22.1.13

Lincoln: motim em Nova York

Quando nós escutamos os pesados disparos e os gritos em resposta, tive a sensação de ter conhecido os horrores da guerra.(Martha Perry, Nova York, 1863)

Cuidando do seu marido, um cirurgião militar que havia fraturado a perna, Martha Perry, que morava num primeiro piso na Avenida Lexington em Nova York, teve certa manhã sua atenção voltada para uma gritaria que, vinda de fora, das ruas, inundou o seu quarto. Uma turba caminhava aos trambolhos - trabalhadores com suas camisas vermelhas, mulheres com filhos no colo, e, misturada a eles, uma rapaziada doida que chutava tudo o que encontrava pelo caminho.

Durante o dia todo um sibilo agourento tomou o ar da cidade inteira. Era como se fosse um zumbido de marimbondos prontos para o ataque. Ao som das vidraças quebradas, viram-se logo as primeiras labaredas subindo aos céus naquele 13 de julho de 1863. As multidões, em alvoroço, tomavam contas das ruas, das praças, das docas do porto. Martha, num primeiro momento, acreditou que estavam comemorando ainda a notícia da vitória de Gettysburg, onde o general Meade havia detido os confederados do General Lee. Mas que nada! O aspecto dos que passaram como um vendaval em frente a sua casa nada tinha de festeiro.

A lei da conscrição militar
Tudo começara naquela manhã mesmo, quando o primeiro posto de conscrição militar, situado na 3ª Avenida com a Rua 46, fora tomado de assalto e destruído pelos que haviam sido sorteados para cumprir com o serviço militar. Os funcionários municipais não tinham culpa nenhuma, estavam apenas obedecendo às determinações do Ato de Conscrição, aprovado em março daquele ano no Congresso, por instâncias do Presidente Lincoln, e que determinava a convocação obrigatória de todo americano entre os 20 e 45 anos de idade. A isso se somara o anúncio da libertação dos escravos em todos os Estados Unidos.

A massa pobre de Nova York, especialmente os irlandeses, fossem recém-imigrados ou não, não se conteve. Pareceu-lhes uma escandalosa provocação isentar do serviço militar obrigatório quem pagasse US$ 300 ou levasse alguém “em condições razoáveis” para substituí-lo – o que livrava os endinheirados e os almofadinhas da cidade de ter que enfrentar o cheiro da pólvora sulista. Temiam, igualmente, que a abolição da escravatura fizesse com que milhares de libertos, abandonando o eito, abaixo da linha Mason-Dixon (limite que separava os estados livres dos escravistas), viessem a inundar o mercado de trabalho do norte, liquidando com seus empregos e com suas magras condições de vida.

O motim de Nova York assumiu então uma dupla motivação: pobres contra ricos, brancos contra negros. Foi como se tivessem soltado o demônio pelas ruas de Mannhattan, do Brooklin e do Bronx. As lojas, os armazéns, os grandes depósitos e os magazines, foram pilhados na sua quase totalidade, nada escapando das mil mãos gatunas da multidão.

Ensandecida, possessa, espumante, a turba feroz, depois de uma ligeira concentração no Central Park, marchou em duas colunas opostas para devastar tudo. Na frente, em linha, iam os grandalhões empunhando porretes, machados e pistolas; atrás deles, a infantaria ligeira da baderna, uma massa de rapazes e de adolescentes de ambos os sexos, armados de tijolos e pedras, deliciados em assolar tudo o que viam, o que se mexia. Quando uma das colunas daquele exército de vândalos chegou à 5º Avenida com a Rua 46, deparou-se com o orfanatório para crianças negras. A chusma não resistiu. Vociferante, queria linchá-las. Como grande parte das 237, que lá estavam, escaparam pelos fundos, um bando tocou fogo no prédio. Um marinheiro negro não conseguiu escapar dos estivadores, enquanto um outro, um motorneiro de bonde, já devidamente estripado, era arrastado pelos órgãos genitais pelas ruas. Quem também não escapou foi um velho índiomohawk, que os desordeiros cismaram ser um negro.

