Ana Luisa Fayet
Os viajantes europeus que chegaram ao Brasil na primeira metade do século XIX buscaram conhecer uma parte da América até então desconhecida do seu olhar. Esse desconhecimento devia-se sobretudo aos impedimentos criados pela Coroa portuguesa diante de seus domínios coloniais no Brasil. Só era permitida a exploração do território a viajantes, cientistas e administradores ligados a Portugal. No entanto, com a vinda da família real para o Brasil, em 1808, esse quadro alterou-se consideravelmente. Uma das primeiras providências tomadas pelo rei de Portugal, D. João VI, ao chegar em terras brasileiras, foi a abertura dos portos a todas as nações amigas de Portugal. Esse ato possibilitou o afluxo de vários viajantes europeus, que buscavam explorar as potencialidades desta parte da América, movidos por objetivos de natureza científica e econômica.
Foi grande o número de viajantes europeus que se dirigiram ao Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, para esquadrinhar a imensidão de seu território, conhecer cada particularidade da fauna, flora, recursos hídricos e minerais, bem como os costumes de seus habitantes. Dentro desse espírito, dirigiram-se para o Brasil o príncipe Maximilian Alexander Philip de Wied-Neuwied (1815-1817), Karl Frederic Martius (1817-1820) e Johann Moritz Rugendas (1822-1825), todos envolvidos em empreendimentos de natureza científica e movidos pelo mesmo propósito de descobrir as riquezas e belezas desta parte do Novo Mundo. No entanto, eles não foram os primeiros a percorrer o território brasileiro no início do século XIX. O inglês John Mawe esteve anteriormente no interior fluminense e em Minas Gerais, de 1807 a 1811, tendo publicado seu relato de viagem em 1812.
A eleição desses três viajantes deve-se, basicamente, às seguintes razões: as suas viagens, além de cobrirem diferentes partes do território brasileiro, seguiram um encadeamento temporal, tanto referente ao período da viagem propriamente dito quanto com relação ao aparecimento de suas memórias, expressando, portanto, um tipo de produção própria da primeira metade do século XIX. Todos os três são de origem germânica, cujo sentido aqui deve ser apreendido pelo pertencimento a um determinado ethos cultural e social. Isso permitira compreender os vínculos existentes entre eles e a constelação de artistas, naturalistas e cientistas que possibilitaram a constituição de um determinado tipo de afinidade entre o pensamento científico e romântico da época, na sua vertente alemã. Finalmente, através da análise do relato desses viajantes e de sua produção iconográfica, pretende-se demarcar as diferenças existentes entre eles, a partir da visão que tiveram da própria experiência de viagem, a identidade e estilo adotado de cada um, ao buscarem representar a natureza e os habitantes do Brasil.
Ao abarcarem o espaço do Novo Mundo, os viajantes posicionavam-se como atores no palco do mundo tropical, cenário de suas descobertas e explorações, repetindo alguns gestos dos primeiros momentos da descoberta do continente americano, o olhar europeu deparou-se com um novo espetáculo. A partir da concepção do mundo como teatro, reencenavam-se alguns momentos da conquista, da descoberta, do deslumbramento, do estranhamento, frente a um mundo desconhecido. Dupla face da representação, a marcar distâncias e aproximações. O olhar europeu observando o cenário do Novo Mundo e seus habitantes, marcando a distância entre o observador e o observado. E desenvolvendo estratégias de auto-representação, como recurso para aproximação cultural. No entanto, ao apresentarem os signos visíveis das diferenças culturais, reforçaram suas distâncias. A idéia de theatrun mundi destaca seu sentido original; “ver” e “olhar” tornaram-se qualidades fundamentais a orientar os gestos e as ações dos viajantes, proporcionando-lhes o meio através do qual adquiriram o conhecimento estético e científico da natureza e dos povos do Novo Mundo.
Um dos caminhos da pesquisa constituiu-se do inventário da produção iconográfica de Wied-Neuwied, Martius e Rugendas. Nesse inventário, privilegiou-se a produção iconográfica destes viajantes que foi publicada em seus atlas (como os de Wied-Neuweid e Martius) e o álbum da Viagem Pitoresca de Rugendas. Num segundo momento, procurou-se inventariar o material iconográfico constituído dos desenhos e esboços originais, que serviram de modelo para a confecção das gravuras. Um dos desafios iniciais foi justamente a dificuldade de encontrar documentos originais, isto é, os primeiros desenhos que serviram de modelo para a confecção de litogravuras e gravuras. No entanto, foi possível inventariar parte dos desenhos originais e estudos elaborados por Wied-Neuwied e por Rugendas.
Esse material acabou sofrendo alterações por parte dos gravadores europeus com vista a satisfazer o gosto de seu público, idealizando a imagem dos índios, cuja beleza e bondade deveriam caminhar juntas. Os materiais originais fornecem elementos significativos para a análise, pois podem ser confrontados com o que fora publicado, evidenciando as alterações e transformações realizadas pelos gravadores. Para compreender esse processo de alterações, é preciso levar em conta o que Gombrich denominou de schemata ao qual os gravadores e artistas do final do século XVIII e início do XIX estavam vinculados.
Segundo Gombrich, a impressão visual tem início com a idéia ou conceito do que vai ser representado, a partir de categorias universais como, por exemplo, homem, criança, gato, árvore, castelo, cidade, floresta etc. A informação visual individual, as características distintivas dos objetos, dos dados representados “são acrescentados a posteriori, como se o artista preenchesse os espaços em branco de um formulário” (Gombrich, 1986:63). Por isso, ao ser copiada e recopiada, a imagem fica assimilada na schemata dos seus próprios artesões (..) A ‘vontade de formar’ é mais uma ‘vontade de conformar’, ou seja, a assimilação de qualquer forma nova pela schemata e pelos modelos que o artista aprendeu a manipular. (Gombrich, 1986:67).Desse modo, a schemata funciona como um vocabulário do qual todo artista parte para desenvolver suas experiências, fazendo com que ele mobilize sua atenção para motivos que podem ser traduzidos ou representados em seu idioma.Ao esquadrinhar a paisagem, as vistas que podem ser ajustadas com êxito à schemata que ele aprendeu a manejar saltam aos olhos como centros de atenção. O estilo, como veículo, cria uma atitude mental que leva o artista a procurar na paisagem que o cerca elementos que seja capaz de reproduzir. A pintura é uma atividade, e o artista tende, conseqüentemente, a ver o que pinta ao invés de pintar o que vê. (Gombrich, 1986:74).Assim, o processo de captura das imagens (que ocorre a partir da observação direta, do esboço a lápis, do desenho, até a gravação final) sofre modificações pela tradução daquilo que se vê para um código reconhecível, tanto do pintor quanto de seu público. A paisagem observada por Wied-Neuwied, Martius e Rugendas foi submetida a dois crivos de ordem cultural. Inicialmente, ela foi representada pelos viajantes; em seguida, sofreu novas alterações quando da passagem de um desenho ou aquarela original para a versão final, realizada pelos gravadores. Os desenhos originais, assim, transformaram-se e vieram a público. O apego às belas paisagens suplantou o interesse pelas especificidades da natureza americana.
Das obras analisadas, apenas Neuwied manifestou-se criticamente quanto a esse tipo de alteração verificado em seus desenhos. De resto, as obras expressam a conjugação de determinados modelos vigentes à época de sua elaboração. Os modelos cristalizam-se como expressão de regras que perpassam tanto a elaboração dos desenhos, dos esboços, quanto do quadro acabado impresso num livro. São produtos de uma determinada cultura, funcionando como um guia para as práticas sociais e suas representações.
Cada época irá elaborar o seu estilo cognitivo, pela maneira como alguns instrumentos mentais orientam o homem na organização de sua experiência visual. Estes instrumentos são variáveis, pois dependem da cultura, no sentido em que são determinados pela sociedade que influencia a experiência individual.Entre essas variáveis existem as categorias por meio das quais o homem classifica seus estímulos visuais, o conhecimento que atingirá para integrar o resultado de sua percepção imediata, e a atitude que assumirá diante do tipo de objeto artificial que a ele se apresenta. O observador deve utilizar na fruição de uma pintura as capacidades visuais de que dispõe, e dado que, dentre essas, pouquíssimas são normalmente específicas à pintura, ele é levado a usar as capacidades que sua sociedade valoriza. O pintor é sensível a tudo isso e deve se apoiar na capacidade visual de seu público. (Baxandall, 1991:49).Cada cultura possui um determinado repertório de categorias e de códigos para a expressão do estilo cognitivo da época em que emergem. Nesse sentido, note-se que, desde o final do século XVIII até meados do século XIX, houve, de fato, a constituição de um determinado estilo cognitivo, cuja expressão destaca-se pela afinidade entre os códigos artísticos e científicos. A exemplo do que se poderá observar na obra de Alexander von Humboldt, razão e sensibilidade caminharão juntas durante esse período.
Na perspectiva da produção cultural, interessa ainda destacar que os livros de viagem e com seus atlas e álbuns pitorescos foram consumidos avidamente pelo público leitor do início do século XIX, como bens culturais. Deste modo, o que poderia ser entendido como uma experiência particular e privada, deixa imediatamente de sê-lo ao ingressar no mercado simbólico de “bens culturais”. Essa relação entre o autor e o leitor reafirma o caráter público da cultura, que longe de nos oferecer a verdade da representação, oferece as idéias que eram compartilhadas por determinado grupo acerca da natureza, do homem e da civilização do Novo Mundo. Toda representação contém uma verdade em si, ao se destinar a determinados grupos, ao expressar crenças e valores de outros e assim por diante. Emergem como expressão de verdade daqueles que a produziram, como uma forma de experiência comunicável, inserida no horizonte da época ao qual está vinculada. Portanto, não se pretende buscar, ao se analisar essas imagens, o que era o verdadeiro Brasil no início do século XIX, mas sim, como os viajantes europeus viam o Brasil no século XIX.
Para o historiador Ulpiano T. Bezerra de Meneses, no uso de fontes iconográficas para a produção do conhecimento histórico deve-se ter em mente que as imagens são uma forma de suporte a representações. Não é possível pensar nas imagens apenas como um registro do real externo e objetivo, buscando avaliar seu grau de fidelidade, pois a imagem é: “uma construção discursiva, que depende de formas históricas de percepção e leitura, das linguagens e técnicas disponíveis, dos conceitos vigentes”. (Meneses, 1996:152).
Portanto, é necessário problematizar o tipo de apreensão que a história pode fazer dos materiais de representação, imagens ou textos, como documentos que possuem uma realidade intrínseca, longe de uma referência imediata a uma verdade. Esses materiais são documentos históricos portadores de uma determinada verdade pelo fato de nos dizer algo a respeito de um determinado momento histórico, existindo no tempo e no espaço a partir da experiência de homens concretos.
