23.12.10

Diamante eterno - Leônidas da Silva


Biografia lembra Leônidas da Silva, o craque que encantou o mundo antes da televisão

RODRIGO ARCO E FLEXA

Talvez ele não tenha sido melhor do que Pelé. Mas pior do que o Rei do Futebol com certeza ele não foi. É o que garantem as pessoas que viram Leônidas da Silva em campo. Nos anos 30 e 40, Leônidas foi o maior nome do futebol brasileiro. Em 1938, conquistou o planeta com suas exibições na Copa do Mundo da França. Leônidas foi mais que um ídolo do futebol. Suas façanhas o transformaram em mito vivo, reverenciado como Diamante Negro, o Homem Borracha. A maior das suas proezas foi a invenção da bicicleta - jogada na qual arremessava o corpo para trás enquanto seus pés pedalavam no ar, até o chute contra o gol inimigo.
Mas Leônidas pagou um alto preço por ter jogado em outro tempo. Foi soberano num mundo onde não havia televisão. Quase meio século depois da sua despedida dos gramados, restam apenas fragmentos de sua arte.
Trata-se de recordações, recortes de jornais, fotografias ou mesmo trechos gravados de locuções radiofônicas, além de um punhado de registros em filmes. Sem falar no nome com que batizou um popular chocolate, fato desconhecido de grande parte das novas gerações.
Atualmente, nem mesmo Leônidas pode narrar suas próprias façanhas. Aos 85 anos, vive numa clínica geriátrica, tomado pelo mal de Alzheimer. Internado desde 1993, Leônidas demonstra não lembrar de nada mais, nem de ninguém. Somente reserva um leve sorriso para sua mulher, Albertina, que nunca falta a suas duas visitas semanais.
O jogador, que trouxe prestígio e popularidade a clubes como o Flamengo e o São Paulo, parecia estar condenado ao esquecimento. Mas Leônidas está de volta, resgatado pela biografia O diamante eterno (editora Gryphus), escrita por André Ribeiro, pesquisador e produtor executivo dos programas "Cartão Verde" e "Grandes Momentos do Esporte", da TV Cultura.
O trabalho é fruto de uma pesquisa realizada com recursos do próprio autor, que entrevistou, entre 1997 e 1998, dezenas de jogadores, dirigentes, jornalistas e testemunhas do futebol de Leônidas. Também foram consultados arquivos de jornais e filmes da época, em arquivos de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Dia após dia, ele viu seu personagem ganhar contornos lendários. "Descobri que antes de Pelé houve um outro Rei do Futebol. Leônidas foi o primeiro jogador a atingir essa grandeza, tornando-se tão conhecido como o próprio presidente Getúlio Vargas", diz o pesquisador.

Subúrbios cariocas
Leônidas da Silva nasceu de família pobre em 6 de setembro de 1913, no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Para seus pais, a maior aspiração possível seria ver o filho médico ou advogado. Mas desde muito pequeno Leônidas mostrava outra vocação, participando de intermináveis peladas de futebol pelos subúrbios cariocas. Aos 14 anos, começou a trabalhar na Light, empresa canadense responsável pela iluminação do Rio de Janeiro.
Com poucos dias no emprego, o garoto já fazia parte do time de funcionários da empresa. Seu talento para a bola, aliado a uma aplicação sem fim, logo tornou seu nome famoso nas disputas da região. No final da década de 1920, o futebol começava a deixar de ser privilégio das elites, conquistando inúmeros adeptos entre as classes populares. Dia após dia, o nome de Leônidas crescia, até que surgiram os primeiros convites para jogar em equipes amadoras.
"O ano de 1931 marcou definitivamente o nome de Leônidas no futebol brasileiro", recorda André Ribeiro. Contratado pelo modesto Bonsucesso, o jogador foi destaque do campeonato carioca, marcando gols contra as maiores equipes da cidade: Flamengo, Fluminense, Vasco da Gama e Botafogo. Logo, estava vestindo a camisa da seleção carioca de futebol, o que fez com que seu nome ultrapassasse as fronteiras do Rio de Janeiro.
Sua popularidade cresceu de forma cada vez mais acelerada. Mas a fama era acompanhada de inevitável polêmica. Negro e pobre, Leônidas também sofreu com inúmeras provocações racistas. Dono de forte personalidade, não fugia às ofensas, criando a imagem de atleta problemático que o acompanharia por toda a sua trajetória no Rio de Janeiro.
Mas seu talento era maior do que tudo. Em 1932, vestindo enfim a camisa da seleção brasileira, contribuiu decisivamente para a vitória contra a equipe do Uruguai (campeã do mundo em 1930) na casa do adversário. O feito acabou lhe rendendo uma rápida e tumultuada passagem pelo futebol uruguaio.
De volta ao Brasil, o jogador passou pelo Vasco da Gama, pelo Botafogo e pelo Flamengo.
Seus anos no time rubro-negro foram marcados tanto por glórias quanto por confusões. Ídolo maior da torcida, muitas vezes foi chamado de mercenário pelos dirigentes, que o acusavam de jogar apenas por dinheiro.
No começo dos anos 40, quando saiu do Flamengo, praticamente despedido, levou consigo uma enorme mágoa, além de uma batelada de documentos e cópias de exames médicos. Anos depois, moveria um processo contra o clube, provando que não tinha condições físicas para jogar quando havia sido acusado de mercenário.

