por Fernanda de Castro Lima / Ilustrações: Índio San | 13/09/2011 18h38 Três homens saíram do Brasil rumo aos EUA pilotando um Ford Modelo T - o popular Ford Bigode, o fusquinha de seu tempo - para cruzar 15 países e percorrer 28 mil km. Seu sonho é unir as três Américas ao rasgar uma estrada entre elas. A missão logo se mostraria muito mais dura, sofrida e perigosa do que eles podiam imaginar. Batizado de Brasil, o Ford T saiu do Rio de Janeiro no dia 16 de abril, aplaudido por uma multidão. Em São Paulo, os expedicionários ganharam um reforço: a caminhonete Modelo T, presenteada pelo Jornal do Commercio. O automóvel recebeu o apelido de São Paulo. O primeiro contratempo viria em Bauru (SP): dinheiro, fotos, documentos e a ata da viagem foram roubados. No Mato Grosso, deram de cara com a tal onça-pintada. Quase um ano depois da partida, alcançaram a fronteira paraguaia. Dos 2652 km percorridos até lá, mais da metade era de trilhas e picadas. Siga o mapa e veja por onde passou a viagem: 1- BRASIL 6 - EQUADOR Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/america-cabo-rabo-639918.shtmlAmérica de cabo a rabo
Em 1928, pilotando um Ford Modelo T e uma caminhonete, 3 homens saíram do Brasil rumo aos EUA. Inspirados pelo sonho do pan-americanismo, queriam provar que era possível unir as Américas nem que fosse por meio de uma rodovia
Ainda em território brasileiro - estavam perdidos havia dias no Pantanal matogrossense -, uma onça atacou 3 cães que caminhavam ao lado daquele estranho objeto sobre rodas. O mecânico Mario Fava, um dos integrantes do trio de aventureiros, atirou no animal. Mesmo ferido, o felino saltou sobre ele e o derrubou. Seu amigo Francisco, com o auxílio de um dos 5 índios que os ajudavam a sair da mata, cravou um facão no crânio do bicho. Atordoada, a onça agora era presa fácil para os cães, que a mataram e comeram.
Essa foi só uma das muitas aventuras da comitiva. A ideia da rodovia surgiu em 1923, na 5ª Conferência Internacional dos Estados Americanos, no Chile. Passados 5 anos da reunião, porém, o projeto ainda era considerado impossível. O tenente do Exército Leônidas Borges de Oliveira decidiu provar que era viável, sim, a construção da Carretera Panamericana, como seria chamada a futura obra. Para ajudá-lo, convidou o oficial da Aeronáutica Francisco Lopes da Cruz, amigo que sabia tudo de engenharia. Quando a dupla passou pela região de Pederneiras (SP), o mecânico Mário Fava, que sonhava conhecer os EUA, ofereceu-se para acompanhá-los. E foi.
A façanha é contada pelo historiador Beto Braga no livro O Brasil Através das Três Américas. Ele soube do episódio em 1998, quando morava na Bolívia e conheceu o filho do comandante Oliveira, que lhe mostrou anotações feitas pelo pai. “Foram 8 anos de pesquisas para o livro”, diz o autor. A expedição teve apoio financeiro do presidente Washington Luís e patrocínio do jornal O Globo, que doou o carro ao grupo.
Hóspedes de honra
O Paraguai vivia um momento de forte tensão com a Bolívia. Havia uma disputa pela região do Chaco que se estendia desde a época colonial. A fronteira entre os dois países passava por ali e não era bem definida. A descoberta de gás e petróleo na Bolívia resultaria, 4 anos depois, na guerra mais sangrenta da América no século 20, a Guerra do Chaco. Mesmo no centro desse furacão, o presidente paraguaio, José Guggiari, encontrou-se com os brasileiros e os declarou hóspedes de honra.
Recepções com pompa e circunstância, aliás, se repetiram em muitos lugares. Eram acolhidos com festa por autoridades e moradores. Muitos ajudavam na tarefa de abrir caminhos - alguns por vontade própria e outros recrutados pelos exércitos locais. No Peru, o trio encarou um obstáculo colossal: a cordilheira dos Andes. Lá, Mário Fava mostrou ser um sujeito de sorte, pois escapou duas vezes da morte. No dia 21 de outubro de 1929, São Paulo caiu num abismo - ele só sobreviveu porque o automóvel, na queda, ficou preso em uma árvore. Oito dias depois, enquanto a Bolsa de Nova York despencava, o carro Brasil também ia precipício abaixo. E o mecânico escapou por pouco outra vez.
