10.12.10

O motim no Bounty

Em 1789, o duelo entre um nobre oficial e um comandante plebeu nos mares do Taiti forjou o enredo de uma das tramas mais famosas da Marinha britânica

por Henri W. Arthur

A tranquilidade era quase assustadora. Numa das cabines do Bounty, o navegador John Fryer anotou no diário: "Tudo muito quieto a bordo". Com proa grossa, popa quadrada, três mastros e 220 toneladas, a embarcação era, na definição naval da época, um cúter, um navio de apoio. Com 95 pés (ou 29,40 m), era visto com afeto pelo tenente que o comandava, William Bligh. O "meu pequeno navio", como se referia a ele, estava naquele ano de 1789 entretido na missão de colher mudas de fruta-pão no Taiti, que serviriam de alimento a escravos nas colônias britânicas do Caribe. Uma viagem sem grandes expectativas para a Marinha real, um oficial sem muito destaque, um navio sem pompa. Passaria batido se, pouco antes do amanhecer de 28 de abril, no meio do Pacífico, um grito do comandante não irrompesse no ar dramaticamente: "Assassinato!"

Vestindo apenas uma camisola curta (e sem nada por baixo), William Bligh foi arrancado de sua cabine por quatro homens armados, Fletcher Christian à frente. Ele era o segundo-em-comando, membro de uma família tradicional e até então encarado com bons olhos por seu superior. Transtornado, conduziu Bligh ao convés empunhando uma baioneta. Mandou descer uma lancha de 7 m, na qual o comandante e mais 18 homens foram embarcados, com mantimentos suficientes para cinco dias. Assim, Christian, agora à frente do Bounty, poderia voltar ao encantador Taiti, à vida idílica de mulheres, tatuagens e música. O capitão foi deixado à própria sorte em um barco precário. "Eles estavam perto de Tofua (pequena ilha no reino de Tonga) e tinham todo o necessário para sobreviver", diz John Christian, descendente direto de Fletcher. Os desdobramentos daquele dia fizeram do motim no Bounty o mais famoso levante da história da mais importante Marinha de todos os tempos.

Em 23 de dezembro de 1787, com o apoio do poderoso Joseph Banks, 43 vezes presidente da Royal Society, o HMS (ou "navio de sua majestade") Bounty zarpou de Spithead, Reino Unido. William Bligh, tenente que navegara com o já imortalizado capitão James Cook, dirigia a viagem. Com ele, iam 45 homens, voluntários provavelmente encantados com a possibilidade de conhecer o enigmático Otaheite, como era chamado o Taiti.

Durante as primeiras semanas, o clima da tripulação era de paz e felicidade. A embarcação cruzou o Índico e passou pela remota Terra de Van Diemen (hoje a ilha australiana da Tasmânia), aonde somente quatro outros navios estrangeiros haviam chegado. Lá, Bligh teve seu primeiro problema. O carpinteiro William Purcell respondeu rispidamente a uma reprimenda por fazer tiras de madeiras pesadas demais. A insolência bastaria para que ele fosse preso e enviado à corte marcial, mas Bligh, naquela terra inóspita e com uma tripulação diminuta, julgou não poder abrir mão de seu único carpinteiro. "Foram plantadas as sementes da eterna discórdia (...) com todos os oficiais", anotou James Morrison, o ajudante do contramestre em seu diário. O trajeto final, no Pacífico, foi tenso, com direito a um marinheiro morto por infecção, três doentes com escorbuto e o médico, entregue ao alcoolismo. A fim de manter o ânimo de seus homens, o capitão instituiu a dança noturna. Quem não participasse ficava sem rum (a punição fazia parte da, digamos, estratégia de gestão de pessoas de Cook, a grande inspiração de Bligh).

O clima pesado se esvaiu quando surgiram os picos vulcânicos no horizonte. Canoas cercaram o Bounty, cheias de ilhéus encantados com os visitantes. Eles subiram a bordo e os afetuosos abraços trocados selaram o fim da jornada de dez meses. "O restante da tripulação agora sabia que as histórias que tinham enchido os seus ouvidos durante a longa e dura viagem pelo mar - sobre a beleza da ilha, as suas mulheres sexualmente desinibidas, o seu povo acolhedor - não eram exageradas nem fantasia de marinheiro", diz Caroline Alexander no livro O Motim no Bounty.