Para Meneses, existem três aspectos fundamentais que devem ser incorporados ao trabalho com imagens. O primeiro aspecto é deixar de lado a falsa polaridade entre real e imaginário, pois a imagem está dentro do real, à medida que práticas e representações são indissociáveis. O segundo estaria na necessidade de a imagem ter um valor probatório. Esta é outra falsa questão, pois o valor documental das imagens refere-se à problemática das representações sociais, à possibilidade de compreensão do imaginário – e não pela capacidade de as imagens confirmarem traços empíricos. Finalmente, ressalta a capacidade do olhar do viajante de instituir um conhecimento sobre a nossa realidade. O autor conclui que: O olhar, portanto, institui seu próprio objeto. A imagem não só é instituída historicamente, como é, também, instituinte. Daí, para um verdadeiro dimensionamento histórico, a necessidade de estudar o circuito da imagem: sua produção, circulação, apropriação, em todas suas variáveis. (Meneses, 1996:154) (O grifo é do original).No processo de confronto entre as narrativas de viagens e a produção iconográfica a ela vinculada, coloca-se um novo elemento de interpretação, que diz respeito à correspondência, ou não, entre o texto e a imagem. O que a princípio pode sugerir uma facilidade – se partirmos da idéia de que o texto é igual a imagem e de que a imagem constitui-se como mero reflexo de determinadas idéias – estaremos seguramente caindo em erro. Este tipo de problema não é novo no interior das ciências humanas, considerando que desde de Aristóteles ele já vinha sendo tematizado. Tanto na filosofia, quanto na teoria da percepção, na semiologia, na psicologia, na estética e na história da arte, existem variantes significativas referente aos limites da interpretação e à relação entre imagem e texto.
No importante estudo de W.J.T. Mitchell, “Iconology: Image, Text, Ideology”, essa questão é formulada ao buscar responder duas perguntas: o que é uma imagem? Qual a diferença entre imagens e palavras? Para o autor, a importância deste tipo de indagação deve-se, sobretudo, ao fato de apontar as maneiras pelas quais a nossa própria compreensão “teórica” das imagens vinculam-se a práticas culturais e sociais.
Um primeiro problema que se coloca é a constatação de que existe uma grande quantidade e variedade de coisas que são designadas por “imagem”. São pinturas, mapas, diagramas, sonhos, alucinações, projeções, memórias etc. A segunda constatação é de que apesar de todas essas coisas poderem ser designadas por “imagens”, não significa necessariamente que elas tenham algo em comum. Para solucionar esta questão, Mitchell propõe que pensemos as imagens como sendo uma família-extensa, que tivesse migrado no tempo e no espaço e sofrido profundas modificações neste processo. (Mitchell, 1986:9).
A palavra “imagem” envolve uma série de expressões correlatas como aparência, semelhança ou similaridade. A imagem gráfica diz respeito a pinturas e desenhos, constituindo em campo de conhecimento da história da arte. Na ótica têm-se os espelhos e projeções, referindo-se ao campo da física. A imagem perceptual abrange todos os campos de conhecimento, envolvendo o processo de apreensão de dados sensíveis, espécies e aparências. A imagem mental envolve os sonhos, memórias, idéias e fantasmata, abarcando os campos da psicologia e da epistemologia. Finalmente, a imagem verbal refere-se à expressão de metáforas e descrições, sendo campo de conhecimento da crítica literária.
Cada uma dessas ramificações da imagem pressupõe um conjunto de assertivas quanto ao seu funcionamento e limites. Mitchell considera equivocada a distinção que se estabelece entre as imagens gráficas (como sendo imagens próprias) e as imagens verbais e mentais (como sendo ilegítimas). Para ele, tanto uma quanto as outras envolvem mecanismos de apreensão e interpretação multi-sensoriais. Para o entendimento das conexões que se estabelecem entre as imagens mentais e as imagens físicas, Mitchell segue o modo como Wittgenstein as trata, estando convencido de que só é possível ter imagens mentais associada a pensamentos ou falas. No entanto, as imagens mentais não são entidades privadas, metafísicas ou imateriais, mais do que qualquer imagem real deva ser. Portanto, seguindo Wittgenstein, é possível colocar as imagens mentais e físicas numa mesma categoria, como símbolos funcionais. Este tipo de solução não elimina as diferenças entre elas, mas, seguramente, tende a eliminar as qualidades metafísicas ou ocultas destas diferenças. (Mitchell, 1986:15-18).
Toda imagem verbal é uma imagem mental, não sofrendo nenhum tipo de ameaça metafísica, posto que os textos, enquanto atos de fala, são expressões públicas que pertencem como um todo, a outros tipos de materiais representacionais criados por nós, como pinturas, gráficos, mapas etc. No entanto, Mitchell considera que as imagens verbais referem-se a dois tipos antitéticos de práticas lingüísticas. Pode-se designar por imagens verbais, a linguagem metafórica, figurativa ou ornamental, como sendo uma técnica que desvia a atenção do sentido literal para outra coisa. Outra possibilidade é da imagem verbal referir-se a uma palavra que é uma imagem de uma idéia, encontrada, por exemplo, nas alegorias. (Mitchell, 1986:21)
As imagens pictóricas são inevitavelmente convencionais e contaminadas pela linguagem. No entanto, a dialética entre a palavra e a imagem tem sido uma constante na fábrica de signos que a cultura trama em volta de si mesma. O que varia é a natureza precisa desta trama, pois a história da cultura é uma parte da história da luta prolongada pelo domínio de signos lingüísticos e pictóricos, cada uma reivindicando para si certas propriedades sobre a “natureza” a qual somente um tem acesso. Concebe-se a separação entre palavras e imagens como sendo algo tão profundo quanto aquilo que separa, num sentido amplo, cultura de natureza. A imagem é um signo que pretende não ser um signo, mascarado como presença natural e imediata. A palavra é o “outro”, produção humana artificial e arbitrária que pode interromper a presença natural pela introdução de elementos não naturais no interior do mundo-tempo, consciência, história, sob a forma de mediações simbólicas alienantes. Como saída para este tipo de dilema, Mitchell propõe que se elabore uma crítica histórica dessas diferenças entre palavra-imagem, a partir de um modelo que expresse as diferenças entre estas duas linguagens, por terem uma longa história de interações e translações mútuas. (Mitchell, 1986:45).As reflexões de Mitchell apresentam um quadro para a distinção das imagens. No entanto, apresentam também um limite, à medida que, para ele, as imagens pictóricas apresentam-se contaminadas pela linguagem verbal. É possível pensar que as imagens pictóricas constituam uma linguagem, só que de natureza diversa daquela que caracteriza a linguagem verbal. Enquanto a linguagem verbal possui ampla possibilidade de combinações e de sentidos, a linguagem pictórica distingue-se de imediato por seu caráter afirmativo. Ela sempre representa algo, desconhecendo a negação da representação. Uma imagem pictórica sempre é alguma coisa, pois a negação retórica é impossível de ser representada pictoricamente. Isto é fundamental destacar, posto que, no decorrer deste trabalho, estarei lidando com esta problemática, especialmente no que tange à questão da imagem do índio e da expressão de sua humanidade.
Para o objetivo de nossa reflexão aqui, parto da construção das imagens etnográficas em que se encontram representados os índios, a natureza tropical e os próprios viajantes. Para a compreensão dessas imagens, impôs-se como questão fundamental tratar da idéia de cultura e de civilização, à medida que os viajantes tomavam por parâmetro comparativo a sua cultura e civilização como forma de descrever o modo de vida dos índios. Por outro lado, estas considerações remetiam à questão de saber se os povos indígenas tinham ou não condições de inserirem-se no processo histórico. À luz desses questionamentos foi possível apresentar as diferentes formas e estratégias de representação do índio, buscando relacioná-las à história enquanto expressão de um movimento de mudanças e permanências ao longo do tempo.
Assim, as imagens etnográficas que apresentaram o índio em seu cotidiano, foram articuladas segundo algumas temáticas como a questão da família, da construção de moradias, da maneira como caçam e guerream, de suas danças e festividades, e assim por diante. A partir destas temáticas, foi possível compreender algumas variantes quanto ao estatuto do índio, do bom selvagem no paraíso tropical ao homem degenerado frente à natureza hostil, que remetem à polêmica quanto a natureza e aos habitantes do Novo Mundo.
A compreensão precisa desse processo de inserção da natureza e dos índios num esquema de representação preexistente apontou basicamente para algumas questões: como as estratégias de representação da natureza e dos índios, sob suas diferentes modalidades, inscreviam-se enquanto um modo de assimilação das diferenças e de produção da alteridade. As marcas, índices desse processo encontram-se nas imagens etnográficas, na fundação de um novo gênero pictórico -o da pintura etnográfica- criando através dela as bases para a inserção dos índios e da natureza americana na história. Por outro lado, o fascínio do primitivo e do bárbaro repercutiu no imaginário dos viajantes alemães, uma vez que proporcionava o encontro com a ancestralidade de seus primitivos, da Germanae antiquae, e a expressão de confiança no progresso e da fé no desenvolvimento da civilização. Assim, o conhecimento de cada imagem, cada fragmento do homem e da natureza, possibilitou o encontro de olhares refletidos e reflexivos, em permanente movimento que agora se revelam por inteiro.
Nesse sentido, a análise de esboços, desenhos, aquarelas e gravuras produzidas pelos viajantes trazem consigo a perspectiva de criação de um novo gênero pictórico que buscava traduzir a experiência de suas viagens enquanto expressão histórica do observado, do vivido. Essas imagens, que denominamos de etnográficas, representaram a fusão de determinada experiência na paisagem. Com isso, emergia um outro gênero, aqui designado de pintura etnográfica, definido em termos da experiência histórica dos viajantes e povos observados fundidos à paisagem tropical.
Por imagens etnográficas, consideramos aquelas representações dos viajantes que retratavam o modo de vida dos índios em seu habitat natural, sua organização familiar, a construção de suas moradias, a forma como caçavam, cenas guerreiras, suas danças e cerimônias rituais, além de instrumentos guerreiros e artefatos domésticos. De um modo geral, todos os viajantes buscaram representar o que observaram e o que julgaram significativo da vida cotidiana dos índios.
O resultado dessas observações foi retido em suas narrativas, em desenhos, aquarelas e gravuras. Nessas imagens, a ênfase foi dada para a representação da vida indígena nas florestas tropicais. Sob este aspecto, reside algo de extremamente inovador no que se refere à representação do homem e da natureza do Novo Mundo. As imagens procuraram retratar o fato observado, e homem e natureza ganhavam um novo estatuto, já distante de qualquer sentido alegorizante, pois a representação fundou-se sobre a observação. A busca da precisão científica na representação da natureza precede ao princípio da composição das cenas. Quanto ao homem, o tipo de figuração dominante ainda encontra-se preso aos cânones acadêmicos, no entanto, em alguns aspectos como o corte de cabelos, a utilização de adornos corporais, tatuagens coloridas etc. é possível apreender-se a particularidade do grupo representado.
É claro que cada viajante compôs essas cenas de acordo com o próprio sentido que a viagem tinha para ele. E cada viajante utilizou-se de métodos diferenciados para a construção de suas imagens etnográficas. Os métodos utilizados procuram dar conta da dimensão temporal presente na narrativa, e que deveria ser traduzida em diferentes imagens pela gravura. Segundo o modelo adotado por Bernadette Bucher (1981), existem quatro métodos fundamentais pelos quais os gravadores utilizam-se para traduzir a dimensão temporal. O método monoscênico, que representa uma única ação, delimitada no tempo e no espaço, como uma cena teatral ocorrendo num cenário delimitado. O método simultâneo procura representar cenas variadas concomitantes, com a reunião de elementos descritivos dispersos pelo texto, como a descrição de uma paisagem, de um costume, de modos de vida reunidos numa mesma gravura. O método rotativo apresenta cenas em seqüência, em que várias ações distintas são repartidas e reunidas no espaço da gravura. Finalmente, o método serial consiste na apresentação de imagens autônomas, mas de modo seqüencial, cujo vínculo dá-se ao redor de um determinado tema, ou de um acontecimento.
