8.8.10

John Locke e a questão da Tolerância

VOLTAIRE SCHILLING
John Locke ( 1632-1704)  Foto: Getty Images

John Locke ( 1632-1704)
Foto: Getty Images

Desde a Reforma Protestante, desencadeada em 1517, a Cristandade se dividira em dois campos de ódio. Acusando uns aos outros de heréticos, católicos e as mais diversas seitas religiosas que desafiaram a autoridade de Roma, entraram em guerra permanente entre si ensangüentando a Europa ocidental. Como dar um basta naquele morticínio sem fim? Este foi o desafio que o filósofo John Locke enfrentou com sua proposta da tolerância.

O ódio teológico
Em seguida da insurgência teológica de Lutero, em 1517, foram os camponeses alemães quem se rebelaram na sangrenta Bauerkrieg, na Grande Guerra Camponesa de 1524-1526, depois os príncipes luteranos insurgiram-se contra o Império de Carlos V, e a Holanda calvinista pegou em armas contra o domínio católico (1568-1648).

A França, por sua vez, conheceu, a partir de 1562, oito guerras religiosas movidas pela Santa Liga contra a União Calvinista que tiveram seu ápice com a matança da Noite de São Bartolomeu (1572), sem omitir-se a instalação do Santo Oficio encarregado pelo Papado de dar combate às heresias nos reinos católicos. Até que a Europa inteira, dividia em dois campos hostis, convulsionou-se durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).

Entre 1642 e 1658 tocou à Inglaterra padecer com a Revolução Puritana e com a ditadura de Cromwell. Quando um príncipe se proclamava por uma das crenças, considerava inimigo do estado quem não o seguisse. Milhares de europeus pereceram devido ao ódio teológico que separou católicos dos protestantes, que inclusive alcançou as terras do Novo Mundo.

Em todas aquelas ocasiões, as partes em conflito consideravam-se as verdadeiras seguidoras de Deus, enquanto que seus inimigos certamente eram guiados pelo anticristo, senão que próprio Satanás.

Filosofia contra o fanatismo
A Reforma e Contra-Reforma por mais de um século dilaceraram a Europa Ocidental fazendo com que os propósitos generosos e pacíficos do cristianismo se transformassem em letra morta. Onde os protestantes se afirmavam, baniam os católicos e vice versa. Assim como por todos os lados implantou-se férrea censura e perseguição aos livre-pensadores.

Os pactos acertados tinham fôlego curto - como foi o caso do Édito de Tolerância de Catarina de Médici, a rainha da França, assinado em 1562. Não se dava abrigo a ninguém. Estavam seguros os fanáticos, ironizou Voltaire, ¿de alcançar a glória divina quando vos corta o pescoço¿ (in Dicionário Filosófico, fanatismo).

A desgraça da vida devota era de rapidamente deixava-se dominar pelo faccionismo cego, por monges e pastores extremistas que injetavam aversão e intolerância nos seus seguidores. O remédio estava na filosofia, visto que esta deixava a 'alma tranqüila', expulsando de si as crenças radicais e insanas, abrindo espaço para soluções razoáveis e realistas que permitiriam o bom convívio entre os homens.

Os humanistas
Naquele mesmo século em que a Reforma se expandira, diversos humanistas já haviam se manifestado contra o predomínio de uma só religião. O francês Sebastian Castellio, um teólogo erudito seguidor ainda que crítico de Calvino, no seu tratado publicado em latim
De haereticis , um sint persequendi, 'Sobre os hereges: se devem ou não ser perseguidos', em 1554, afirmou que o importante era levar uma 'vida genuinamente cristã', e 'de viver de um modo santo, justo e religioso', fazendo com que a disputas doutrinarias não tivessem a importância que se outorgavam. Do mesmo modo que aceitamos uma boa moeda não nos importando com a imagem nela cunhada, argumentou Castellio, por igual existe a 'boa moeda da religião' que circula em todos os lugares, 'sendo aceita por todos os homens racionais', servindo de lastro a todas as divergências de credo que possam se suceder.

Se a crença é verdadeira, nada deve impedir a sua prática. De qualquer maneira era preciso evitar a 'coação das consciências' e a atitude de 'lutar e matar-se uns aos outros', conclamando a que católicos e protestantes vivem lado a lado em harmonia - esta era a única forma de ¿evitar a ruína da república'.

A ele juntou-se Jean Bodin, o mais poderoso pensador político da França no século XVI, que também se posicionou a favor da liberdade religiosa. As questões de fé não se equivaliam às da ciência, consequentemente era um absurdo acreditar-se numa 'verdadeira religião'.

Não há certeza
No seu tratado intitulado Les Six Livres de la Republique, 'Os Seis livros da republica', de 1576, o famoso jurista esclarece que nenhum dogma religioso tem fundamentos que não possam ser colocados em dúvida, tanto que assim que a história da religião demonstrava que os profetas e lideres religiosos, em todas as épocas, mantinham-se em desacordo sobre quase tudo e que nenhum deles podia cabalmente defender a 'verdadeira religião'.

Por conseguinte, 'era mais seguro acatar todas as religiões de que escolher uma entre muitas' e que evidentemente a uniformidade da fé, além de ser imoral, não podia ser imposta a força ou por qualquer outro recurso violento.

Os que clamavam por 'uma fé, uma lei, um rei', eram os responsáveis pela guerra civil intermitente, visto que era uma loucura esperar haver paz num reino dividido entre súditos que praticavam religiões diferentes. Pelo bem da tranqüilidade coletiva, tinham sim é que acostumar-se em conviver com aqueles que obedeciam a outro catecismo. (*)

(*) as citações foram extraídas do livro As fundações do pensamento político moderno, de Quentin Skinner, 1996, págs. 517-523).