Beto Braga considera Fava o grande herói da expedição. Graças a seus conhecimentos, mantinha os carros funcionando mesmo na base do improviso. Na Bolívia, por falta de álcool (combustível do Ford T), o carro foi abastecido com uma bebida indígena feita de milho. Na Colômbia, encheram os pneus desgastados com capim - o que provocou outro acidente que quase esmagou Fava. O “Intrépido Mecânico”, como era chamado pela imprensa, também tinha talento de conquistador - teria se envolvido com inúmeras mulheres durante a jornada.
Enquanto o grupo passava pelo Equador, recebeu a notícia de que Getúlio Vargas assumira o poder, com a Revolução de 1930. No Panamá, os carros foram desmontados para cruzar os rios, os viajantes viram, espantados, índios loiros de olhos azuis (homens albinos da tribo dos cunas), encontraram a delegação olímpica brasileira a caminho de Los Angeles e souberam que, no Brasil, São Paulo tentava derrubar Getúlio e promulgar uma nova Constituição - era a Revolução Constitucionalista de 1932.
Os viajantes e o revolucionário
Na Nicarágua, o grupo se encontrou com o guerrilheiro Augusto Sandino. O líder popular pretendia derrotar a ditadura da família Somoza. Mas havia firmado um acordo com o governo e entregara grande parte de suas armas. Vítima de uma armadilha, foi executado. Os brasileiros tiraram a última foto do revolucionário, dois dias antes de sua morte. Já durante a passagem pelo México, o comandante Oliveira se apaixonou pela médica Maria Buenaventura Gonzáles, que seria sua companheira por toda a vida. Enquanto isso, em 1935, o movimento comunista, liderado por Luís Carlos Prestes, ganhava força no Brasil. Mas não o suficiente para derrubar Getúlio.
A ditadura se instaurava no Brasil à medida que os expedicionários cruzavam os EUA. Lá, o grupo se encontrou com Henry Ford, que quis (mas não conseguiu) comprar os valentes carros Brasil e São Paulo para tê-los no acervo do museu de sua fábrica. Em Cleveland, os brasileiros precisaram de uma autorização especial para dirigir, que foi assinada pelo “intocável” Eliot Ness, o agente que prendeu Al Capone. Em Washington, foram recebidos por Franklin Roosevelt. O presidente americano entregou uma carta de reconhecimento da nação à expedição. Durante os quase dois anos que passaram nos EUA, a intenção do grupo era persuadir governo e empresários a investir 100 milhões de dólares na construção da rodovia. Calculava-se que todo o trajeto da Carretera custaria em torno de 500 milhões de dólares - os governos de cada país bancariam boa parte dos custos.
Dez anos depois da saída do Brasil, os carros e o grupo voltaram de navio para casa. Reuniram-se com Getúlio, que lhes homenageou dando o nome da terra natal de cada integrante a ruas do Rio de Janeiro (Bariri, Descalvado e Florianópolis). Leônidas foi nomeado cônsul privativo do Brasil na Bolívia e ocupou o cargo por mais de 20 anos. Mário Fava, um tempo depois, rumou para o norte, abrindo a estrada Belém-Brasília. O Ford Brasil está hoje no Museu dos Transportes, na capital paulista, e o São Paulo apodrece nos arredores do Museu do Ipiranga. Ainda que com trechos improvisados, já existe uma Carretera ligando o norte ao sul do continente, do Alasca (EUA) à Patagônia, no sul do Chile. O primeiro país a concluir a obra foi o México, em 1950. O trecho da estrada que deveria ser construído no Brasil até hoje não saiu do papel.
"A intenção da expedição em unir as três Américas, como uma só nação, o verdadeiro espírito do pan-americanismo, antecede o Mercosul e outros acordos. A façanha dos expedicionários, mesmo valorizada na época, virando notícia de capa nos jornais, ficou no esquecimento”, diz Braga. Desde 16 de abril deste ano, ele e sua família estão refazendo o trajeto original (e incluindo outros pontos não percorridos pela expedição). "Os resultados vêm me surpreendendo. Grandes historiadores vinculados às principais universidades estão dando seguimento às pesquisas, e autoridades estão assumindo o compromisso de erguer monumentos em homenagem aos brasileiros”, diz ele. Braga mantém um blog como diário de bordo e álbum de fotos da viagem. Até o fim de julho, já havia cruzado a América do Sul e a Central e passava pelos EUA.
