13.3.12

Índios Terena

História


Últimos remanescentes da nação Guaná no Brasil, os Terena falam uma língua Aruak e possuem características culturais essencialmente chaquenhas (de povos provenientes da região do Chaco). O domínio dos grupos de língua Aruak entre os diversos povos indígenas do Chaco, todos caçadores e coletores, deveu-se ao fato daqueles grupos serem, de longa data, predominantemente agricultores – e sobre esta base econômica se organizarem socialmente em grupos locais (aldeias) mais populosos, expansionistas e guerreiros.

Os estudiosos dos povos chaquenhos afirmam que os Chané ou Guaná dispunham de uma base social muito mais sofisticada do que seus vizinhos Mbayá. Estavam estratificados em camadas hierárquicas: os "nobres" ou "capitães" (os Naati ou "os que mandam") e a "plebe" ou "soldados" (Wahêrê-xané, ou "os que obedecem"). As relações de aliança Guaná-Mbayá estavam alicerçadas no casamento: os chefes Guaná cediam mulheres da sua casta para casar-se com os "maiorais" Mbayá. As relações entre os dois grupos, por essa via, consolidariam ao longo do tempo uma estrutura social complexa: de um lado, um segmento social autônomo na posição de fornecedor de mulheres e alimentos; de outro, uma casta guerreira tomadora de mulheres e responsável pela segurança dos grupos locais e supridores de instrumentos de ferro e cavalos.

Na década de 1760, a pressão crescente dos espanhóis sobre os territórios Mbayá localizados nas margens ocidentais do Paraguai, somada a disputas internas por prestígio guerreiro, forçariam a migração de inúmeros subgrupos Mbayá e Guaná para o lado oriental do rio. Essa migração provavelmente se estendeu até as primeiras décadas do século XIX. Os subgrupos Guaná – Terena, Echoaladi, Layana e Kinikinau – que se estabeleceram ao leste do Chaco, mantiveram contudo no novo território a forma tradicional de organização em metades e estratos sociais endógamos, suas roças e também a aliança com os Mbayá-Guaykuru.

Os Terena atuais ainda guardam a memória desta migração e da travessia do rio Paraguai:



Eu tenho a história comigo, história do meu pai. Aqui na Cachoeirinha não havia ninguém... Meu pai é daqui mesmo. O bisavô dele veio do Eêxiwa [região compreendida entre a margem direita do rio Paraguai e a chamada “morraria” de Albuquerque – hoje Corumbá – na margem esquerda do mesmo rio], meu pai contava. Eles tinham sido atacados por outros índios diferentes lá do Eêxiwa. Aí eles vieram de lá, atravessaram o rio Paraguai até Porto Esperança, atraz da morraria... Ficaram um pouco perto de Corumbá e depois fizeram aldeia aqui, em Miranda... Naquele tempo não tinha purutuyé [brancos, portugueses], só mesmo índio Terena, Laiana, Kiniquinao, Echoaladi, Caduveo... (Felix, ancião morador da aldeia Cachoeirinha).



Outro ainda descreve o modo como foi feita a travessia do rio Paraguai:



Minha avó, meu avô vieram do Eêxiwa. Eles usaram uma taquara bem grande para atravessar o rio... Eles trançaram cipó (hymomó) para fazer canoa para atravessar o huveonókaxionó ("rio dos paraguaios")... (João Martins, ancião morador da aldeia Cachoeirinha).



A resistência dos Mbayá-Guaykuru diante do avanço dos paulistas que se dirigiam à região de Cuiabá manteve os Guaná distantes de relações com europeus. Essa situação se manteve até a última década do século XVIII, quando, em 1791, é assinado o tratado de paz entre Portugal e os Mbayá-Guaicuru.




Esse tratado permitiu a fixação portuguesa, ainda que incipiente, na margem direita do Paraguai, ao mesmo tempo em que propiciaria o desgaste da aliança Guaná-Mbayá. Um dos sustentáculos dessa aliança, como vimos, era o fornecimento de instrumentos de ferro aos Guaná pelos Mbayá – e que os primeiros começariam a obter independentemente, através do comércio com os portugueses.
Novos parceiros: os purutuyé

Afastada a ameaça dos constantes ataques dos “índios cavaleiros”, pequenos núcleos populacionais portugueses/paulistas começariam a se estabelecer em torno das fortificações avançadas que vinham sendo construídas na região nas duas décadas que antecederam a assinatura do tratado, em função da disputa de limites com a Espanha: Forte Coimbra (1775), Forte de Príncipe da Beira (1776) e Presídio de Miranda (1778).