O primeiro método e o quarto foram utilizados com freqüência por Wied-Neuwied em seus desenhos e gravuras. Já Martius, procurou elaborar suas gravuras seguindo a lógica de conjugar, num único quadro diferentes cenas, que teriam ocorrido em tempos diferentes, utilizando-se tanto do método simultâneo quanto do rotativo. Rugendas ateve-se ao método monoscênico e simultâneo, sendo difícil determinar, através de seu texto, a dimensão temporal inscrita na cena representada.Assim, em Wied-Neuwied, temos o viajante-naturalista que a tudo observou e registrou, tendo por base sempre o que tinha diante de seu olhar. Com isto soube registrar cada aspecto da vida dos índios com os quais teve contato, como nenhum outro viajante o fizera antes. No que se refere às cenas da vida indígena, observou cada detalhe, preservando em seus cadernos o que havia de original no grupo retratado, tanto com relação à natureza quanto ao homem.
Foi grande o número de viajantes europeus que se dirigiram ao Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, para esquadrinhar a imensidão de seu território, conhecer cada particularidade da fauna, flora, recursos hídricos e minerais, bem como os costumes de seus habitantes. Dentro desse espírito, dirigiram-se para o Brasil o príncipe Maximilian Alexander Philip de Wied-Neuwied (1815-1817), Karl Frederic Martius (1817-1820) e Johann Moritz Rugendas (1822-1825), todos envolvidos em empreendimentos de natureza científica e movidos pelo mesmo propósito de descobrir as riquezas e belezas desta parte do Novo Mundo. No entanto, eles não foram os primeiros a percorrer o território brasileiro no início do século XIX. O inglês John Mawe esteve anteriormente no interior fluminense e em Minas Gerais, de 1807 a 1811, tendo publicado seu relato de viagem em 1812.
A eleição desses três viajantes deve-se, basicamente, às seguintes razões: as suas viagens, além de cobrirem diferentes partes do território brasileiro, seguiram um encadeamento temporal, tanto referente ao período da viagem propriamente dito quanto com relação ao aparecimento de suas memórias, expressando, portanto, um tipo de produção própria da primeira metade do século XIX. Todos os três são de origem germânica, cujo sentido aqui deve ser apreendido pelo pertencimento a um determinado ethos cultural e social. Isso permitira compreender os vínculos existentes entre eles e a constelação de artistas, naturalistas e cientistas que possibilitaram a constituição de um determinado tipo de afinidade entre o pensamento científico e romântico da época, na sua vertente alemã. Finalmente, através da análise do relato desses viajantes e de sua produção iconográfica, pretende-se demarcar as diferenças existentes entre eles, a partir da visão que tiveram da própria experiência de viagem, a identidade e estilo adotado de cada um, ao buscarem representar a natureza e os habitantes do Brasil.
Ao abarcarem o espaço do Novo Mundo, os viajantes posicionavam-se como atores no palco do mundo tropical, cenário de suas descobertas e explorações, repetindo alguns gestos dos primeiros momentos da descoberta do continente americano, o olhar europeu deparou-se com um novo espetáculo. A partir da concepção do mundo como teatro, reencenavam-se alguns momentos da conquista, da descoberta, do deslumbramento, do estranhamento, frente a um mundo desconhecido. Dupla face da representação, a marcar distâncias e aproximações. O olhar europeu observando o cenário do Novo Mundo e seus habitantes, marcando a distância entre o observador e o observado. E desenvolvendo estratégias de auto-representação, como recurso para aproximação cultural. No entanto, ao apresentarem os signos visíveis das diferenças culturais, reforçaram suas distâncias. A idéia de theatrun mundi destaca seu sentido original; “ver” e “olhar” tornaram-se qualidades fundamentais a orientar os gestos e as ações dos viajantes, proporcionando-lhes o meio através do qual adquiriram o conhecimento estético e científico da natureza e dos povos do Novo Mundo.
Um dos caminhos da pesquisa constituiu-se do inventário da produção iconográfica de Wied-Neuwied, Martius e Rugendas. Nesse inventário, privilegiou-se a produção iconográfica destes viajantes que foi publicada em seus atlas (como os de Wied-Neuweid e Martius) e o álbum da Viagem Pitoresca de Rugendas. Num segundo momento, procurou-se inventariar o material iconográfico constituído dos desenhos e esboços originais, que serviram de modelo para a confecção das gravuras. Um dos desafios iniciais foi justamente a dificuldade de encontrar documentos originais, isto é, os primeiros desenhos que serviram de modelo para a confecção de litogravuras e gravuras. No entanto, foi possível inventariar parte dos desenhos originais e estudos elaborados por Wied-Neuwied e por Rugendas.
Esse material acabou sofrendo alterações por parte dos gravadores europeus com vista a satisfazer o gosto de seu público, idealizando a imagem dos índios, cuja beleza e bondade deveriam caminhar juntas. Os materiais originais fornecem elementos significativos para a análise, pois podem ser confrontados com o que fora publicado, evidenciando as alterações e transformações realizadas pelos gravadores. Para compreender esse processo de alterações, é preciso levar em conta o que Gombrich denominou de schemata ao qual os gravadores e artistas do final do século XVIII e início do XIX estavam vinculados.
Segundo Gombrich, a impressão visual tem início com a idéia ou conceito do que vai ser representado, a partir de categorias universais como, por exemplo, homem, criança, gato, árvore, castelo, cidade, floresta etc. A informação visual individual, as características distintivas dos objetos, dos dados representados “são acrescentados a posteriori, como se o artista preenchesse os espaços em branco de um formulário” (Gombrich, 1986:63). Por isso, ao ser copiada e recopiada, a imagem fica assimilada na schemata dos seus próprios artesões (..) A ‘vontade de formar’ é mais uma ‘vontade de conformar’, ou seja, a assimilação de qualquer forma nova pela schemata e pelos modelos que o artista aprendeu a manipular. (Gombrich, 1986:67).Desse modo, a schemata funciona como um vocabulário do qual todo artista parte para desenvolver suas experiências, fazendo com que ele mobilize sua atenção para motivos que podem ser traduzidos ou representados em seu idioma.Ao esquadrinhar a paisagem, as vistas que podem ser ajustadas com êxito à schemata que ele aprendeu a manejar saltam aos olhos como centros de atenção. O estilo, como veículo, cria uma atitude mental que leva o artista a procurar na paisagem que o cerca elementos que seja capaz de reproduzir. A pintura é uma atividade, e o artista tende, conseqüentemente, a ver o que pinta ao invés de pintar o que vê. (Gombrich, 1986:74).Assim, o processo de captura das imagens (que ocorre a partir da observação direta, do esboço a lápis, do desenho, até a gravação final) sofre modificações pela tradução daquilo que se vê para um código reconhecível, tanto do pintor quanto de seu público. A paisagem observada por Wied-Neuwied, Martius e Rugendas foi submetida a dois crivos de ordem cultural. Inicialmente, ela foi representada pelos viajantes; em seguida, sofreu novas alterações quando da passagem de um desenho ou aquarela original para a versão final, realizada pelos gravadores. Os desenhos originais, assim, transformaram-se e vieram a público. O apego às belas paisagens suplantou o interesse pelas especificidades da natureza americana.
Das obras analisadas, apenas Neuwied manifestou-se criticamente quanto a esse tipo de alteração verificado em seus desenhos. De resto, as obras expressam a conjugação de determinados modelos vigentes à época de sua elaboração. Os modelos cristalizam-se como expressão de regras que perpassam tanto a elaboração dos desenhos, dos esboços, quanto do quadro acabado impresso num livro. São produtos de uma determinada cultura, funcionando como um guia para as práticas sociais e suas representações.
Cada época irá elaborar o seu estilo cognitivo, pela maneira como alguns instrumentos mentais orientam o homem na organização de sua experiência visual. Estes instrumentos são variáveis, pois dependem da cultura, no sentido em que são determinados pela sociedade que influencia a experiência individual.Entre essas variáveis existem as categorias por meio das quais o homem classifica seus estímulos visuais, o conhecimento que atingirá para integrar o resultado de sua percepção imediata, e a atitude que assumirá diante do tipo de objeto artificial que a ele se apresenta. O observador deve utilizar na fruição de uma pintura as capacidades visuais de que dispõe, e dado que, dentre essas, pouquíssimas são normalmente específicas à pintura, ele é levado a usar as capacidades que sua sociedade valoriza. O pintor é sensível a tudo isso e deve se apoiar na capacidade visual de seu público. (Baxandall, 1991:49).Cada cultura possui um determinado repertório de categorias e de códigos para a expressão do estilo cognitivo da época em que emergem. Nesse sentido, note-se que, desde o final do século XVIII até meados do século XIX, houve, de fato, a constituição de um determinado estilo cognitivo, cuja expressão destaca-se pela afinidade entre os códigos artísticos e científicos. A exemplo do que se poderá observar na obra de Alexander von Humboldt, razão e sensibilidade caminharão juntas durante esse período.
Na perspectiva da produção cultural, interessa ainda destacar que os livros de viagem e com seus atlas e álbuns pitorescos foram consumidos avidamente pelo público leitor do início do século XIX, como bens culturais. Deste modo, o que poderia ser entendido como uma experiência particular e privada, deixa imediatamente de sê-lo ao ingressar no mercado simbólico de “bens culturais”. Essa relação entre o autor e o leitor reafirma o caráter público da cultura, que longe de nos oferecer a verdade da representação, oferece as idéias que eram compartilhadas por determinado grupo acerca da natureza, do homem e da civilização do Novo Mundo. Toda representação contém uma verdade em si, ao se destinar a determinados grupos, ao expressar crenças e valores de outros e assim por diante. Emergem como expressão de verdade daqueles que a produziram, como uma forma de experiência comunicável, inserida no horizonte da época ao qual está vinculada. Portanto, não se pretende buscar, ao se analisar essas imagens, o que era o verdadeiro Brasil no início do século XIX, mas sim, como os viajantes europeus viam o Brasil no século XIX.
Para o historiador Ulpiano T. Bezerra de Meneses, no uso de fontes iconográficas para a produção do conhecimento histórico deve-se ter em mente que as imagens são uma forma de suporte a representações. Não é possível pensar nas imagens apenas como um registro do real externo e objetivo, buscando avaliar seu grau de fidelidade, pois a imagem é: “uma construção discursiva, que depende de formas históricas de percepção e leitura, das linguagens e técnicas disponíveis, dos conceitos vigentes”. (Meneses, 1996:152).
Portanto, é necessário problematizar o tipo de apreensão que a história pode fazer dos materiais de representação, imagens ou textos, como documentos que possuem uma realidade intrínseca, longe de uma referência imediata a uma verdade. Esses materiais são documentos históricos portadores de uma determinada verdade pelo fato de nos dizer algo a respeito de um determinado momento histórico, existindo no tempo e no espaço a partir da experiência de homens concretos.