Taitianas

Por cinco meses, os britânicos permaneceram no Taiti. Colheram mais de mil mudas de fruta-pão e se enturmaram com sucesso. Os marujos deslumbraram-se com as tatuagens locais, em voga na época. Muitos se relacionaram com as nativas, até casaram. Christian, além de se tatuar, conquistou a jovem Maimiti. Mas a hora de partir chegou. Despedidas calorosas, mulheres apaixonadas aos prantos, não importa. O dever sempre fala mais alto no ouvido dos leais marinheiros de sua majestade. Ou não.

Vinte e quatro dias após zarpar, Bligh viu-se abandonado e traído, numa lancha apinhada. O único pedaço de terra próximo era Tofua, onde eles decidiram parar em busca de mantimentos. Os ilhéus, antes amistosos, atacaram o grupo, matando um homem a pedradas. O capitão decidiu, então, seguir direto às confiáveis Índias Orientais Holandesas, a 6,5 mil quilômetros. Navegava com um quadrante, uma bússola e um sextante quebrado em um barco com a ínfima distância de uma mão entre a borda e a água. Tinha de racionar a comida a porções diárias de 30 g de pão e 1/8 litro de água e contar com muita sorte, pois ainda teriam que atravessar a Grande Barreira de Corais, na costa da Austrália, eterno desafio aos navegantes (em abril último, por exemplo, um petroleiro chinês encalhou ali). Bligh anotou em seu diário: "Nem uma estrela à vista para nos guiar (...) tão cobertos de chuva e mar que mal podemos ver (...) todos se queixando, e alguns pedindo uma cota extra de ração, mas recusei (...) não conseguia olhar em nenhuma direção sem ver alguém sofrendo. A fome é evidente". Quarenta e oito dias depois, exauridos, eles chegaram em Kupang, Timor. Seguindo o racionamento do líder, restavam ainda 11 dias de comida e bebida. Antes de desembarcar, ordenou que uma bandeira britânica improvisada com pedaços de pano fosse hasteada. Os sobreviventes eram todos pele e ossos cobertos por farrapos, com os membros cheios de feridas. Dois meses depois, quando desembarcou (de carona) na Inglaterra, o tenente viu que sua inigualável viagem era o assunto do momento. Dos 19 que seguiram com ele, 12 sobreviveram.

E os amotinados? Em novembro, o capitão Edward Edwards foi à caça no Taiti na fragata Pandora.

Assim que Edwards chegou à ilha, quatro desertores remanescentes do Bounty se entregaram. Outros dez foram presos nas semanas seguintes. Por dois meses, a fragata procurou em vão o navio e os amotinados que haviam seguido viagem depois de deixar parte dos revoltosos no Taiti. Os tripulantes do Pandora descobriram ilhas, compraram aves, conquistaram mulheres - mas nada de Fletcher Christian. Edwards decidiu voltar à Inglaterra, tendo que ouvir as taitianas martelando-se com conchas, de luto por verem seus maridos presos. Mas eis que, em agosto, a fragata bateu violentamente num recife na Grande Barreira de Corais. Morreram 31 tripulantes e quatro prisioneiros. Como Bligh, os náufragos tiveram de lutar para sobreviver a bordo de pequenos barcos de apoio rumo a Kupang. Beberam a própria urina e sangue de aves para resistir. Do Timor, voltaram à Inglaterra(também de carona), onde os prisioneiros seriam julgados. Em 1792, três deles foram condenados à forca a bordo de um navio ancorado na base da Marinha em Portsmouth.


Refúgio

Depois de desembarcar parte dos amotinados no Taiti, Fletcher Christian e seus seguidores decidiram procurar um refúgio mais seguro. Levaram consigo alguns aliados nativos e as mulheres de todos (sem que elas soubessem do plano). O grupo chegou sem querer à pequena ilha de Pitcairn, de 47 km2. Ela estava apontada erroneamente nas cartas náuticas e, por isso, ali estariam seguros. De fato. Permaneceriam incógnitos por quase duas décadas.