Oitenta e três anos depois, ainda há trechos que se mantêm como os descritos pelos expedicionários. Na região do rio Atrato, da selva de Urabá e de El Darién, na divisa entre Colômbia e Panamá, ainda não foi construída a Carretera Panamericana. “A principal diferença entre as nossas viagens é que eles fizeram história, e eu simplesmente tento resgatá-la.”
América do Sul
Ao som da Banda Marcial e do burburinho da multidão em frente à sede do jornal O Globo, no Rio de Janeiro, o tenente Oliveira, o engenheiro Lopes da Cruz e o mecânico Mario Fava partem em um Ford T no dia 16 de abril de 1928 para descobrir, percorrer e projetar uma estrada que ligaria as Américas. A Expedição Brasileira de Estudos da Carretera Panamericana é recebida em Petrópolis pelo presidente Washington Luís. Em São Paulo, ganham uma caminhonete modelo T. No dia 2 de fevereiro de 1929, eles chegam ao último ponto do Brasil na rota, em Ponta Porã (PR).
2 - PARAGUAI
Floresta no nordeste: uma tempestade arranca do chão o rancho onde dormiam. Depois de 2 meses viajando dentro da mata, chegam a Villa Rica - cansados, barbudos, com infecção intestinal e febre.
3 - ARGENTINA
As rodovias eram boas e o país vivia uma expansão econômica, o que tornava a ligação entre Buenos Aires e a Carretera conveniente. São recebidos por ministros e têm 3 meses de tranquilidade.
4 - BOLÍVIA
Deslumbram-se com a cordilheira dos Andes e com os animais da região - veem de perto lhamas, vicunhas, alpacas e o gigante condor. Com a ajuda de cães que acompanham a excursão, caçam coelhos para comer.
5 - PERU
Tablachaca: Fava escapa por pouco de um acidente grave. Chegam doentes a Andahuailas. Após uma longa convalescença, seguem rumo à cordilheira. Levam 4 meses para atravessá-la.
Azuay: no dia 19 de outubro de 1930, desgovernado, o Ford Brasil rola 100 m ribanceira abaixo. Fava fica preso nas ferragens. O cachorro Tudor, que acompanhava o grupo, morre no acidente.
7 - COLÔMBIA
Picadas de insetos formam grandes feridas. Em Cali, o solo dos Andes destrói os pneus, que são enchidos com capim. Na selva de Urabá, os carros cruzam os rios desmontados.
8 - PANAMÁ
Colón: a expedição visita o canal do Panamá. Cidade do Panamá: o presidente, Ricardo Javané, fica impressionado com o fato de o grupo ter conseguido atravessar de carro a selva de Urabá, um feito inédito.
9 - NICARÁGUA
Manágua: o líder guerrilheiro Augusto Sandino recebe a expedição na capital. Ele havia fechado um acordo de paz com o governo, mas foi vítima de uma armação em 21 de fevereiro de 1934. Morreu metralhado.
10 - HONDURAS
Em apenas 8 dias, percorrem o trecho hondurenho (187 km) que faria parte da futura Carretera Panamericana.
11 - GUATEMALA
Cidade da Guatemala: os carros são consertados e ganham pneus novos. O presidente, Jorge Ubico, lhes dá uma grande quantia em dinheiro.
12 - MÉXICO
Huixtla: são obrigados a atravessar rios sem pontes. Em San Jerônimo, Oliveira quase morre por causa de uma infecção intestinal. Na cordilheira do Oaxaca, o trajeto é aberto à custa de força física.
13 - ESTADOS UNIDOS
Austin: apresentam o projeto ao prefeito e ao governador. Detroit: Henry Ford faz questão de conhecer os aventureiros e oferece um bom dinheiro para ter os carros Brasil e São Paulo no museu de sua fábrica. Oliveira, Fava e Cruz recusam e seguem viagem. Washington, DC: Franklin Roosevelt reconhece a expedição em carta.