Estas relações de amizade entre os purutuyé (portugueses) e Guanás seriam reforçadas pelos agentes da Coroa: em 1797, um dos principais chefes Guaná recebeu uma carta patente do Governador Geral das Capitanias do Mato Grosso, em troca da sua fidelidade e vassalagem à Coroa portuguesa. O documento recomenda aos agentes oficiais portugueses que (ao “capitão” e “a todos os seus”) “...tratem e auxiliem com todas as demonstrações de amigos e de vassalos da Coroa Portuguesa, deixando-os gozar de todas as liberdades, privilégios e isenções de que gozam os demais vassalos da mesma Coroa...” (documento original depositado no Arquivo Público do Estado do Mato Grosso, in Carvalho & Carvalho, 1998).


As relações com os portugueses e brasileiros, após 1791, tiveram variações entre os diversos subgrupos Guaná. Hercules Florence descreveu, na década de 1820, um grupo ao qual denominou “guanás” – provavelmente os Echoaladi, cuja aldeia era “um pouco acima de Miranda” – da seguinte maneira:

“De quantas tribo tem o [rio] Paraguai, é esta que mais em contato está com os brasileiros. Lavradores, cultivam o milho, o aipim e mandioca, a cana-de-açúcar, o algodão, o tabaco e outras plantas do país. Fabricantes, possuem alguns engenhos de moer cana e fazem grandes peças de pano de algodão com que se vestem, além de redes e cintas. Industriais, vão, em canoas suas ou nas dos brasileiros, até Cuiabá para venderem suas peças de roupa, cintas, suspensórios, cilhas de selim e tabaco”.
A guerra do Paraguai e a perda dos territórios

A eclosão do conflito entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, no final de 1864, viria a mudar de forma dramática a vida de toda a nação Guaná, inaugurando um novo tempo. Um dos palcos do conflito foi justamente em território destes povos que, aliado dos brasileiros, sofreram ataques e represálias por parte das tropas invasoras. É certo que todas as aldeias então existentes na região dos rios Miranda e Aquidauana se dispersaram, com seus habitantes buscando refúgio em matos inacessíveis na região (como o lugar chamadoPulôwô'uti, para aonde foram os moradores de Cachoeirinha) ou nas serras de Maracajú (onde Taunay esteve em 1866, perto do córrego Piranhinha e utilizada como refúgio pelos Kiniquinau).

No relatório sobre o "estado da catequese" em 1866, o Diretor de Índios informava que "...nada posso informar a V.Exª sobre o estado das aldeias... em consequência de achar-se aquela parte da província ocupada pelos paraguaios desde janeiro do ano passado...". Em 1870, o mesmo Diretor noticiava ao Presidente da Província que o diretor das aldeias de Miranda, Frei Mariano, havia sido capturado e feito prisioneiro pelas forças invasoras. A aldeia do Ipegue foi destruída pelas tropas invasoras em 1866.

Apesar da intensa participação dos Guaná em favor das forças imperiais e na defesa de suas terras – cujos episódios desta participação foram descritos por Alfredo Taunay (nas obras "Entre os Nossos Índios" e "A Retirada da Laguna") – o governo do Império não reconheceria estes esforços, não consignando um palmo sequer de terras para os Guaná – como o faria, em 1880, para os Kadiweu na concessão de cerca de 500 mil hectares de terras na região do Nabileque/Bodoquena.
Os impactos do pós-guerra: "tempos de servidão"

Findo o conflito com o Paraguai, o antigo território das aldeias já era disputado por novos "proprietários", em geral oficiais desmobilizados do exército brasileiro e comerciantes que lucraram com a guerra e permaneceram na região. Nas memórias de Taunay (1931:35), fica evidente o modo como ocorreu este processo de "fixação dos desmobilizados" e o processo de expropriação das suas terras e sua agregação como peões nas fazendas que começariam a se implantar da região:

"Nos diversos acampamentos da serra [de Maracaju] construíram-se ranchos vastos e cômodos e, pouco a pouco, regularizou-se o modo de viver daquelas colônias híbridas de brasileiros civilizados [sic] e índios, sobretudo kiniquinaus, a que se haviam agregado guanás, terênas e laianos".