Queimaram o Bounty, construíram casas e recomeçaram a vida. Nos primeiros anos, houve vários conflitos entre os ingleses e os taitianos que os acompanharam, instigados pelas mulheres, cansadas do tratamento promíscuo que recebiam. Em 1794, Christian e outros companheiros morreram nas lutas, deixando órfãos os primeiros filhos de uma linhagem anglo-polinésia que resiste até hoje. Há muitas versões para a morte dele e o corpo nunca foi encontrado. Em 1800, o único inglês sobrevivente, Alexander Smith, assumiu o controle de Pitcairn. O isolamento seria interrompido em 1808, quando um navio americano caçador de focas aportou na praia, para depois tornar público o desfecho da incrível história.

Naquele mesmo ano, aposentado como vice-almirante, Bligh teve mais uma vez sua capacidade de liderar contestada. Ocupando o cargo de governador de Nova Gales do Sul, na Austrália, ele foi deposto no episódio conhecido como Rebelião do Rum. Recolhido, no fim da vida acompanhou a dramatização maniqueísta do motim. Em quase todas as narrativas, ele era descrito como um capitão sanguinário, que queria impedir o heroico Fletcher Christian de viver seu sonho no Taiti. Lorde Byron e Mark Twain escreveram sobre eles. E ainda viriam os filmes, com Clark Gable (1935), Marlon Brando (1962) e Mel Gibson (1984) na pele do líder do levante.

"Bligh não era o monstro requerido por histórias estereotipadas do bem contra o mal", diz Duncan Redford, do Centro de Estudos da História do Mar da Universidade de Exeter. Muitos dos marinheiros se referiam à repressão no navio como um dos motivos do motim (o capitão dizia que as taitianas foram a razão). "A violência era um instrumento de disciplina necessário em uma embarcação britânica do século 18", afirma Greg Dening em Mr. Bligh’s Bad Language: Passion, Power and Theatre on the Bounty (Os Palavrões do Sr. Bligh: Paixão, Poder e Teatro no Bounty, inédito no Brasil). "O tipo de pessoa que eram os marinheiros e a vida que tinham exigiam um sistema de punição eficiente." Em 17 meses de viagem, Bligh puniu a tripulação com 229 chibatadas, pouco para os padrões da época. Caroline Alexander sugere que sua "inabalável, complacente e imodesta confiança na própria capacidade, o perfeccionismo implacável e a adesão inflexível ao dever constituíam um peso que esmagava os jovens que o seguiam".

"A verdadeira história ainda não foi contada", diz John Christian. "Não tenho orgulho do motim, que foi um crime, mas do meu povo e minha cultura, que vêm dele". Bligh morreu em 1817 e foi enterrado em Lambeth, Londres, ao lado da mulher. O túmulo permaneceu incógnito até os anos 1980. O local tinha virado um depósito de lixo.

Pitcairn e Norfolk, legados rebeldes

As ilhas que abrigaram os fugitivos e guardam seus descendentes

Os filhos da união entre ingleses e taitianas viveram em Pitcairn até 1856, quando a superpopulação forçou a migração de todos os 194 habitantes. Tentaram ir para o Taiti, mas desistiram - eles seriam "ingleses demais". Procuraram então uma ilha desabitada, mas maior. É o caso de Norfolk, uma colônia penal desativada que tinha ainda animais domesticados e estradas. A rainha Vitória, que simpatizava com os descendentes, autorizou um navio inglês a transportá-los. Hoje, apesar de pertencer à Austrália, God Save the Queen é o hino de Norfolk. Dos quase 2 mil habitantes, metade descende dos amotinados, como John Christian, que pertence à sétima geração da família de Fletcher. Ele e seus pares falam norfuk, uma mistura de inglês do século 18 com taitiano, demonstrado no começo da conversa com um "watawieh" ("como vai?"). Ele se diz o último entalhador de ossos da região. "Vivemos num paraíso, comemos banana frita, dançamos hula ao som do ukelele. A vida é boa. Todos têm casa e emprego." Mas há quem não pense assim. Muitos creem que a ilha é incapaz de se sustentar sozinha, inclusive a Austrália, que em 2008 fez um alerta: Norfolk pode falir. Em Pitcairn, para onde alguns descendentes voltaram em 1864, vivem 48 pessoas. "O maior desafio aqui é não ter um shopping para gastar seu suado dinheiro e perder os jogos de rúgbi ao vivo", afirma o vereador Turi Griffiths. Nas duas ilhas, a memória do motim segue viva, com festas e feriados.


Fonte: Aventuras na História