Para Meneses, existem três aspectos fundamentais que devem ser incorporados ao trabalho com imagens. O primeiro aspecto é deixar de lado a falsa polaridade entre real e imaginário, pois a imagem está dentro do real, à medida que práticas e representações são indissociáveis. O segundo estaria na necessidade de a imagem ter um valor probatório. Esta é outra falsa questão, pois o valor documental das imagens refere-se à problemática das representações sociais, à possibilidade de compreensão do imaginário – e não pela capacidade de as imagens confirmarem traços empíricos. Finalmente, ressalta a capacidade do olhar do viajante de instituir um conhecimento sobre a nossa realidade. O autor conclui que: O olhar, portanto, institui seu próprio objeto. A imagem não só é instituída historicamente, como é, também, instituinte. Daí, para um verdadeiro dimensionamento histórico, a necessidade de estudar o circuito da imagem: sua produção, circulação, apropriação, em todas suas variáveis. (Meneses, 1996:154) (O grifo é do original).No processo de confronto entre as narrativas de viagens e a produção iconográfica a ela vinculada, coloca-se um novo elemento de interpretação, que diz respeito à correspondência, ou não, entre o texto e a imagem. O que a princípio pode sugerir uma facilidade – se partirmos da idéia de que o texto é igual a imagem e de que a imagem constitui-se como mero reflexo de determinadas idéias – estaremos seguramente caindo em erro. Este tipo de problema não é novo no interior das ciências humanas, considerando que desde de Aristóteles ele já vinha sendo tematizado. Tanto na filosofia, quanto na teoria da percepção, na semiologia, na psicologia, na estética e na história da arte, existem variantes significativas referente aos limites da interpretação e à relação entre imagem e texto.
No importante estudo de W.J.T. Mitchell, “Iconology: Image, Text, Ideology”, essa questão é formulada ao buscar responder duas perguntas: o que é uma imagem? Qual a diferença entre imagens e palavras? Para o autor, a importância deste tipo de indagação deve-se, sobretudo, ao fato de apontar as maneiras pelas quais a nossa própria compreensão “teórica” das imagens vinculam-se a práticas culturais e sociais.
Um primeiro problema que se coloca é a constatação de que existe uma grande quantidade e variedade de coisas que são designadas por “imagem”. São pinturas, mapas, diagramas, sonhos, alucinações, projeções, memórias etc. A segunda constatação é de que apesar de todas essas coisas poderem ser designadas por “imagens”, não significa necessariamente que elas tenham algo em comum. Para solucionar esta questão, Mitchell propõe que pensemos as imagens como sendo uma família-extensa, que tivesse migrado no tempo e no espaço e sofrido profundas modificações neste processo. (Mitchell, 1986:9).
A palavra “imagem” envolve uma série de expressões correlatas como aparência, semelhança ou similaridade. A imagem gráfica diz respeito a pinturas e desenhos, constituindo em campo de conhecimento da história da arte. Na ótica têm-se os espelhos e projeções, referindo-se ao campo da física. A imagem perceptual abrange todos os campos de conhecimento, envolvendo o processo de apreensão de dados sensíveis, espécies e aparências. A imagem mental envolve os sonhos, memórias, idéias e fantasmata, abarcando os campos da psicologia e da epistemologia. Finalmente, a imagem verbal refere-se à expressão de metáforas e descrições, sendo campo de conhecimento da crítica literária.
Cada uma dessas ramificações da imagem pressupõe um conjunto de assertivas quanto ao seu funcionamento e limites. Mitchell considera equivocada a distinção que se estabelece entre as imagens gráficas (como sendo imagens próprias) e as imagens verbais e mentais (como sendo ilegítimas). Para ele, tanto uma quanto as outras envolvem mecanismos de apreensão e interpretação multi-sensoriais. Para o entendimento das conexões que se estabelecem entre as imagens mentais e as imagens físicas, Mitchell segue o modo como Wittgenstein as trata, estando convencido de que só é possível ter imagens mentais associada a pensamentos ou falas. No entanto, as imagens mentais não são entidades privadas, metafísicas ou imateriais, mais do que qualquer imagem real deva ser. Portanto, seguindo Wittgenstein, é possível colocar as imagens mentais e físicas numa mesma categoria, como símbolos funcionais. Este tipo de solução não elimina as diferenças entre elas, mas, seguramente, tende a eliminar as qualidades metafísicas ou ocultas destas diferenças. (Mitchell, 1986:15-18).
Toda imagem verbal é uma imagem mental, não sofrendo nenhum tipo de ameaça metafísica, posto que os textos, enquanto atos de fala, são expressões públicas que pertencem como um todo, a outros tipos de materiais representacionais criados por nós, como pinturas, gráficos, mapas etc. No entanto, Mitchell considera que as imagens verbais referem-se a dois tipos antitéticos de práticas lingüísticas. Pode-se designar por imagens verbais, a linguagem metafórica, figurativa ou ornamental, como sendo uma técnica que desvia a atenção do sentido literal para outra coisa. Outra possibilidade é da imagem verbal referir-se a uma palavra que é uma imagem de uma idéia, encontrada, por exemplo, nas alegorias. (Mitchell, 1986:21)
As imagens pictóricas são inevitavelmente convencionais e contaminadas pela linguagem. No entanto, a dialética entre a palavra e a imagem tem sido uma constante na fábrica de signos que a cultura trama em volta de si mesma. O que varia é a natureza precisa desta trama, pois a história da cultura é uma parte da história da luta prolongada pelo domínio de signos lingüísticos e pictóricos, cada uma reivindicando para si certas propriedades sobre a “natureza” a qual somente um tem acesso. Concebe-se a separação entre palavras e imagens como sendo algo tão profundo quanto aquilo que separa, num sentido amplo, cultura de natureza. A imagem é um signo que pretende não ser um signo, mascarado como presença natural e imediata. A palavra é o “outro”, produção humana artificial e arbitrária que pode interromper a presença natural pela introdução de elementos não naturais no interior do mundo-tempo, consciência, história, sob a forma de mediações simbólicas alienantes. Como saída para este tipo de dilema, Mitchell propõe que se elabore uma crítica histórica dessas diferenças entre palavra-imagem, a partir de um modelo que expresse as diferenças entre estas duas linguagens, por terem uma longa história de interações e translações mútuas. (Mitchell, 1986:45).As reflexões de Mitchell apresentam um quadro para a distinção das imagens. No entanto, apresentam também um limite, à medida que, para ele, as imagens pictóricas apresentam-se contaminadas pela linguagem verbal. É possível pensar que as imagens pictóricas constituam uma linguagem, só que de natureza diversa daquela que caracteriza a linguagem verbal. Enquanto a linguagem verbal possui ampla possibilidade de combinações e de sentidos, a linguagem pictórica distingue-se de imediato por seu caráter afirmativo. Ela sempre representa algo, desconhecendo a negação da representação. Uma imagem pictórica sempre é alguma coisa, pois a negação retórica é impossível de ser representada pictoricamente. Isto é fundamental destacar, posto que, no decorrer deste trabalho, estarei lidando com esta problemática, especialmente no que tange à questão da imagem do índio e da expressão de sua humanidade.
Para o objetivo de nossa reflexão aqui, parto da construção das imagens etnográficas em que se encontram representados os índios, a natureza tropical e os próprios viajantes. Para a compreensão dessas imagens, impôs-se como questão fundamental tratar da idéia de cultura e de civilização, à medida que os viajantes tomavam por parâmetro comparativo a sua cultura e civilização como forma de descrever o modo de vida dos índios. Por outro lado, estas considerações remetiam à questão de saber se os povos indígenas tinham ou não condições de inserirem-se no processo histórico. À luz desses questionamentos foi possível apresentar as diferentes formas e estratégias de representação do índio, buscando relacioná-las à história enquanto expressão de um movimento de mudanças e permanências ao longo do tempo.
Assim, as imagens etnográficas que apresentaram o índio em seu cotidiano, foram articuladas segundo algumas temáticas como a questão da família, da construção de moradias, da maneira como caçam e guerream, de suas danças e festividades, e assim por diante. A partir destas temáticas, foi possível compreender algumas variantes quanto ao estatuto do índio, do bom selvagem no paraíso tropical ao homem degenerado frente à natureza hostil, que remetem à polêmica quanto a natureza e aos habitantes do Novo Mundo.
A compreensão precisa desse processo de inserção da natureza e dos índios num esquema de representação preexistente apontou basicamente para algumas questões: como as estratégias de representação da natureza e dos índios, sob suas diferentes modalidades, inscreviam-se enquanto um modo de assimilação das diferenças e de produção da alteridade. As marcas, índices desse processo encontram-se nas imagens etnográficas, na fundação de um novo gênero pictórico -o da pintura etnográfica- criando através dela as bases para a inserção dos índios e da natureza americana na história. Por outro lado, o fascínio do primitivo e do bárbaro repercutiu no imaginário dos viajantes alemães, uma vez que proporcionava o encontro com a ancestralidade de seus primitivos, da Germanae antiquae, e a expressão de confiança no progresso e da fé no desenvolvimento da civilização. Assim, o conhecimento de cada imagem, cada fragmento do homem e da natureza, possibilitou o encontro de olhares refletidos e reflexivos, em permanente movimento que agora se revelam por inteiro.
Nesse sentido, a análise de esboços, desenhos, aquarelas e gravuras produzidas pelos viajantes trazem consigo a perspectiva de criação de um novo gênero pictórico que buscava traduzir a experiência de suas viagens enquanto expressão histórica do observado, do vivido. Essas imagens, que denominamos de etnográficas, representaram a fusão de determinada experiência na paisagem. Com isso, emergia um outro gênero, aqui designado de pintura etnográfica, definido em termos da experiência histórica dos viajantes e povos observados fundidos à paisagem tropical.
Por imagens etnográficas, consideramos aquelas representações dos viajantes que retratavam o modo de vida dos índios em seu habitat natural, sua organização familiar, a construção de suas moradias, a forma como caçavam, cenas guerreiras, suas danças e cerimônias rituais, além de instrumentos guerreiros e artefatos domésticos. De um modo geral, todos os viajantes buscaram representar o que observaram e o que julgaram significativo da vida cotidiana dos índios.
O resultado dessas observações foi retido em suas narrativas, em desenhos, aquarelas e gravuras. Nessas imagens, a ênfase foi dada para a representação da vida indígena nas florestas tropicais. Sob este aspecto, reside algo de extremamente inovador no que se refere à representação do homem e da natureza do Novo Mundo. As imagens procuraram retratar o fato observado, e homem e natureza ganhavam um novo estatuto, já distante de qualquer sentido alegorizante, pois a representação fundou-se sobre a observação. A busca da precisão científica na representação da natureza precede ao princípio da composição das cenas. Quanto ao homem, o tipo de figuração dominante ainda encontra-se preso aos cânones acadêmicos, no entanto, em alguns aspectos como o corte de cabelos, a utilização de adornos corporais, tatuagens coloridas etc. é possível apreender-se a particularidade do grupo representado.
É claro que cada viajante compôs essas cenas de acordo com o próprio sentido que a viagem tinha para ele. E cada viajante utilizou-se de métodos diferenciados para a construção de suas imagens etnográficas. Os métodos utilizados procuram dar conta da dimensão temporal presente na narrativa, e que deveria ser traduzida em diferentes imagens pela gravura. Segundo o modelo adotado por Bernadette Bucher (1981), existem quatro métodos fundamentais pelos quais os gravadores utilizam-se para traduzir a dimensão temporal. O método monoscênico, que representa uma única ação, delimitada no tempo e no espaço, como uma cena teatral ocorrendo num cenário delimitado. O método simultâneo procura representar cenas variadas concomitantes, com a reunião de elementos descritivos dispersos pelo texto, como a descrição de uma paisagem, de um costume, de modos de vida reunidos numa mesma gravura. O método rotativo apresenta cenas em seqüência, em que várias ações distintas são repartidas e reunidas no espaço da gravura. Finalmente, o método serial consiste na apresentação de imagens autônomas, mas de modo seqüencial, cujo vínculo dá-se ao redor de um determinado tema, ou de um acontecimento.