Bicicleta em Paris
Mas foi em 1938 que Leônidas conquistou o mundo, tantas foram as suas façanhas na Copa do Mundo da França. Artilheiro da competição, Leônidas foi o principal jogador da melhor campanha que o Brasil até então havia realizado em Copas. A desclassificação da equipe, numa semifinal contra a Itália, aconteceu sem a sua presença, depois de literalmente ter arrebentado as pernas nos jogos anteriores.
Sua marca, no entanto, estava registrada. Ao executar pela primeira vez uma bicicleta em gramados europeus, Leônidas espantou o velho continente. É o que mostra o livro de André Ribeiro, num trecho que reproduz de uma reportagem da revista "Paris Match". Assinado pelo jornalista Raymond Thourmagen, o artigo mostra o deslumbramento que o futebol de Leônidas despertou: "Cabelos esticados, pele escura como um grão de café, pequeno de corpo, esse homem de borracha, na terra ou no ar, possui o dom diabólico de controlar a bola em qualquer posição. Quando Leônidas faz um gol, pensa-se estar sonhando, esfregam-se os olhos. Leônidas é magia negra!"
Não havia televisão em 1938. Dos filmes da época não sobrou praticamente nada. Mas as jogadas de Leônidas não foram esquecidas pelos brasileiros que acompanharam a Copa colados ao rádio.
Essa era a imagem que o Diamante Negro trouxe para a capital paulista quando foi contratado, em 1942, pelo São Paulo Futebol Clube. Sua chegada - depois de tão triste fim no Flamengo - mostrou que ele ainda era o ídolo maior dos brasileiros. Mais de 10 mil pessoas o recepcionaram na estação de trem do Brás, de onde Leônidas saiu nos braços da multidão.

Em São Paulo
O Diamante Negro vestiu a camisa do tricolor paulista entre 1942 e 1950. Foi cinco vezes campeão estadual, tendo conquistado o último título com 36 anos. Seu time era conhecido como "rolo compressor".
A presença de Leônidas nos estádios arrastava enormes públicos, o que tornou a década de 1940 conhecida como os anos de ouro do futebol de São Paulo. O sucesso em sua nova terra mostrou que, mesmo depois dos 30 anos, ainda era um mito brasileiro. "Quando saí do interior para morar em São Paulo, Leônidas era como que um ser inatingível. Sonhava com o dia em que poderia vê-lo jogar", lembra o escritor e roteirista Benedito Rui Barbosa.
Seu sonho foi realizado numa partida entre os times do São Paulo e do Corinthians. "Fiquei encantado. Ele fazia lances espetaculares", diz o escritor. "Leônidas foi o maior jogador que tivemos, ao lado de Pelé", compara.
Outro garoto irremediavelmente conquistado pelo Diamante Negro foi Décio de Almeida Prado (que se tornaria décadas depois um dos mais importantes críticos de teatro do Brasil). Para Décio, não houve artilheiro como ele. "O grande centroavante foi e será sempre Leônidas. Ele era a própria encarnação da habilidade", afirma o professor, que registrou suas memórias sobre Leônidas em um dos artigos do livro Seres, coisas, lugares: do teatro ao futebol (Companhia das Letras).
A despedida de Leônidas do São Paulo aconteceu em 1950, numa partida contra o Botafogo do Rio. Mesmo tendo protagonizado brigas com os companheiros de time - quase sempre motivadas por sua gana de sempre vencer -, Leônidas firmou uma imagem em terras paulistas bem diferente daquela que o perseguiu no Rio de Janeiro.
"O Leônidas amadurecido que conheci em São Paulo, domingo após domingo, durante tantos anos, punha todo o seu virtuosismo a serviço do time", lembra Décio de Almeida Prado.

A lenda permanece
Mas, com a ausência da televisão, a memória das façanhas de Leônidas hoje se restringe quase exclusivamente ao testemunho daqueles que o viram jogar.
"O que sobra é a lenda, transmitida boca a boca", diz Benedito Rui Barbosa. Mesmo assim, essa não é uma tarefa fácil. "Muitas vezes, meus filhos e netos não acreditam no que falo sobre Leônidas. Mas não há como provar sem imagens", reconhece Benedito Rui Barbosa.
"Todos podem conhecer o futebol de Pelé e Garrincha, porque suas jogadas foram gravadas. Mas com Leônidas isso não é possível", concorda Décio de Almeida Prado.
O professor de teatro, no entanto, aponta a diferença da qualidade das lembranças que a figura do Diamante Negro evoca. "São recordações que se fixaram com grande força. Algo muito diferente dos dias de hoje, quando as imagens dos novos jogadores se esvaem com muita rapidez", compara.

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