Durante o restante da semana, até o 17 de julho, o cenário não mudou. Prédios ardiam em todos os cantos de Nova York. Nem os militantes pró-abolição, pessoas que empenharam a vida em favor do fim da escravidão, escaparam de serem mortas a pauladas por turbas furiosas que gritavam No nigger on the rear! Sem crioulos na retaguarda! A polícia sumira das ruas. Os guardas morreram ou se esconderam. Os bombeiros, classe vocacionada ao heroísmo, não davam conta de atender aquele dilúvio de chamas. Lincoln ficou arrasado. O gosto da vitória em Gettysburg, amargara-se com as notícias trágicas que recebeu de Nova York. O povo da cidade insurgira-se contra a União, contra ele, naquilo que ficou conhecido como The New York city Draft riots.

O presidente, sem alternativas, ordenou então aos bravos do General Meade que fossem colocar ordem no pandemônio em que a grande cidade se encontrava. Veteranos do Exército do Pottomac, soldados que viram o branco do olho do rebelde sulista, marcharam então para lá. A eles juntou-se o 7º regimento de infantaria de Nova York, no qual serviam muitos irlandeses, senão a maioria. Travou-se uma dura luta na reconquista da cidade. As pedras das ruas, empilhadas, serviam como trincheiras. Obstáculos que eram tomados um a um pelos soldados, a tiro e carga de baioneta.

As avenidas de Nova York viraram corredores de assalto e suas transversais em fortins do populacho. As autoridades registraram 119 mortos e 306 feridos, mas o total foi além de 1,2 mil (entre mortos e desaparecidos), pois nas semanas seguintes incontáveis cadáveres, a maioria deles mutilados e de espancados, foram retirados das águas da baía do Hudson.

Martha Perry, dissipada a sensação de ter estado no fronte, agradeceu aos céus ter sido poupada. A cidade morreu? Bem ao contrário. A tragédia do motim de 1863, que causou um prejuízo de U$ 1,5 milhão, fez com que todos jurassem não repetir o horror. William Stoddard, que uns anos depois escreveu a respeito da espantosa arruaça, imaginou a situação como se um vulcão houvesse entrado em erupção, saltando lavra dos bueiros e das fossas da cidade. E, desde então, a cidade recomposta, varrendo as cinzas para o lado, envergonhada com o que ocorrera, renasceu para vir a tornar-se a capital do mundo.

A batalha de Gettysburg e o discurso
" ... There are no great men. There are only great challenges which ordinary men are forced, by circumstances, to meet." (Não existe um grande homem. O que existe são apenas grande desafios que homens comuns, forçados pelas circunstâncias, enfrentam", em tradução livre) - Almirante William F. Halsey

Eram uns 11 ou 12 mil homens do exército confederado que na manhã do terceiro dia da Batalha de Gettysburg, se abrigavam num imenso bosque que cercava a Colina do Seminário. Local com nome bem apropriado para quem, como a maioria deles, umas horas depois estraçalhados, estariam entregando a alma aos céus. Quem os comandava era o Major General George Pickett, um virginiano que, por dessas ironias da vida, conhecera Lincoln quando jovem estudante no Illinois. Pois agora lá estavam os dois em campos opostos, inimigos.

A Guerra da Secessão já se encaminhava para o seu terceiro ano, e o General Lee, o supremo comandante confederado, em vista do Sul estar completamente bloqueado, sem poder receber nada do Atlântico, decidira-se por um tudo ou nada. Avançara para o Norte com suas tropas - uns 75 mil homens divididos em três grandes corpos de exército - para, numa marcha acelerada, surpreender e por Washington D.C. sob sítio, obrigando Lincoln a renunciar. Bem mais à frente, ao leste, instruíra a divisão de cavalaria do General J.E.B Stuart, “os olhos de Lee”, a fazer sortidas na retaguarda das guarnições da União.

Os do Norte, aquelas alturas, indo mal da guerra, só lambiam as feridas que o Sul lhes infringira. O seu comandante supremo General Hooker, recém fora substituído pelo General Mead, tão medíocre como os demais. Mas se o Norte era pobre em comandantes, era pródigo em homens, em recursos matérias e financeiros. Tudo o que faltava ao Sul. No fundo, além de ser uma guerra da democracia contra a escravidão, era também uma guerra do dinheiro ianque contra a valentia sulista.

Quando os vigias viram a cavalaria de J.E.B. Stuart o alarme soou. Meade logo percebeu que Lee invadira a Pensilvânia e, em pouco, estaria às portas da capital. Ordenou então que O Exército do Potomac, com 95 mil soldados, se deslocasse para não deixá-lo passar. E agora os dois grandes exércitos estavam ali frente a frente nos arredores de Gettysburg. No primeiro dia da batalha, no 1º de julho, os confederados venceram. O segundo resultou num empate. Aprontaram-se então para a final.