O primeiro método e o quarto foram utilizados com freqüência por Wied-Neuwied em seus desenhos e gravuras. Já Martius, procurou elaborar suas gravuras seguindo a lógica de conjugar, num único quadro diferentes cenas, que teriam ocorrido em tempos diferentes, utilizando-se tanto do método simultâneo quanto do rotativo. Rugendas ateve-se ao método monoscênico e simultâneo, sendo difícil determinar, através de seu texto, a dimensão temporal inscrita na cena representada.Assim, em Wied-Neuwied, temos o viajante-naturalista que a tudo observou e registrou, tendo por base sempre o que tinha diante de seu olhar. Com isto soube registrar cada aspecto da vida dos índios com os quais teve contato, como nenhum outro viajante o fizera antes. No que se refere às cenas da vida indígena, observou cada detalhe, preservando em seus cadernos o que havia de original no grupo retratado, tanto com relação à natureza quanto ao homem.
Fig.1 - Familia de indios Puri em viagem pela mata. En: Wied-Neuwied, 1969.
Quanto às imagens que acompanham a narrativa, o príncipe procurou traduzir exatamente aquilo que está sendo observado. Às vezes, tem-se a impressão de que a imagem precede a elaboração do texto, de tal forma que um determinado acontecimento no decorrer da expedição passa a funcionar como guia na orientação de sua leitura:
Wied-Neuwied recolheu diversas informações sobre a organização familiar dos Puri, Camacã e Botocudo. Referindo-se a uma família de índios Puri em viagem, seguindo às margens do Rio Paraíba, próximo a São Fidélis, fixou-a no seguinte desenho (Fig.1).
Alguns Puri passaram por nós com as mulheres enormemente carregadas. As cargas consistiam nos filhos e em cestos de folhas de palmeira, cheios de bananas, laranjas, cocos de sapucaia, bambu para pontas de lança, cordas de algodão e alguns artigos de enfeite. O marido carregava um filho, suas três mulheres os outros, mais os cestos (estampa 2 representa uma horda de Puri em viagem pela mata). (Wied-Neuwied, 1989:116).
Wied-Neuwied recolheu diversas informações sobre a organização familiar dos Puri, Camacã e Botocudo. Referindo-se a uma família de índios Puri em viagem, seguindo às margens do Rio Paraíba, próximo a São Fidélis, fixou-a no seguinte desenho (Fig.1).
Alguns Puri passaram por nós com as mulheres enormemente carregadas. As cargas consistiam nos filhos e em cestos de folhas de palmeira, cheios de bananas, laranjas, cocos de sapucaia, bambu para pontas de lança, cordas de algodão e alguns artigos de enfeite. O marido carregava um filho, suas três mulheres os outros, mais os cestos (estampa 2 representa uma horda de Puri em viagem pela mata). (Wied-Neuwied, 1989:116).
Fig. 2 - Família de índios Puri na mata. In: Wied-Neuwied, 1822. Foto Angelo José da Silva
O desenho, que foi posteriormente transposto para o seu atlas sob a forma de gravura (Fig. 2), apresentou alterações, desvirtuando a informação inicial de poligamia entre os Puri. A imagem insere o desenho dos índios em viagem para um cenário no interior da floresta, onde cada espécie vegetal ganhou destaque, ao ser representada de modo orgânico e inter-relacionados, com árvores decompostas, palmeiras, helicônias e uma variedade de parasitas, bromélias e cipós entrelaçados. Algumas características dos índios são destacadas, como, por exemplo, o corte de cabelos, as pinturas corporais e seus arcos e flechas. No mais, a gravura mantêm-se fiel aos cânones quanto à representação dos tipos físicos.
Outros recursos também foram utilizados na composição de uma imagem gravada, a partir de dois tipos de registros. No desenho (Fig. 3), que foi descrito por Wied-Neuwied, destaca-se a composição de uma família de Botucudo, um homem à frente, carregando seus arcos e flechas e trazendo pendurado a uma tira, em sua cabeça, uma bolsa de utensílios. No desenho, seu rosto apresenta marcas de expressão na testa e ao redor da boca, indicando um índio já maduro. Atrás vêm suas duas mulheres, bastante carregadas com bolsas penduradas na cabeça e apoiadas em suas costas, além de trazerem consigo seus filhos. Uma das mulheres carrega nas mãos o copo de taquarussu, utilizado para beber água. Outra leva a sacola de viagem. A que está logo atrás do homem é mais velha, como se pode inferir pelas marcas em seu rosto.
Outros recursos também foram utilizados na composição de uma imagem gravada, a partir de dois tipos de registros. No desenho (Fig. 3), que foi descrito por Wied-Neuwied, destaca-se a composição de uma família de Botucudo, um homem à frente, carregando seus arcos e flechas e trazendo pendurado a uma tira, em sua cabeça, uma bolsa de utensílios. No desenho, seu rosto apresenta marcas de expressão na testa e ao redor da boca, indicando um índio já maduro. Atrás vêm suas duas mulheres, bastante carregadas com bolsas penduradas na cabeça e apoiadas em suas costas, além de trazerem consigo seus filhos. Uma das mulheres carrega nas mãos o copo de taquarussu, utilizado para beber água. Outra leva a sacola de viagem. A que está logo atrás do homem é mais velha, como se pode inferir pelas marcas em seu rosto.
Fig.3 - Família De Botocudo. Wied-Neuwied. In: Brasilien Bibliothek(Katalog), Löschner, 1988, V.1
Desse desenho original, foi construída uma gravura (Fig. 4), que compôs o atlas de Wied-Neuwied. Nela, o índio botocudo aparece de frente, paramentado segundo sua tradição, com batoques nas orelhas e lábios, a tacanhoba e um cordão em seu pescoço. Está atravessando um rio junto com sua família. Carrega numa das mãos seu arco e flechas e na outra um pequeno animal caçado (cotia). Logo atrás dele encontra-se sua mulher levando presa em seu corpo uma grande cesta muito cheia; além de carregar em seu ombro uma criança, segura uma outra pela mão (esta, um pouco maior, leva também nas costas um irmão menor). A imagem traz elementos que não conflitavam com a cultura européia, pois o registro visual original que sugere a prática da poligamia entre os Botocudo foi suprimido na gravura, embora se mantenha presente no texto do naturalista.
Fig. 4 - Familia de Botocudo. En: Wied-Neuwied, 1822. Foto Angelo José da Silva
Essas passagens são elucidativas da maneira como o príncipe construiu sua narrativa articulando imagem e texto. Os desenhos (Fig. 1 e 3) fazem parte do acervo de Neuwied que não foram incluídos em seu atlas. Josef Röder[1], ao avaliar a obra do príncipe, assinala que graças à descoberta dos desenhos originais foi possível conhecer melhor a maneira como ele trabalhava, uma vez que o desenho e a pintura eram parte integrante de seu modo de fazer anotações. Informa que o príncipe não tinha o hábito, no decorrer da viagem, de fazer seu relatório de modo contínuo. Anotava tudo que considerava importante em cadernetas de bolso, possuindo para cada assunto cadernetas individuais. Nesses cadernos também fazia pequenos esboços, que posteriormente eram redesenhados. O príncipe diz expressamente em sua obra que fez os esboços para as ilustrações nos próprios locais. Esses esboços devem ter sido feitos diante do respectivo objeto de desenho, sendo redesenhados em folhas maiores e aquarelados. Em seus estudos etnográficos, o desenho funcionava como meio de pesquisa, posto que retinha aspectos significativos do texto. (Röder, 1969:10-1, 13-4)
Do simples confronto entre essas imagens (Fig. 1, 2 e 3), constata-se o processo de alteração pelos quais passou. Nesse processo tem-se comprometido o valor documental dessas gravuras. Isso só pode ser avaliado pelo confronto do texto e dos desenhos originais com a gravura. No entanto, as alterações ocorridas na passagem do desenho em um caderno de notas mediante a observação direta para o registro em gravura, foram reguladas pelo princípio da composição, na qual a cena observada e o cenário passam a ter papel fundamental, posto que a elas se articulam a visão do homem primitivo e da natureza tropical como um todo. Assim, tendiam a ser suprimidas aquelas informações cujo valor documental revelava-se precisa, como o caso da prática da poligamia e do caráter bélico e escravocrata das populações indígenas[2]. Na realidade, o viajante dispunha de um determinado repertório de imagens desenhadas e que foram posteriormente combinadas. Essas combinações não eram aleatórias, porque, através da imagem pictural, o viajante procurava passar uma imagem da família indígena que não conflitasse com a cultura européia.
Havia, de fato, o interesse de informar ao público uma determinada realidade sobre os habitantes indígenas, até um certo limite. O público consumidor dos livros e atlas de viagem tinha certamente a curiosidade quanto ao aspecto físico e o modo de vida dos índios. No entanto, é possível supor que viajantes e gravadores chegassem a um entendimento do que seria mais adequado de se mostrar e aceito pelo público. Informações como a poligamia e práticas guerreiras apresentam-se nos textos de modo corrente, já sua figuração revela-se mediada, ou por questões morais, ou talvez pelo próprio romantismo, que tendia a filtrar, digamos assim, algumas imagens que pudessem chocar o público europeu. Mas, estas suposições não podem ser entendidas como uma regra geral, posto que durante o século XIX circulavam imagens cuja ênfase incidia sobre o modo de vida dos índios com suas constantes guerras e práticas pouco civilizadas. Seguindo a linha das suposições, talvez isso ocorresse não por razões de ordem moral, mas sim, políticas, vindo a justificar ações de domínio, levadas a efeito pelas nações imperialistas.
Fig. 5- Familia de Indios Botocudo. En: Rugendas, 1991
Esse mesmo princípio de composição encontramos em Rugendas, ao representar uma família de índios Botocudo na floresta (Fig. 5). Os desenhos originais de Wied-Neuwied trazem aquilo que foi considerado significativo para a representação, como registro de algo efetivamente observado. Já a gravura de Rugendas teve por base naquelas feitas por Wied-Neuwied. A composição da cena apresenta cada elemento articulado entre si, formando uma visão de conjunto, segundo a imaginação do pintor.
O elemento de ligação evidencia-se na forma como cada figura está articulada. Da criança à mulher, desta ao homem botocudo, dela à outra mulher abaixada sobre a caça, da caça ao papagaio na mão de outro índio, em pé e de costas. Cada figura concorre para a composição de um quadro harmônico e equilibrado. Para concluir a composição, representou-se, então, o cenário da floresta tropical, com sua vegetação de grandes árvores e parasitas entrelaçados, com detalhes apenas no lado direito e mais iluminado do quadro.
A gravura contém uma mulher índia carregando uma criança em suas costas pendurada por uma faixa presa em sua cabeça. A mulher usa um colar de espinhos de uma planta ou de dentes de algum animal no pescoço, está vestida com um avental trançado. Tem algumas pinturas de urucum no corpo (linhas paralelas no braço e estrelas no alto dos seios). Seus cabelos são negros e compridos. Apóia uma das mãos no ombro do homem indígena. Esta figura tem o cabelo preto curto, rente à testa e ao pescoço. Tem batoques nas orelhas e lábios e seu corpo está tatuado com algumas pinturas sob a forma de pequenos círculos (na altura do abdômen, dois em cima e dois embaixo). Um pouco acima de seu peito tem desenhado dois círculos maiores vazados com um ‘x’ em seu interior. Segura em uma de suas mãos duas flechas grandes que são utilizadas para caça de grandes animais. Abaixada em frente ao homem encontra-se outra figura feminina nua, que traz o cabelo curto e usa pequenos batoques nas orelhas e boca. Tem a mão sobre um porco do mato que sangra. A figura que está segurando o papagaio é um índio que se encontra de costas para o observador. Tem os cabelos compridos e parece ter uma barba rala e esta nu. Na legenda da gravura está indicado que se trata de uma família indígena de Botocudo.