De fato, o conflito com o Paraguai acarretou uma mudança radical no modus vivendi dos Guaná com a população brasileira local. Se antes a relação era de mútua dependência, alicerçada na troca recíproca entre os índios e as tropas regulares que formavam a população dominante nos “presídios” de Miranda e Albuquerque, depois da guerra as populações indígenas passaram a se relacionar com um grupo humano heterogêneo e oportunista – e que passaria a receber apoio oficial para a “colonização” da região conflagrada. Nesses novos tempos, a antiga relação de respeito e solidariedade seria alterada.

Os recém-chegados, desmobilizados de uma tropa que participou de uma guerra violenta e quase sem comando (Taunay, 1935) eram em geral pessoas aventureiras e ambiciosas, prontas a lutar para iniciar a ocupação de uma região devastada do ponto de vista político e social – como indica o documento oficial acima citado. Esses novos colonizadores – a maioria chegada de regiões do Brasil onde a relação com os índios era fundada na prepotência e no desprezo ao “bugre” – desconheciam completamente qual havia sido o papel dos Guaná na conquista e manutenção da região em mãos brasileiras. E os índios se surpreenderam com o caráter eminentemente predador destes novos porutuya, recorrendo como podiam às autoridades de Cuiabá – que antes os tratavam com o respeito devido a aliados – para defenderem suas terras.

A respeito dessa situação, assim se pronunciava o Diretor Geral dos Índios, em novembro de 1871: "Acerca do índio da Tribo Terena, de nome José Caetano, de quem trata o ofício de V.Exª de 7 do corrente, cujo recebimento tenho a honra de acusar, o que sei e posso afirmar é que o dito índio com mais alguns da sua tribo, em número de 17 [e] Pedro Tavares, capitão da aldeia do Ipegue, no distrito de Miranda [contaram] que na ocasião da invasão paraguaia não só sua tribo como todas as outras, e mais habitantes do distrito, abandonaram os seus lares e retiraram-se para os montes e bosques, onde permaneceram por seis anos; que ultimamente voltando seus moradores a reocuparem seus domicílios, esses Terenas encontraram sua aldeia do Ipegue ocupada por Simplicio Tavares, por sua autonomásia Piché, o qual lhes obsta a repovoarem e lavrarem suas antigas terras e de seus antepassados; pelo que vinham pedir providências para não serem esbulhados de suas propriedades das quais não podiam desprender-se. Um outro índio da mesma tribo, de nome Victorino, que farda-se como alferes, e pertence à aldeia do Nachedache, distante da Ipegue uma légua, fez-me igual reclamação".

Logo em seguida, no mesmo documento, esse funcionário considerava – tendo em vista a ausência de um missionário para dirigir as aldeias de Miranda e que ali havia se estabelecido um "corpo de tropas" – ser "...conveniente que V.Exª recomende ao comandante militar e às autoridades do local toda proteção aos índios e que os mantenham em suas terras, visto que serão precisos ainda anos para que Miranda volte ao seu antigo estado e tenha autoridades próprias de uma Vila".

Em 1871 era nomeado o tenente coronel José Vicente Vieira Couto como diretor das aldeias e nesta qualidade, segundo relatório do Diretor Geral datado de 02 de Maio de 1872, "...conseguiu concentrar grande número de índios em seus antigos aldeamentos...". Porém, a situação de pressão sobre as terras das aldeias já era grande.

