 50 policiais foram mortos e outros 100 restaram feridos pelos ocupantes -, foi a faísca que faltava para tudo explodir pelo país (o comandante britânico justificou a brutal ação do ataque ao acampamento dos policias egípcios como "necessária para prevenir futuros ataques terroristas contra os seus soldados").
Dai entender-se a reação da violência anti-britânica de 26 e 27 de janeiro de 1952. Tudo o que fosse representativo da presença europeia na cidade foi varrido naqueles dois dias por um incontrolável vagalhão de ódio humano. Em meio ao fogo e as chamas, da fumaça e da poeira, foram-se o Hotel Shepherd, o Banco Barclay, a sede da BOAC, a empresa britânica de aviação, diversos cinemas e postos de gasolina explorados por empresas inglesas, assim como várias boates. Pouco sobrou do Clube de Turfe e do Cassino Badia, locais conhecidos onde a alta sociedade colonialista se divertia.
Os civis ingleses, por razões de sobrevivência, pois muitos deles foram mortos nas ruas, recuaram para a Zona do Canal do Suez para protegerem-se, tornando-a área separada do restante do país (para isto alegaram estar no direito deles apoderarem-se do Canal, visto que assim concordara o rei Faruk ao assinar o Tratado Anglo-egípcio de 1936). No total, 750 estabelecimentos de todo o tipo forma destruídos pela multidão possessa dando um prejuízo estimado em 50 milhões de libras esterlinas. Simbolicamente, fora como se uma super fortaleza da Bastilha sucumbisse ao assalto do povo egípcio insurreto.
O rei Faruk tentou apaziguar a massa demitindo o primeiro-ministro Nahas Pacha que havia classificado os amotinados como "traidores" cuja intenção verdadeira era depor a monarquia. Seja como for a leniência de Faruk em tomar qualquer medida enérgica contra a continuidade da presença inglesa - que ainda havia recebido um reforço de 6 mil soldados vindos via aérea da ilha de Malta para conter a multidão - , expôs a fragilidade dele aos olhos de todos. O governo dele tornou-se inútil, não servindo nem mais para garantir os interesses britânicos e menos ainda para satisfazer o povo em seu anseio de liberdade.
O Golpe dos Oficiais Livres
Desde a derrota das monarquias árabes frente ao novo Estado de Israel, na guerra de 1948, formou-se em meio da oficialidade egípcia um pequeno grupo de militares do alto escalão e do setor intermediário das Forças Armadas - generais e principalmente coronéis - que passaram a conspirar contra o rei fantoche. O líder deles, dos auto-designados Oficiais Livres, uma organização secreta, era o coronel Gamal Abdel Nasser, que se escorava por detrás do major-general Mohammed Naguib. Eles estavam fartos da grossa corrupção, do servilismo e da incompetência generalizada do regime de Faruk.
Guardavam os Oficiais Livres o forte sentimento de serem os herdeiros das antigas lutas pela emancipação egípcia, embates que vinham dos tempos da Revolução Orabi de 1881 e passava pela ativa militância de Zaghlul, o fundador do partido Wafd (naquele momento reduzido à impotência).
Viram-se também como reformadores sociais, não como possíveis golpistas, tanto assim que, depois, propuseram um "socialismo árabe", cuja maior proeminência programática era realizar uma reforma agrária total ao tempo em que se apresentavam como campeões do pan-arabismo. Posicionavam-se como nacionalistas frente ao domínio britânico e socialistas frente ao poder dos latifundiários do país.
No dia 22 de junho de 1952, aproveitando-se do estado de inanição da monarquia Faruk, abalada pelo Motim do Cairo, as tropas comandadas por eles cercaram com seus tanques o Palácio Real de Abdin. Na manhã do dia 23, Anwar el-Sadat, colega e seguidor mais próximo de Nasser, anunciou pelo rádio o programa dos Oficiais Livres. O rei ainda tentou manter a coroa para o seu herdeiro Ahmed Fouad, mas foi forçado no dia 26 de junho de 1952, a ir para o exílio no seu luxuoso iate. Com ele embarcaram os derradeiros vestígios do feudalismo neocolonizado e do ócio hedonista (Faruk ficou célebre nos anos seguintes como frequentador contumaz de cassinos e festas, mantendo colunistas sociais para darem cobertura às suas façanhas de bon vivaninternacional).
A recém-formada Comissão do Conselho Revolucionário (CCR), que destronara Faruk, indicou o major-general Mohammed Naguib como o chefe do processo, tendo Nasser na retaguarda como a poderosa sombra do movimento de emancipação. Num só golpe de força, sem derramamento de sangue, os 30 anos do reinado fantoche criado pelos britânicos em 1922, desaparecera do horizonte dos egípcios, enquanto o coronel Nasser, com apenas 34 anos, deixava o anonimato da vida de conspirador para vir a tornar-se o rais, o caudilho, o maior nome do Egito moderno e um dos mais consagrados líderes da emancipação do Terceiro Mundo. No dia 8 de junho de 1953, em seguida ao afastamento definitivo do herdeiro Fuad, a República do Egito foi proclamada.
A reforma agrária e o fim do colonialismo
Duas medidas históricas tinham sido tomadas de imediato pelos militares revolucionários: a desapropriação das terras latifundiárias para serem distribuídas entre os felás, os camponeses pobres do Egito (*), ocorrida a partir de setembro de 1952, e a negociação para a evacuação definitiva das tropas britânicas da Zona do Canal de Suez, ainda de propriedade anglo-francesa, com as garantias da manutenção do seu livre trânsito, acordada em julho de 1954. Mesmo ano em que o general Naguib foi afastado da presidência do Egito, assumida então integralmente pelo coronel Gamal Nasser. A reação à reforma agrária não tardou. Líderes religiosos, estritamente ligados aos proprietários fundiários, muito deles ligados à conservadora Al-Ikhwan, a Irmandade Muçulmana, mobilizaram-se e passaram a praticar atentados contra o novo regime, inclusive tentando assassinar o próprio Nasser.
Mas o verdadeiro teste de sobrevivência da revolução nasserista deu-se quatro anos depois da queda de Faruk, em outubro-novembro de 1956, por ocasião da crise do Canal de Suez, que foi uma das mais graves confrontações que ocorreu por aqueles tempos entre o nacionalismo árabe emergente e as forças do colonialismo declinante.
(*) O sistema de propriedade das terras no Egito até as vésperas da revolução nasserista era o espelho da desigualdade absoluta, tão comum nos países daquela região. Ele indicava que apenas 0,1% dos proprietários controlavam 1/5 das regiões produtoras, sendo que apenas 0,4% deles ficavam com 1/3 delas, enquanto que aos 95% dos felás restava apenas 35% das áreas de plantio. O novo governo determinou que, dali em diante, as propriedades rurais não poderiam ultrapassar a extensão de 200 feddans (medida egípcia de terras), realizando uma redistribuição de terras que favoreceu a 341 mil felás. Muitos deles passaram então a explorá-la organizados em hiyazahs (cooperativas).