A princípio seríamos levados a considerar que Rugendas apresentou uma informação documental quanto aos hábitos de casamento dos Botocudo – ao representar duas mulheres e um homem no centro do quadro – de modo bastante preciso, diferentemente do que foi assinalado quanto à gravura do atlas de Wied-Neuwied. No entanto, confrontando a gravura com a informação etnográfica disponível (feita por Wied-Neuwied e Martius), constata-se que o grupo representado traz a mistura de traços e marcas culturais de dois grupos tribais distintos: os Botocudo e os Puri.
A primeira mulher descrita tem os cabelos compridos, o corpo pintado com pequenos desenhos feitos com urucum (prática corrente entre os Puri) e não traz os batoques, portanto, não é da tribo dos Botocudo. Usa um tipo de avental que se assemelha ao utilizado pelas índias da tribo dos Camacã. Mas o avental destas e feito com linhas de algodão trançadas, diferentemente do que está representado na gravura, confeccionado com fibra vegetal (possivelmente a folha de alguma palmeira) e trançado[3]. As outras figuras destacadas na gravura são índios Botucudo (o homem e a mulher agachada), sendo que o homem também utiliza as pinturas corporais que eram de uso dos Puri. Quanto a esse aspecto, vale observar que pelas descrições etnográficas (de Wied-Neuwied e Martius), os Botocudo cobriam o corpo inteiro com urucum e jenipapo. Já o índio de costas parece ser da tribo dos Puri.
Ao misturar informações etnográficas distintivas de cada grupo representado, como os Botocudo e Puri, Rugendas produziu uma imagem destituída de valor documental, mas orientada por um objetivo, que salvo engano, buscava mostrar os índios vivendo em harmonia entre si e num estado de natureza. Conforme fora assinalado, o artista preocupou-se em seus quadros em formular um visão da vida indígena que denotasse uma adequação entre a vida selvagem e a natureza que a cercava. Daí a recorrência da composição e a predominância dos elementos articulados para produzir uma imagem de harmonia e equilíbrio. Suas gravuras sobre a temática indígena, em geral, ressentem-se de valor etnográfico, mas revelam com clareza a visão do artista-viajante frente a um mundo que considerava ideal em oposição à civilização européia.
Em Martius, existia também a preocupação de destacar o fato observado como princípio da representação. No entanto, como viajante-clássico, não deixou de se auto-representar em cenas significativas de sua viagem. Do conjunto de todas as gravuras de seu atlas, a maioria contém a imagem do viajante, seja contemplando a paisagem, seja observando algum ritual indígena. Esse aspecto da representação é de extrema importância para o tipo de considerações que Martius produziu frente ao contato com os mais diferentes grupos indígenas que teve a oportunidade de encontrar. O aspecto heróico de seu empreendimento destaca-se pela constância da própria imagem do viajante enfrentando as mais diversas situações, por vezes bastante perigosas. Além disso, funciona como um dado contrastivo revelando a própria identidade européia frente aos povos indígenas do Brasil. Cada aspecto, contido na representação, os seus gestos, as posturas e vestimentas, apresentam-no como uma presença-observadora, um elemento de aproximação e distanciamento com relação ao fato observado.
Se Wied-Neuwied e Rugendas privilegiaram a organização familiar dos indígenas como foco da representação, Martius adotou uma outra estratégia para apresentar esse tema. O naturalista diferenciou o enfoque de suas ilustrações ao destacar a habitação e as aldeias indígenas, revelando através delas as formas de organização familiar encontrada entre os diferentes grupos indígenas que teve contato. Ao visitar uma maloca de índios Mura (Fig. 6), relatou que: Quando entramos nessa cabana, acompanhados do mundurucu, fechou-se a carranca do tuxaua, num misto de cólera, embaraço e temor que pareceu aliviado quando da cabana baixa e enfumaçada nos retiramos para o ar livre. Também nos bastaram poucos minutos para ver-lhe os pobres e sujos objetos caseiros. Em parte alguma nos pareceu tão medonha e triste a miséria do silvícola americano, como ali. Tudo indicava que mesmo as mais simples necessidades da vida se satisfaziam ali a modo dos animais.A palhoça, construída com troncos de árvores, coberta de folhas de palmeira e ripas, cuja porta baixa também servia de janela e de chaminé, tinha quando muito o comprimento de uma rede, feita não com o artístico trançado, mas simplesmente de uma casca de árvore em forma de canoa. Além das armas, faltava todo utensílio doméstico.(...) A expressão das fisionomias era feroz, hesitante, abjecta (Martius, 1989:120, v.III).
Fig. 6 - Cabana dos Mura. En: Spix Und Martius, 1967.
Tanto pela imagem quanto pelo texto, Martius buscou assinalar vários aspectos da vida dos índios Mura, destacando a relação de conflito existente entre estes índios e os Mundurucu, até a forma como controem suas casas (em forma de canoa) passando por sua expressão fisionômica. No atlas esta imagem apresenta-se junto a outras sob a denominação de flagrantes da vida da população. Mas, nesse registro, revela-se também a intimidade de um casal de índios Mura no interior de sua maloca. Pelo olhar do casal e pela expressão assustada da mulher, é possível que eles tivessem sido surpreendidos pela entrada não só de seu inimigo Mundurucu, mas da figura do próprio viajante, que adentra a maloca armado com uma espingarda.
A gravura (Fig. 7) representando a escavação e preparo dos ovos de tartaruga numa praia do rio Amazonas[4] ilustra o contato entre índios, negros, portugueses e os próprios viajantes.
A gravura (Fig. 7) representando a escavação e preparo dos ovos de tartaruga numa praia do rio Amazonas[4] ilustra o contato entre índios, negros, portugueses e os próprios viajantes.
Fig. 7 - Escavação e Preparo dos ovos de tartaruga, na praia das Onças. En: Martius, 1967.
A mistura de gente de tôdas as côres era aqui muito maior do que na Praia de Guajaratuba, o movimento aumentou com a presença de um oficial da Barra, nomeado capitão da praia pelo governador, e o conjunto apresentava um aspecto tão interessante que tentei fica-lo num desenho (Martius, 1967:56).Chama a atenção nessa gravura a figura do viajante (no centro, atirando ao lado de um índio) como partícipe de um acontecimento de grande mobilização social. Trata-se de um acampamento onde estavam aproximadamente 350 pessoas, entre índios, negros e brancos. No meio da cena, vê-se, além da figura dos viajantes, o capitão da Barra, nomeado pelo governador, que tinha atribuição de manter a ordem, dividir a colheita e arrecadar o dízimo para o erário. A luz divide transversalmente a cena, mantendo sombrio o lado direito, que abriga a figura sorrateira de um jacaré. No outro extremo, vê-se a movimentação das pessoas na coleta dos ovos de tartaruga e no preparo da manteiga. A vegetação é composta de grandes árvores (Castanheiro) envolvidas por cipós, flora epífita e parasitas, além de diversos tipos de palmeiras. Ao fundo da cena, observa-se a concentração de grande número de pessoas às margens do rio. Mais uma vez, é a figura central do viajante que ordena o espaço da gravura, realçando a presença civilizadora. A imagem é exemplar de um modo corrente de figuração adotada pelo viajante ao retratar o que era agradável, peculiar ou pitoresco em sua experiência de viagem.
Essa gravura (Fig. 7) constitui exceção quanto ao procedimento de Martius no tratamento das imagens. Em geral, ao confrontar o texto da viagem com o atlas que o acompanha, percebe-se que não existiu a intenção de estabelecer vínculo direto entre texto e imagem. Freqüentemente é descrita uma determinada cena, paisagem ou aspecto de algum grupo indígena, sem qualquer referência direta à imagem correspondente. Em todo o livro, apenas em duas passagens é remetida à imagem do atlas. Para Martius, a imagem parece ter assumido um estatuto diferenciado e independente do texto, ao contrário do que se verificou no trabalho de Wied-Neuwied. Para ele prevaleceu a utilização do método simultâneo e rotativo da construção de suas imagens.
As estampas do atlas foram gravadas a partir de desenhos esboçados em sua maioria por Martius e Thomas Ender. Os esboços foram redesenhados por F. W. von Couven, Hellmuth, Friedrich Hohe, A. Kraft, E. Meyer, Minsinger, Johann Nepomuk von Ott, Josef Päringer, F. Papst, Philipp Schmid, van de Velde, Raphael Winter, sendo parcialmente litografadas em argila por Joseph Steingrübel, Franz Xaver Nachtmann, Carl Friedrich Heinzmann e Friedrich Hohe, impressas por Josef Selb; tendo seis estampas coloridas[5].
O procedimento de utilizar um esboço para ser redesenhado no momento da gravação implicou as mesmas alterações mencionadas para a obra de Wied-Neuwied. Os desenhos de Spix e Martius foram feitos, em sua maioria, durante a viagem e posteriormente retrabalhados pelos gravadores. Inseridos num processo de divisão de trabalho, cada gravador acabava por especializar-se em certa representação, como figuras, paisagens, desenhos de árvores e outros objetos, tornando as gravuras a expressão de uma obra coletiva. O resultado final dessas obras afastava-se muito do desenho original também pelo total desconhecimento das terras a serem representadas.
Em Rugendas, é possível afirmar que as suas cenas da vida indígena foram baseadas em informações de outros viajantes (como de Wied-Neuwied e de Martius) e do contato de estabeleceu com alguns indígenas no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Desse modo, nele encontramos a representação que tem por base o princípio da composição e da imaginação, distante, portanto, da observação direta do fato retratado. Como artista-viajante, Rugendas ateve-se à base de sua formação acadêmica, buscando representar aquilo que era considerado significativo e pitoresco da vida dos índios brasileiros na floresta tropical.
O pintor procurou estabelecer correspondência de caráter geral entre o texto e as imagens constantes de seu álbum. O livro de viagem de Rugendas diferencia-se dos produzidos pelos outros viajantes aqui abordados por tratar-se de um livro de viagem sem a viagem, porque nele não existem as marcas do primeiro fato da escritura: não há nenhum deslocamento no espaço, nada que marque o tempo ou distâncias percorridas, nada que revele a rotina da própria viagem. Isto explica-se por não se conhecer com precisão o itinerário do pintor após ter deixado a Expedição Langsdorff. É possível seguir os caminhos do pintor até a província de Minas Gerais. Do seu regresso ao Rio de Janeiro e daí à Europa, paira certa imprecisão de itinerário. Agregue-se a essas imprecisões o fato de que a narrativa apresenta informações estanques.
Apesar de buscar apresentar um quadro sobre o país, o fez de modo bastante genérico: de aspectos da vida nas cidades, da presença da corte portuguesa, do trabalho dos escravos negros, da maneira como os viajantes europeus devem organizar suas viagens pelo interior do país e do modo de vida dos indígenas. Quanto aos índios, certamente teve possibilidade de os conhecer, mas dificilmente teria chegado a viver no meio deles por vários meses, conforme assinalou sua biógrafa Gertrud Richert[6].
Fig.8 - Rencontre d’indiens avec des voyageurs europées. En: Rugendas, 1991.