Este tempo do pós-guerra é conhecido pelos Terena como o tempo da servidão. Dispersos em razão do conflito, os vários sub-grupos Guaná começariam a recompor suas antigas aldeias, agora pedindo "licença" aos novos ocupantes. É a época em que se intensifica a abertura dos estabelecimentos pecuários e do "fechamento" dos pastos, com apoio das autoridades do Império, que pretendia consolidar a ocupação brasileira na área recém conflagrada. E todos estes empreendimentos só foram possíveis graças à "liberação" das terras e o uso intensivo da mão-de-obra indígenas, agora disponíveis. Os relatos dos velhos Terena sobre este período são eloqüentes:

"O pessoal daquela época tinha medo porque ainda se lembrava do patrão que os chicoteava na fazenda. Quem se atrasava para tomar chá de manhã era surrado...foi o finado meu avô quem me contou. Como castigo o pessoal tinha que arrancar mato com a mão. Quando a comida estava pronta, eles mediam toda a sua tarefa. Eram quinze braças de tarefa e, mesmo não terminando a tarefa do dia, de manhã mediam outra tarefa, que acumulava" (João Martins Menootó, ancião de Cachoeirinha).

O advento da República – e as concessões político-administrativas descentralizadoras feitas aos Estados federados e, conseqüentemente, aos chefes políticos regionais – só fez agravar a situação dos Terena. Neste sentido, os depoimentos de Rondon são esclarecedores:

"São comumente explorados pelos fazendeiros. É difícil encontrar um camarada Terena que não deva ao seu patrão os cabelos da cabeça...Nenhum 'camarada de conta' poderá deixar o seu patrão sem que o novo senhor se responsabilize. E, se tem ousadia de fugir, corre quase sempre o perigo de sofrer vexames, pancadas e não raras vezes a morte, em tudo figurando a polícia como co-participante de tais atentados" (1949: 83-84).
Os Terena e o SPI

Nas décadas de 1910 e 1920, dois fatos significativos marcariam a história Terena: a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB), esta última responsável direto pelo aumento da população não-indígena da região sulmatogrossense em cinco vezes ao longo de duas décadas.

O SPI instalaria seus postos na década de 1920, com o objetivo de levar aos Terena os objetivos da "proteção fraternal" preconizada por Rondon – o quê, ao menos nos primeiros anos, foi de fato tentado. Mas logo essa "proteção", que deveria ser de direitos, foi sendo gradualmente transformada em imposição ideológica, culminando na perda do que ainda restava da autonomia política dos Terena.

O "encarregado do posto", em pouco tempo, passaria a interferir em praticamente todos os aspectos da vida social Terena: da mediação de conflitos internos entre famílias à lavratura – e guarda dos registros – das ocorrências civis (nascimento, casamento e óbitos) até a gestão dos contratos de trabalho e estabelecimento de uma "guarda indígena" para a manutençao da "ordem": em cada detalhe e momento, ficava marcado que os Terena, ali, viviam por concessão. Como veremos adiante, no caso de Buriti, um chefe do posto – na década de 1920 – foi o responsável direto pela "autorização" para que um fazendeiro vizinho se apropriasse de uma gleba de terras dos índios, contribuindo ainda para a expulsão da aldeia ali estabelecida.

Agente subalterno local de um sistema verdadeiramente colonial de poder, este funcionário passaria a decidir o futuro do povo Terena. E esse futuro, agora "orientado legitimamente" por um purutuyé, se direcionaria a marcar todas as reservas Terena como reservas de mão-de-obra para as empresas agropecuárias da região – e ele, o gerente deste estoque. Na história oral dos Terena, são poucos os funcionários do SPI (ou da Funai, posteriormente) lembrados por tentar realizar uma gestão que privilegiasse o trabalho interno.

Lugar de uma estrutura de poder colonial, o "posto" se impunha para imobilizar a força de trabalho interna com vistas a torná-la disponível externamente. De fato, já nos anos 1950 os dados colhidos por Cardoso de Oliveira em Cachoeirinha impressionavam: dos 127 grupos domésticos que constituíam a aldeia em 1957, apenas 19 (17%) viviam exclusivamente da agricultura interna e do artesanato, enquanto 46% viviam exclusivamente do trabalho externo e outros 37% combinavam o trabalho em suas roças com o trabalho esporádico externo. A população na época era de cerca 900 pessoas (Cardoso de Oliveira, 1968).