A carta de John Locke
Em seu exílio na Holanda, onde se refugio em 1683, o filósofo inglês John Locke fizera algumas importantes amizades. Foi com desses amigos, chamado Phillip van Limborch, que ele se correspondeu, discorrendo sobre a questão da tolerância. Sem que Locke autorizasse, Limborch publicou a missiva com o titulo de Letter concerning on Tolerance, ou Carta sobre a Tolerância, aparecida em Londres em 1689, ano da Gloriosa Revolução.

A solução do problema para Locke exigia a necessária separação dos assuntos do Estado daqueles da Igreja. Enquanto os interesses de um se misturavam com os do outro não haveria progresso em direção à tolerância. Deveria haver um apartamento radical entre a política (ao encargo do rei) e a religião (sob auspício do sacerdote). Deste modo ele alinhou-se à corrente dos estatocratas, cujo maior expoente na Idade Média fora Marsílio de Pádua.

Estado e Igreja
O Estado, para Locke, nasceu da necessidade do Homem obedecer a Lei Natural, com a função de assegurar a integridade da sua vida, do seu corpo, liberdade e bens. Tem como objetivo conservar e promover o patrimônio material. Para tanto, o Magistrado dispõe de força pública, agindo por coação ou sansões, apoiado na lei sustentada pela autoridade para garantir a paz e a integridade de cada um.

A Igreja, por sua vez, é de outra natureza, visto que resulta de uma associação livre e voluntária: uma societas spontanea, sem obrigações com a Lei Natural. Nasce da afirmação pública da fé, de servir e honrar a Deus, formada por meio de um livre acordo.

Dirige-se exclusivamente às almas visando sua salvação eterna. As suas verdadeiras armas são o direito de discutir, de argumentar e de exortar. A sansão dela é excluir os irredutíveis, os que não desejam seguir as suas predigas nem obedecer a sua liturgia ou catecismo. Assim sendo, Estado e Igreja são coisa distintas - voltadas uma para as coisas terrestres e a outra para as celestiais -, e que não deveriam ter laço algum em comum, sendo que a tolerância deveria ser a essência da Igreja visto que ela não tem poder de coação.

Repugnava a Locke a Igreja recorrer à coerção, pois a potência e eficácia da autentica religião era senão que a fé. A conversão se dá não pela espada mas pelo anúncio da paz e do amor que advém dos Evangelhos, pois a verdade somente se impõe por meios espirituais e nenhum outro mais.

Os assuntos da Igreja, seus dogmas, seu culto, as assembléias religiosas ou concílios, não dizem respeito ao Magistrado. Não é assunto da jurisdição dele, sendo que nenhum decreto humano pode afetar o seu caráter sagrado. Mesmo havendo esta total separação, o filósofo reconhece que eventualmente, ainda que de boa fé, decisões e medidas políticas terminam por afetar e interferir nos assuntos da religião.

Insiste, todavia, em afirmar que Estado e Igreja formam universos distintos e separados, sendo que era muito bom para a sociedade como um todo a diversidade de igrejas e não sua uniformidade como Thomas Hobbes, por exemplo, defendia.

Excluídos da Tolerância
Locke, entretanto, não contempla a todos em sua adesão à tolerância. Excluía dela os católicos ('papistas' como os ingleses os chamavam) com o argumento 'nacionalista' de que eles obedeciam a uma autoridade estrangeira, ao Papa Romano, e que, portanto, poderiam vir a desconsiderar o soberano invocando outra autoridade, fazendo assim periclitar as instituições do reino em que viviam.

Também exclui os ateus, porque ao negarem a existência de um poder divino, eram incapazes de firmar juramento ou assegurar um contrato, ficando assim á margem de toda a vida civil. (*)

Para Locke, tolerância não era sinônimo de licença, aplicando-se no exercício da liberdade desde que não fosse contra a existência da comunidade política e da paz civil. Foram basicamente suas ideias que conduziram o Parlamento de Londres a aprovar o Ato da Tolerância, de 1689, autorizando a liberdade de culto aos não-conformistas, mesmo que com uma série de reparos.

Ainda que ele fizesse objeções a estender a tolerância aos católicos e aos ateus a sua verdadeira contribuição às constituições políticas futuras foi a ênfase que ele deu na separação dos assuntos seculares dos religiosos, abrindo caminho para a 'maravilha política' do século XVIII, que foi instauração do Estado Secular e o direito à Liberdade Religiosa (primeiro nos Estados Unidos da América, pela constituição de 1787, e , em seguida na França pela Constituição de 1791).

(*) A mesma posição que Jean-Jacques Rousseau iria mais tarde defender nas 'A Profissão de fé de um Vigário Saboiano'(in Emilio, ou da Educação, 1762).

Bibliografia
Locke, John - Carta sobre a tolerância. Lisboa: Edições 70, 1987.
Michaud, Ives - Locke. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1991.
Polin. Raymond - Introdução à Carta sobre a Tolerância de John Locke. Lisboa: Edições 70, 1987.
Skinner, Quentin - As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
Trevelyan. G.M. - La revolución inglesa, 1688-1689. México: Fondo de Cultura Económica,1969.
Voltaire - Dictionaire Philosophique, Paris: Garnier-Flamarion, 1984.

Fonte: TERRA NETWORKS BRASIL S.A