Nessa gravura (Fig.8) vemos no plano central (mais iluminado) a figura de três viajantes, montados em seus cavalos e vestidos com trajes próprios para a viagem: botas, chapéus e rifles. Junto ao grupo, um guia negro armado com um rifle, segura as rédeas de um cavalo de carga. De frente aos europeus, três índios (provavelmente Puri), armados com suas lanças e nus. O índio do meio carrega uma arara numa de suas mãos. O encontro parece ser comercial, pela troca da arara capturada por alguma quinquilharia oferecida pelos europeus. Num espaço menos iluminado do quadro, envolvidos pela cumplicidade da mata, encontram-se um grupo de quatro índios (um homem, duas mulheres e uma criança) que acompanham atentamente a cena principal. No lado esquerdo, distanciam-se duas figuras (uma mulher índia). A floresta tropical delineia-se como cenário, abarcando completamente a cena.
Segundo Newton Carneiro, na reprodução do desenho original, verificam-se as modificações introduzidas pelo artista ao passá-lo para a pedra. A cena foi litografada por Rugendas interessado em detalhar cada componente que a constituía. Destacou detalhes florais e redesenhou os índios, introduzindo modificações fisionômicas e particularidades da indumentária dos personagens. (Carneiro, 1979:37)
A gravura ilustra precisamente um dos momentos da viagem da Expedição de Langsdorff. Cada elemento presente no quadro remete a uma série de distinções entre o viajante branco europeu com os índios das selvas brasileiras. Cada componente articulado no quadro refere-se ao contraste de espaço e tempo, da cultura e civilização européia em oposição aos selvagens. Como nos referimos em passagens anteriores, esse tipo de auto-representação propiciou a expressão decisiva das diferenças culturais, raciais e sociais, bem como marcou um momento fundante da experiência da viagem - sua historicidade.
Mas, é interessante destacar, diferentemente dos outros viajantes naturalistas, Rugendas preocupou-se em apenas registrar o que via, como um “olhar inocente”, porque invisível e distante da experiência da qual era parte integrante. É possível imaginar que Wied-Neuwied e Martius tivessem uma perspectiva diferente da viagem que realizavam. Para eles, participar ativamente da imagem era sobretudo, inscrever-se naquela história que estava sendo construída a cada momento, vencida a cada obstáculo, a cada desafio. Trazendo consigo a civilização em sua bagagem, cada lugar e cada povo contatado era passível de se transformar em marca, num mapa ou gravura, de uma etapa vencida, da civilização sobrepondo-se a barbárie e selvageria dos trópicos.
Seguindo o exemplo inaugurado por Alexander von Humboldt, que publicou o Atlas pittoresque: Vues des Cordillères et monumens des peuples indigènes de l’Amerique, em 1810[7], os viajantes publicaram seus Atlas ou álbuns pitorescos, caracterizados por uma mescla de informações e de representações dos povos e lugares encontrados em suas viagens. A publicação de Humboldt incluía vistas de vulcões, do Chimborazo, desenhos de ruínas, esculturas astecas e peruanas, entre outros aspectos da vida na América, evidenciando a mistura do científico com o pitoresco[8]. Cada prancha de seu atlas era apresentada na abertura dos capítulos, buscando traçar um quadro do Novo Mundo. A cada gravura seguia-se um pequeno comentário ou a análise de um determinado artefato, com vistas a estabelecer vínculos mais gerais com outras culturas.
Das viagens a diferentes partes do território brasileiro, esses viajantes europeus elaboraram seus respectivos relatos e produziram uma variedade muito grande de imagens, de desenhos que tinham por objetivo retratar o mais fiel possível o cenário do Novo Mundo. A idéia do mundo como teatro revela muito a perspectiva e o ponto de vista dos viajantes europeus. Para o europeu, o Novo Mundo oferecia um tipo de espetáculo diverso daquele conhecido no Velho Mundo, pois remetia à natureza e ao modo como ela foi sendo desenhada, pelo olhar do viajante, que oscilava entre a dissecação e classificação das espécies e a sedução ao pitoresco e ao sublime.
Temos em Wied-Neuwied, a figura de um viajante naturalista, absolutamente pragmático, atento à observação detalhada e à expressão de um espírito relativizador, buscando ponderar o observado frente a outros autores e relatos. Pode-se dizer que ele foi o mais antropológico, também caracterizando-se como um tipo de viajante independente, a serviço apenas do progresso e da ciência.
Martius é também um viajante naturalista que realizou observações argutas, de caráter antropológico, não deixando, no entanto, de expressar preconceitos correntes de seu tempo. Foi também um viajante a serviço de um rei, orientado minuciosamente quanto aos objetivos de sua viagem, aos objetos a serem coletados para a construção de herbários e museus. Antes de tudo, incorporou a figura do viajante da antigüidade clássica, elaborando uma visão de viagem que nada deixa a desejar frente aos feitos heróicos de um Homero em sua Odisséia.
Rugendas personifica exatamente a figura do artista viajante. O que exige de seus leitores é precisamente a leitura de suas imagens. Mas se engana quem pretender encontrar nelas a expressão de uma realidade objetiva que tenha sido registrada. Longe de expressar qualquer conflito entre a visão do artista e a do cientista, soube produzir de fato uma afinidade eletiva entre estes termos, criando obra inovadora quanto à visão do Novo Mundo e de sua população para o mundo europeu do século XIX. A trajetória de sua vida e a de suas viagens apresentam etapas distintas na realização de suas aspirações: num primeiro momento, chegou ao Brasil a serviço de uma expedição científica, com roteiros, objetivos e metas claramente estabelecidos por Langsdorff; em outro, constrói para si a imagem do artista-viajante andarilho, buscando através de sua arte retratar com precisão os habitantes e a natureza americana.
Do mesmo modo que cada viajante teve um modo próprio de encarar a viagem, também se distinguiram no modo de descrever e representar os povos indígenas no Brasil. No geral demonstravam interesse em estar associando determinadas práticas da vida indígena, com suas idéias a respeito da civilização e da própria história, que, a nosso ver, passada a ser reescrita através dos gestos e olhares dos viajantes ao assimilarem pela representação dos primitivos habitantes do Brasil.BibliografíasBaxandall, Michael. 1991. O Olhar Renascente: Pintura e Experiência Social na Itália da Renascença. Paz e Terra, Rio de Janeiro.
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[*] Profesora, Doctora. Departamento de Ciências Sociais – Universidade Federal do Paraná.
[1] Os desenhos originais de Wied-Neuwied foram descobertos, pelos pesquisadores Josef Röder e Hermann Trimborn, divulgado esse trabalho no XXXI Congresso Internacional de Americanistas, realizado em São Paulo, em 1955. O livro de Josef Röder e Herman Trimborn, Maximilian Prinz zu Wied - Unveröffentlichte Bilder und Handschriften zur Völkerkunde Brasiliens, Bonn: Ferd. Dümmlers Verlag, 1954, consta de dois volumes, sendo o primeiro de texto acompanhado de 16 figuras em pranchas soltas. O segundo volume constitui um álbum com 42 reproduções fotográficas de aquarelas. Esse livro é extremamente raro, e provavelmente teve uma edição reduzida. Durante a realização da pesquisa apenas obtive as indicações de sua existência. Sobre essa obra ver: Trimborn, Herman. Acuarelas y dibujos inéditos del Príncipe Maximiliano de Wied referentes a la Etnografia del Brasil. Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas, São Paulo, 1955; Baldus, Herbert. Revista do Museu Paulista, Nova Série, vol. X, São Paulo, 1956. p. 58 (resenha); Schaden, Egon. Revista de Antropologia, vol. 3 no 1, 1955, (resenha). Os desenhos e aquarelas originais da Expedição de Wied-Neuwied encontram-se na Bibliothek der Robert Bosch, em Stuttgart. In: Belluzzo, Ana Maria. O Brasil dos Viajantes. São Paulo: Fundação Odebrecht, Metalivros, 1994. p. 159, 2v. O catálogo do acervo de Wied-Neuwied pertencente à biblioteca da Robert Bosch consta da publicação Löschner, Renate. Brasilien Bibliothek der Robert Bosch GmbH: Maximilian Prinz zu Wied. (Katalog), Stuttgart, 1988, 3v.
[2] A questão da escravização de seus inimigos foi objeto de observação dos viajantes. Tanto Wied-Neuwied quanto Martius mencionam este tema em suas narrativas. Wied-Neuweid referindo-se aos Botocudo (Wied-Neuwied, 1989:311) e Martius aos miranhas (Martius, 1981:235-245, v.III) e a prática do “descimento”(venda de prisioneiros) entre eles.
[3] A prática de tecelagem era corrente entre alguns grupos indígenas (como entre os Coroado, Coropó e Camacã, e por vários grupos do Amazonas), especialmente no que se refere à tecelagem de redes, executada pelas mulheres. Durante a realização de minha pesquisa, não encontrei nenhuma referência a esse tipo de avental trançado (feito com fibras vegetais) entre os índios que foram objeto de observação dos viajantes alemães. Existe um tipo de avental de fibra vegetal, como o usado pela índia Uainumá (Fig. 43), só que confeccionado com fibras vegetais enroladas sob a forma de finas cordas e dispostas paralelas umas às outras, não sendo, portanto, tecido (esse artefato foi desenhado por Martius e um desses aventais faz parte de usa coleção etnográfica depositada no Museum für Völkerkunde München, In: HELBING, 1994:216-217). Em trabalho ainda inédito, Robert Slenes analisa uma esteira representada numa das gravuras do álbum de Rugendas denominada de “Habitação de Negros”. Slenes demonstra em seu trabalho que a tecelagem de esteira segue um padrão xadrez (segundo, aliás, a mesma padronagem do avental da índia) revelando as conexões entre aquele artefato e um tipo de arte praticada pelos negros Bakongo da África Central, mais do que a assimilação por parte dos negros africanos das técnicas de tecelagem de origem indígena. Sobre esta questão ver: SLENES, Robert. “Bávaros e Bakongo na ‘Habitação de Negros’: Johann Moritz Rugendas e a Invenção do Povo Brasileiro”. Campinas, 1995. p.111-116. (mimeo.)
[4] Na edição de 1981 da Viagem pelo Brasil, essa gravura é seguida de uma legenda que informa que se trata da escavação e preparo dos ovos de tartaruga na praia de Guajaratuva. No entanto, no próprio texto de Martius (que acompanha a edição fac-simile de seu atlas), refere-se a este local como sendo a praia das Onças, numa ilha do Rio Amazonas. Relata o que ocorre nesta localidade, finalizando que o conjunto apresentava um aspecto tão agradável, que resolveu desenhá-lo (1967).
[5] Biblioteca Brasiliana da Robert Bosch GmbH, São Paulo : Livraria Kosmos Editora, 1992. p. 276.
[6] KOMISSAROV, Boris que assinala “Richert não atentou para o grau de correspondência das gravuras com a verdade histórica, atribuindo o mesmo valor a todas as pranchas editadas por Engelman. Outro erro cometido pela pesquisadora ao analisar os “índios” das gravuras , foi o de não se basear em informações sobre a história da expedição, e sim atuar de outra maneira: com base nas ilustrações, tentou reconstruir o percurso da viagem. Como resultado, de acordo com Richert, Rugendas morou “meses” entre os índios nas margens do rio Doce, chegando ate mesmo a visitar o ...Mato Grosso(!)”.(1988. p. 31-32).