O Major General Pickett tinha orgulho dos seus homens que estavam enfileirados numa floresta aguardando a voz do ataque. Para um oficial visitante ele disse que ali naqueles matos estavam integrantes de todas as famílias da Virgínia, quiçá as mais importantes do Sul, muitos descendiam dos que lutaram na Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775-1783). A missão dele, porém, era terrível.

Apoiado pelo General Longstreet e por uma forte barragem de artilharia, seus homens deveriam atravessar naquele dia uns 1,2 mil metros em campo aberto para tomar as posições dos nortistas num lugar de nome tétrico: o Morro do Cemitério. Que destino o dele, sair da Colina do Seminário para ir atacar a do Cemitério! Foi como bater numa rocha. Os nortistas resistiram a todos os assaltos. No fim da tarde 5,6 mil confederados de Pickett espalhavam-se mortos em frente às defesas da União.

Naquele dia, o 3 de julho de 1863, o Sul perdeu a guerra. No total, em apenas três dias de batalha, quase 50 mil americanos pereceram em Gettysburg (perto do número das baixas da Guerra do Vietnã). Cinco meses depois, no dia 19 de novembro de 1863, inaugurando o campo dos mortos no feroz combate, Lincoln enalteceu a bravura daqueles soldados num celebrado e pungente discurso: o Gettysburg Address., peroração que se tornou um clássico na defesa da democracia, cujo talento oratório somente encontrou similar no discurso de Péricles durante a Guerra do Peloponeso.

Desde então, derrotado, o Sul passou a ser execrado. Terra escravista, racista e reacionária, era apontada como a antípoda dos valores americanos. Enquanto o Norte e o Oeste prosperavam em liberdade, o Sul no século seguinte marcava passo no atraso e na desesperança. Quando não na estagnação e na loucura como William Faulkner mostrou. Amaldiçoado, só aparecia no noticiário nacional quando os matutos linchavam um pobre negro ou quando os homens do capuz da Klan incendiavam uma igreja batista, como todo o mundo dentro. Tornou-se a vergonha da América. Local onde os negros ainda nos anos cinqüenta, mesmo depois de terem alcançado a liberdade em 1863, não só não votavam como não sentavam na parte dianteira de um ônibus público ( o estopim do movimento pelos direitos civis do reverendo Martin Luther King, em 1955) . Imagem que somente nos últimos decênios começou a se alterar.

O Governo do povo, para o povo e pelo povo
"Há 87 anos, os nossos pais deram origem neste continente a uma nova Nação, concebida na Liberdade e consagrada ao princípio de que todos os homens nascem iguais.

Encontramo-nos atualmente empenhados numa grande guerra civil, pondo à prova se essa Nação, ou qualquer outra Nação assim concebida e consagrada, poderá perdurar. Eis-nos num grande campo de batalha dessa guerra. Eis-nos reunidos para dedicar uma parte desse campo ao derradeiro repouso daqueles que, aqui, deram a sua vida para que essa Nação possa sobreviver. É perfeitamente conveniente e justo que o façamos.

Mas, numa visão mais ampla, não podemos dedicar, não podemos consagrar, não podemos santificar este local. Os valentes homens, vivos e mortos, que aqui combateram já o consagraram, muito além do que nós jamais poderíamos acrescentar ou diminuir com os nossos fracos poderes.

O mundo muito pouco atentará, e muito pouco recordará o que aqui dissermos, mas não poderá jamais esquecer o que eles aqui fizeram.

Cumpre, antes, a nós os vivos, dedicarmo-nos hoje à obra inacabada até este ponto tão insignemente adiantada pelos que aqui combateram. Antes, cumpre-nos a nós, os presentes, dedicarmo-nos à importante tarefa que temos pela frente – que estes mortos veneráveis nos inspirem maior devoção à causa pela qual deram a última medida transbordante de devoção – que todos nós aqui presentes solenemente admitamos que esses homens não morreram em vão, que esta Nação com a graça de Deus venha gerar uma nova Liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desaparecerá da face da terra".

Abrão Lincoln - 19 de Novembro de 1863 - Cemitério Militar de Gettysburg

Fonte: Voltaire Schilling