Esses números não se alteraram nos anos seguintes; com a implantação de usinas de açúcar e álcool na região, no final dos anos 70, os números, em termos absolutos, com certeza aumentaram – assim como a população indígena residente nas "reservas" Terena, que ultrapassaria os dez mil em meados da década de 1980.

O fenômeno da urbanização de indivíduos Terena nos centros regionais (sobretudo Campo Grande e, em menor medida, Aquidauana e Dourados), crescente a partir do final dos anos 50, estaria diretamente ligado à superpopulação das "reservas" e pouca perspectiva de futuro que apresentavam (Cardoso de Oliveira, 1968). Em 1960, este autor registrou 418 indivíduos Terena morando em Campo Grande; hoje certamente esse número passa dos 2 mil indivíduos – grande parte mantendo ainda vínculos com as suas aldeias de origem.

A maioria desses migrantes saiu da "reserva" de Taunay/Ipegue e sobrevive como prestadores de serviços (empregados domésticos, fornecedores de mão-de-obra para serviços gerais, donos de pequeno comércio, funcionários públicos ou da antiga NOB etc.). As razões alegadas pela primeira geração de migrantes urbanos para deixarem as reservas foram os conflitos internos (por diferenças sobretudo religiosas, quando da chegada dos missionários protestantes às duas reservas citadas). Comparativamente às outras reservas, são poucos os Terena urbanizados egressos de Cachoeirinha (os quais ainda mantêm laços permanentes com suas famílias de origem na reserva).

Podemos inferir das análises de Cardoso de Oliveira (1968 e 1976) que as condições adversas que foram impostas aos Terena pela sociedade regional dominante, nas quatro décadas imediatas ao fim da guerra do Paraguai, foram sendo, naquele período de tempo, positivadas sociologicamente pelos Terena. Assim, a situação de confinamento na Reserva, ao mesmo tempo em que acarretou a perda da autonomia política das aldeias – dado que submeteu os índios à dependência política do chefe branco do posto do SPI/Funai – foi transformada pelos Terena na base territorial necessária para a atualização e manutenção do ethos tribal; a sua integração à estrutura econômica compensou de certa forma a perda da auto-suficiência econômica; e, finalmente, a urbanização crescente de parte de sua população foi a resposta encontrada pelos Terena às limitações políticas, sociais e econômicas, reinantes na situação de Reserva. Portanto, poderíamos compreender as novas pautas sociais engendradas pelos Terena “modernos” como derivadas da estratégia de um povo na busca de novos espaços para o exercício da sua sobrevivência, espaços estes onde a pressão para a negação da identidade indígena fosse minimizada.

As reservas indígenas Terena, consolidadas a partir da década de 1920, serviriam de ponto de apoio vital para o reagrupamento das famílias dispersas pela guerra e que ainda se encontravam sob a servidão nos barracões das fazendas. Passaram a representar, para os Terena, não só o espaço necessário para a reafirmação do ethos tribal, mas também de uma certa liberdade. Para os moradores das reservas, o trabalho externo voltaria a ganhar sua característica de trabalho facultativo, readquirindo a liberdade de escolher o tipo de serviço e até o patrão. Esse período de relativa liberdade, ao que parece, duraria pouco tempo, exatamente até o SPI alterar sua política nas reservas.

Havia a necessidade da imposição dos limites das Reservas porque, na verdade, os Terena não os respeitavam, isto é, continuaram usando e ocupando as áreas vizinhas para as suas necessidades, caçando, pescando e coletando suas ervas medicinais ou mel, sempre e quando lhes aprouvesse. E é somente a partir de 1960 que os Terena começariam a ser perseguidos e reprimidos, pelos fazendeiros e pelos encarregados do SPI, nessas suas expedições. E mesmo depois, quando se configurou uma situação de verdadeira clandestinidade, jamais interromperam suas incursões.
Do SPI à Funai

Pouco mudaria nesta estrutura de poder com a substituição do SPI pela Funai: o chefe do posto deste novo órgão herdaria do seu antecessor do SPI as mesmas prerrogativas de poder. Contudo, o aumento da procura em "escala" da mão-de-obra para as usinas de cana daria motivo para que aquele funcionário público (com o beneplácito do "capitão" e autorização de Campo Grande), passasse a cobrar uma taxa, por índio contratado, dos intermediários ("gatos") das usinas. O dinheiro assim arrecadado deveria ser utilizado na "manutenção" de algumas atividades do posto. Este recurso passaria a ser, nos anos 80, o principal atrativo para a disputa da "capitania"... e fonte importante de ganhos para o Posto Indígena – cuja prestação de contas é em geral um segredo, apenas partilhado pelo chefe do PI e o "capitão".