[7] Voyage de Humboldt et de Bonplant, Première Partie; Relation Historique: Atlas pittoresque: Vues de Cordillères et monuments des peuples indigènes de l’Amérique, Paris, 1810.
[8] Ver a esse respeito CATLIN, Stanton. “Nature, Science and the Picturesque” In: Art in Latin América: The Modern Era, 1820-1980, Ausseelungskatalog Dawn A. Des., New Haven and London : Yale University Press, 1989. p.63-99.
Segundo Newton Carneiro, na reprodução do desenho original, verificam-se as modificações introduzidas pelo artista ao passá-lo para a pedra. A cena foi litografada por Rugendas interessado em detalhar cada componente que a constituía. Destacou detalhes florais e redesenhou os índios, introduzindo modificações fisionômicas e particularidades da indumentária dos personagens. (Carneiro, 1979:37)
A gravura ilustra precisamente um dos momentos da viagem da Expedição de Langsdorff. Cada elemento presente no quadro remete a uma série de distinções entre o viajante branco europeu com os índios das selvas brasileiras. Cada componente articulado no quadro refere-se ao contraste de espaço e tempo, da cultura e civilização européia em oposição aos selvagens. Como nos referimos em passagens anteriores, esse tipo de auto-representação propiciou a expressão decisiva das diferenças culturais, raciais e sociais, bem como marcou um momento fundante da experiência da viagem - sua historicidade.
Mas, é interessante destacar, diferentemente dos outros viajantes naturalistas, Rugendas preocupou-se em apenas registrar o que via, como um “olhar inocente”, porque invisível e distante da experiência da qual era parte integrante. É possível imaginar que Wied-Neuwied e Martius tivessem uma perspectiva diferente da viagem que realizavam. Para eles, participar ativamente da imagem era sobretudo, inscrever-se naquela história que estava sendo construída a cada momento, vencida a cada obstáculo, a cada desafio. Trazendo consigo a civilização em sua bagagem, cada lugar e cada povo contatado era passível de se transformar em marca, num mapa ou gravura, de uma etapa vencida, da civilização sobrepondo-se a barbárie e selvageria dos trópicos.
Seguindo o exemplo inaugurado por Alexander von Humboldt, que publicou o Atlas pittoresque: Vues des Cordillères et monumens des peuples indigènes de l’Amerique, em 1810[7], os viajantes publicaram seus Atlas ou álbuns pitorescos, caracterizados por uma mescla de informações e de representações dos povos e lugares encontrados em suas viagens. A publicação de Humboldt incluía vistas de vulcões, do Chimborazo, desenhos de ruínas, esculturas astecas e peruanas, entre outros aspectos da vida na América, evidenciando a mistura do científico com o pitoresco[8]. Cada prancha de seu atlas era apresentada na abertura dos capítulos, buscando traçar um quadro do Novo Mundo. A cada gravura seguia-se um pequeno comentário ou a análise de um determinado artefato, com vistas a estabelecer vínculos mais gerais com outras culturas.
Das viagens a diferentes partes do território brasileiro, esses viajantes europeus elaboraram seus respectivos relatos e produziram uma variedade muito grande de imagens, de desenhos que tinham por objetivo retratar o mais fiel possível o cenário do Novo Mundo. A idéia do mundo como teatro revela muito a perspectiva e o ponto de vista dos viajantes europeus. Para o europeu, o Novo Mundo oferecia um tipo de espetáculo diverso daquele conhecido no Velho Mundo, pois remetia à natureza e ao modo como ela foi sendo desenhada, pelo olhar do viajante, que oscilava entre a dissecação e classificação das espécies e a sedução ao pitoresco e ao sublime.
Temos em Wied-Neuwied, a figura de um viajante naturalista, absolutamente pragmático, atento à observação detalhada e à expressão de um espírito relativizador, buscando ponderar o observado frente a outros autores e relatos. Pode-se dizer que ele foi o mais antropológico, também caracterizando-se como um tipo de viajante independente, a serviço apenas do progresso e da ciência.
Martius é também um viajante naturalista que realizou observações argutas, de caráter antropológico, não deixando, no entanto, de expressar preconceitos correntes de seu tempo. Foi também um viajante a serviço de um rei, orientado minuciosamente quanto aos objetivos de sua viagem, aos objetos a serem coletados para a construção de herbários e museus. Antes de tudo, incorporou a figura do viajante da antigüidade clássica, elaborando uma visão de viagem que nada deixa a desejar frente aos feitos heróicos de um Homero em sua Odisséia.
Rugendas personifica exatamente a figura do artista viajante. O que exige de seus leitores é precisamente a leitura de suas imagens. Mas se engana quem pretender encontrar nelas a expressão de uma realidade objetiva que tenha sido registrada. Longe de expressar qualquer conflito entre a visão do artista e a do cientista, soube produzir de fato uma afinidade eletiva entre estes termos, criando obra inovadora quanto à visão do Novo Mundo e de sua população para o mundo europeu do século XIX. A trajetória de sua vida e a de suas viagens apresentam etapas distintas na realização de suas aspirações: num primeiro momento, chegou ao Brasil a serviço de uma expedição científica, com roteiros, objetivos e metas claramente estabelecidos por Langsdorff; em outro, constrói para si a imagem do artista-viajante andarilho, buscando através de sua arte retratar com precisão os habitantes e a natureza americana.
Do mesmo modo que cada viajante teve um modo próprio de encarar a viagem, também se distinguiram no modo de descrever e representar os povos indígenas no Brasil. No geral demonstravam interesse em estar associando determinadas práticas da vida indígena, com suas idéias a respeito da civilização e da própria história, que, a nosso ver, passada a ser reescrita através dos gestos e olhares dos viajantes ao assimilarem pela representação dos primitivos habitantes do Brasil.BibliografíasBaxandall, Michael. 1991. O Olhar Renascente: Pintura e Experiência Social na Itália da Renascença. Paz e Terra, Rio de Janeiro.
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[*] Profesora, Doctora. Departamento de Ciências Sociais – Universidade Federal do Paraná.
[1] Os desenhos originais de Wied-Neuwied foram descobertos, pelos pesquisadores Josef Röder e Hermann Trimborn, divulgado esse trabalho no XXXI Congresso Internacional de Americanistas, realizado em São Paulo, em 1955. O livro de Josef Röder e Herman Trimborn, Maximilian Prinz zu Wied - Unveröffentlichte Bilder und Handschriften zur Völkerkunde Brasiliens, Bonn: Ferd. Dümmlers Verlag, 1954, consta de dois volumes, sendo o primeiro de texto acompanhado de 16 figuras em pranchas soltas. O segundo volume constitui um álbum com 42 reproduções fotográficas de aquarelas. Esse livro é extremamente raro, e provavelmente teve uma edição reduzida. Durante a realização da pesquisa apenas obtive as indicações de sua existência. Sobre essa obra ver: Trimborn, Herman. Acuarelas y dibujos inéditos del Príncipe Maximiliano de Wied referentes a la Etnografia del Brasil. Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas, São Paulo, 1955; Baldus, Herbert. Revista do Museu Paulista, Nova Série, vol. X, São Paulo, 1956. p. 58 (resenha); Schaden, Egon. Revista de Antropologia, vol. 3 no 1, 1955, (resenha). Os desenhos e aquarelas originais da Expedição de Wied-Neuwied encontram-se na Bibliothek der Robert Bosch, em Stuttgart. In: Belluzzo, Ana Maria. O Brasil dos Viajantes. São Paulo: Fundação Odebrecht, Metalivros, 1994. p. 159, 2v. O catálogo do acervo de Wied-Neuwied pertencente à biblioteca da Robert Bosch consta da publicação Löschner, Renate. Brasilien Bibliothek der Robert Bosch GmbH: Maximilian Prinz zu Wied. (Katalog), Stuttgart, 1988, 3v.
[2] A questão da escravização de seus inimigos foi objeto de observação dos viajantes. Tanto Wied-Neuwied quanto Martius mencionam este tema em suas narrativas. Wied-Neuweid referindo-se aos Botocudo (Wied-Neuwied, 1989:311) e Martius aos miranhas (Martius, 1981:235-245, v.III) e a prática do “descimento”(venda de prisioneiros) entre eles.
[3] A prática de tecelagem era corrente entre alguns grupos indígenas (como entre os Coroado, Coropó e Camacã, e por vários grupos do Amazonas), especialmente no que se refere à tecelagem de redes, executada pelas mulheres. Durante a realização de minha pesquisa, não encontrei nenhuma referência a esse tipo de avental trançado (feito com fibras vegetais) entre os índios que foram objeto de observação dos viajantes alemães. Existe um tipo de avental de fibra vegetal, como o usado pela índia Uainumá (Fig. 43), só que confeccionado com fibras vegetais enroladas sob a forma de finas cordas e dispostas paralelas umas às outras, não sendo, portanto, tecido (esse artefato foi desenhado por Martius e um desses aventais faz parte de usa coleção etnográfica depositada no Museum für Völkerkunde München, In: HELBING, 1994:216-217). Em trabalho ainda inédito, Robert Slenes analisa uma esteira representada numa das gravuras do álbum de Rugendas denominada de “Habitação de Negros”. Slenes demonstra em seu trabalho que a tecelagem de esteira segue um padrão xadrez (segundo, aliás, a mesma padronagem do avental da índia) revelando as conexões entre aquele artefato e um tipo de arte praticada pelos negros Bakongo da África Central, mais do que a assimilação por parte dos negros africanos das técnicas de tecelagem de origem indígena. Sobre esta questão ver: SLENES, Robert. “Bávaros e Bakongo na ‘Habitação de Negros’: Johann Moritz Rugendas e a Invenção do Povo Brasileiro”. Campinas, 1995. p.111-116. (mimeo.)
[4] Na edição de 1981 da Viagem pelo Brasil, essa gravura é seguida de uma legenda que informa que se trata da escavação e preparo dos ovos de tartaruga na praia de Guajaratuva. No entanto, no próprio texto de Martius (que acompanha a edição fac-simile de seu atlas), refere-se a este local como sendo a praia das Onças, numa ilha do Rio Amazonas. Relata o que ocorre nesta localidade, finalizando que o conjunto apresentava um aspecto tão agradável, que resolveu desenhá-lo (1967).
[5] Biblioteca Brasiliana da Robert Bosch GmbH, São Paulo : Livraria Kosmos Editora, 1992. p. 276.
[6] KOMISSAROV, Boris que assinala “Richert não atentou para o grau de correspondência das gravuras com a verdade histórica, atribuindo o mesmo valor a todas as pranchas editadas por Engelman. Outro erro cometido pela pesquisadora ao analisar os “índios” das gravuras , foi o de não se basear em informações sobre a história da expedição, e sim atuar de outra maneira: com base nas ilustrações, tentou reconstruir o percurso da viagem. Como resultado, de acordo com Richert, Rugendas morou “meses” entre os índios nas margens do rio Doce, chegando ate mesmo a visitar o ...Mato Grosso(!)”.(1988. p. 31-32).
[7] Voyage de Humboldt et de Bonplant, Première Partie; Relation Historique: Atlas pittoresque: Vues de Cordillères et monuments des peuples indigènes de l’Amérique, Paris, 1810.
[8] Ver a esse respeito CATLIN, Stanton. “Nature, Science and the Picturesque” In: Art in Latin América: The Modern Era, 1820-1980, Ausseelungskatalog Dawn A. Des., New Haven and London : Yale University Press, 1989. p.63-99.
Fonte: Antropologia Visual
Disponivel em: http://www.antropologiavisual.cl/fayet_imprimir.htm
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