13.12.10

Cultura e pensamento: a República das Letras

Pierre Bayle (1647-1706) . Foto: Voltaire Schilling/Reprodução

Pierre Bayle (1647-1706)
Foto: Voltaire Schilling/Reprodução

Parece ter sido Pierre Bayle, crítico literário, teólogo e dicionarista francês do século 17, quem por primeiro usou e difundiu a expressão República das Letras no sentido de, com ela, abarcar o mundo dos autores e dos livros. Desde então, a Republica das Letras, apoiada na crescente instrução das massas, não mais parou de crescer e influir nos assuntos do mundo.

Bayle e a sua revista
Tendes liberdade de fazer quando tendes o poder de fazer. Voltaire - Dicionário Filosófico, 1764.

Desde que Luís XIV fechara a Academia Protestante de Sedan, em 1682, Pierre Bayle, seguidor da fé dos huguenotes, preferiu o exílio. Refugiou-se em Roterdã, na República das Províncias Unidas, único lugar na Europa em que os pensadores não eram perseguidos. Amante dos livros e da literatura, Bayle que viria consagrar-se como um dos maiores críticos literários e dicionarista da França, dedicou-se a publicar um periódico que informasse o público culto da época como andavam as coisas no mundo das edições.

Intitulou sua publicação, aparecida a partir de 1684, como Nouvelles lettres de la république des lettres(Novidades da República das Letras). Circulando no meio ilustrado do seu tempo, em poucos anos asNouvelles se tornaram referencia obrigatória entre os bem pensantes. O modelo de apresentação adotado por Bayle fez escola: hoje, a parisiense République Internationale des Lettres, fundada por Noël Blandin, em 1994, obedece fielmente o cânone que ele estabeleceu há mais de três séculos atrás na apresentação dos autores e de suas obras.

A Holanda era a grande praça editorial da época, a mais independente e livre de todas. Enquanto no resto da Europa mal se cauterizavam as feridas das guerras religiosas travadas entre católicos e protestantes, os Países Baixos pareciam um oásis. Não que as disputas teológicas cessassem por lá, ao contrário, mas pelo menos não jogavam ninguém no calabouço ou punham-no na fogueira por questionar a Santíssima Trindade ou a maneira diferente de batizar alguém.

A República das Letras
No século seguinte, o XVIII, o Século das Luzes, essa denominação de Repúblicas das Letras difundiu-se pelo resto do continente, identificando e dando unidade ao trabalho dos homens de letras. A língua franca de todos eles passou a ser o francês: livros, jornais, revistas, mesmo a correspondência pessoal, era feita no idioma de Racine e de Corneille. Os maiores inimigos daquela república cosmopolita e sofisticada eram os censores a serviço dos monarcas e dos militantes das Trevas em geral.

A primeira grande batalha que venceram foi conseguir, depois de rumorosos embates em favor da tolerância, garantias de que seus livros não fossem queimados em público como objeto satânico como era comum acontecer nas cerimônias inquisitoriais.

As duas grandes revoluções liberais, a Americana, de 1776, e a Francesa, de 1789, garantiram a eles que poderiam livremente expor suas idéias. Mesmo assim, no andar dos anos, muitos deles foram processados ou proibidos, a maioria por imoralidade, tais como Victor Hugo, Flaubert, Zola e Joyce, quando não sentenciados às prisões ou ao desterro.

A República das Letras e as Máquinas Ideológicas
Todavia, nada se equiparou ao enquadramento que a República das Letras sofreu nas mãos das poderosas Máquinas Ideológicas do século 20: a do nazi-fascismo e a do comunismo. Orientados por Goebbels, na Alemanha, e por Zhdanov, na URSS, os escritores, seus integrantes, foram forçados a transformarem-se em propagandistas, mobilizados, conforme o caso, a santificar o Führer dos nazistas, o Duce dos fascistas, ou ainda o Vozd, o líder dos soviéticos (36 escritores russos, entre eles Gorki, apoiaram a política de reeducação pelo trabalho forçado dos "inimigos do povo"). A República das Letras, que antes conseguira safar-se dos mastins feudais, caiu cativa, em largas partes do mundo, das Repúblicas Totalitárias.

De certo modo, apesar dos propósitos altissonantes aprovados no passado, é recentíssima a liberdade alcançada por ela. Desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o subsequente fim da Guerra Fria, por toda a parte os censores recuaram ou ficam cada vez mais embaraçados em ter que se justificar com o seu ofício. Trata-se, pois, de uma oportunidade rara a que hoje assistimos - num mundo crescentemente democratizado -, onde o escritor e o seu público encontram-se sem nenhuma intermediação a não ser aquela dada pelo gosto e pelo prazer de ler de cada um. E claro, pelo bolso nosso de cada dia.

Fonte: VOLTAIRE SCHILLING