A administração da changa (como é chamado regionalmente o trabalho temporário nas fazendas e hoje nas usinas de açúcar e álcool) passaria a ser um dos principais – senão o principal – papel desempenhado pelo núcleo de poder na reserva (chefe PI, capitão e membros privilegiados do Conselho). Assim, para sustentar a posição de poder, atualmente, aquele núcleo é responsável pela indicação exclusiva dos "cabeçantes" – figuras da aldeia, necessariamente alfabetizadas, que são os encarregadas das "turmas" de trabalhadores contratadas pelo empreiteiro das usinas. Estes "cabeçantes" recebem um salário diferenciado e se responsabilizam integralmente pela "sua" turma (composta por 20/30 trabalhadores) distribuindo (e anotando) as tarefas realizadas no dia-a-dia do corte de cana. A escolha destes indivíduos é basicamente determinada pelas relações de parentela e – sobretudo – pelo aliciamento de lealdades, que ocorrem durante o processo eleitoral, feita pelos canditados a "capitão". Um bom "cabeçante" traz dividendos políticos para o seu "padrinho".

Fora da changa, portanto, as opções são poucas – e o próprio sistema de poder não favoreceria alternativas para além de consentir, por exemplo em Cachoeirinha, nos anos 30 e 50, a operação de um extrativismo individual, também taxado pelo PI (de casca de angico para os cortumes regionais e lenha para as cerâmicas/olarias locais e para uma caieira que existiu num povoado vizinho a Cachoeirinha até 1960). Porém esse extrativismo, nos anos 70, extinguiu-se devido ao fechamento dos cortumes e por oposição das lideranças locais, preocupadas com a predação das matas da Reserva. Houve também o estímulo de um chefe de posto para o plantio de café, de início com bons resultados; mas, sem acompanhamneto técnico adequado, foram sendo atacados por pragas até serem totalmente erradicados 8/10 anos depois.

À exceção deste surto extrativista e de tentativa de implantação de culturas comerciais permanentes, outra iniciativa visando contemplar o trabalho interno nas aldeias teve lugar nos fins dos anos 1970 e início dos 80. Favorecida por um orçamento pródigo administrado pelos militares-presidentes, a Funai de então, durante cinco anos, beneficiou os poucos produtores locais de Cachoeirinha por meio de "projetos de desenvolvimento comunitário". Na realidade, tais projetos (aos quais eram destinados anualmente verbas orçamentárias, fora daquelas enviadas com a rubrica "manutenção do PI") serviram como uma espécie de capital inicial gratuito para a introdução da "revolução verde" no universo das Reservas Terena. Os efeitos sobre o ambiente natural deste processo de "modernização" do trabalho agrícola serão analisados adiante. Mas é a partir deste surto modernizante que novas áreas de roças seriam abertas nas "reservas" Terena, privilegiando culturas não mais de mera subsistência, mas claramente buscando a geração de excedentes comercializáveis.

Enquanto durou a fartura dos recursos a fundo perdido da Funai, de fato alguns produtores locais foram beneficiados, trazendo alguma esperança para os que viviam exclusivamente das roças. Foram adquiridos pequenos tratores, máquinas de beneficiamento, além do fornecimento de adubos e sementes selecionadas e do óleo para o preparo e plantio – às vezes o PI cobrando a restituição da semente e do óleo, outras não, dependendo do acerto com o "capitão" e do caixa do PI. E também trazendo invasoras resistentes, compactação do solo e o estímulo à abertura de novas áreas. Foram contratados técnicos agrícolas e agrônomos para dar suporte à agricultura comercial Terena. A chefia do PI passou a gerenciar então, além da changa, um empreendimento agrícola mais sofisticado – e de pouca duração.


Fonte: Povos Indígenas no Brasil