22.1.14

José Gervasio Artigas: o herói da construção do Uruguai




Herói nacional do Uruguai, José Gervasio Artigas criou uma nação no meio de guerras intermináveis no início do século 19. e plantou a semente do país mais liberal da América Latina

Texto José Francisco Botelho


No outono de 1820, um general derrotado cavalgava pelos campos da região de Misiones, às margens do Rio Uruguai, nos confins meridionais da América do Sul. Os únicos sobreviventes de suas forças eram doze guerreiros maltrapilhos. O líder tinha olhos esverdeados, rosto sisudo, bronzeado pelo sol, e cerca de 50 anos de idade. Pouco a pouco, aquelas feições foram reconhecidas pelos índios que viviam acampados aqui e ali, entre montes e matagais. A pé e a cavalo, eles começaram a se aproximar: beijavam sua mão e pediam sua bênção. Em seguida, sem perguntas, iam apanhar lanças e flechas, abandonavam suas cabanas e passavam a seguir em silêncio o guerreiro taciturno. Em oito dias, o general tinha um novo exército com 800 homens. E voltou à interminável sequência de guerras em que vivera durante os últimos dez anos. Seu nome era José Gervasio Artigas - ou don José, ou o Grande Cacique, ou apenas "mi General", como era chamado por seus multiétnicos seguidores.

Pouco conhecido no Brasil, Artigas foi um dos personagens mais enigmáticos na história de nossos vizinhos. Figura central nas lutas pela independência da América, ele é considerado o herói nacional do Uruguai - e um dos poucos mitos latino-americanos que mantêm a boa fama, quase 200 anos após sua morte. Até hoje, turistas brasileiros se espantam com a atmosfera solene que reina no túmulo de Artigas, situado no centro de Montevidéu; e uruguaios de todas as idades enchem os pulmões para entoar a canção Don José, homenagem ao "Prócer de la Patria" composta por Rubén Lena na década de 1960. Bustos de Artigas podem ser encontrados até em cidades brasileiras na fronteira com o Uruguai - região que, por sinal, Artigas invadiu em suas guerras contra o império luso-brasileiro. Em parte, a história justifica esse respeito longevo, mesmo entre adversários. "Ele defendeu a liberdade civil e religiosa em toda a sua extensão imaginável - e suas ideias se parecem de forma surpreendente com a defesa atual da diversidade multicultural", diz o historiador uruguaio Nelson Caula, autor da biografia Artigas Nemorañé, lançada em 2012. "Não é exagero dizer que o Uruguai laico e liberal deste início do século 21 seja, em grande parte, herança de Artigas."


Hombre suelto

Artigas nasceu em Montevidéu, em 1764 - na época, o país que hoje o idolatra ainda não existia. O território do atual Uruguai integrava o imenso império espanhol nas Américas, que se estendia da Argentina até fatias dos Estados Unidos. A região era conhecida como Banda Oriental - ou seja, as terras que ficam a leste do Rio Uruguai. Área de transição entre dois impérios, o lugar era disputado entre espanhóis e portugueses: as potências europeias cobiçavam os imensos rebanhos de gado e cavalos selvagens que pastavam e corriam pelo pampa.

Montevidéu era uma ilha urbana, com hábitos aristocráticos, habitada por espanhóis ou descendentes, em um oceano de campos planos a perder de vista - a chamada "campanha". Nessas terras sem dono, índios charruas, minuanos e guaranis misturavam-se com desertores dos dois impérios e negros que haviam fugido dos senhores de escravos. O cristianismo espanhol nunca vingou naqueles ermos: imperava ali um sincretismo que mesclava pedaços de religião cristã com crenças mágicas. Essa mistura cultural e racial deu origem aos hombres sueltos - gente de raça indefinida, que vivia acampada sob sol e chuva, domando cavalos, carneando bois para vender seu couro e sempre bebendo o chá da planta Ilex paraguariensis. Em espanhol, esses homens "sem rei, sem Deus e sem lei" - como dizia um adágio da época - eram chamados de paisanos ou gauchos. Em português, gaúchos.

Artigas era de uma família rica, de fina cepa espanhola, com vastas propriedades rurais. Cresceu no clima fidalgo de Montevidéu e estudou em um mosteiro de franciscanos, onde leu os clássicos - mas preferia filósofos liberais, como o norte-americano Thomas Payne e o francês Jean-Jacques Rousseau. Apesar da origem urbana, logo despertou nele o fascínio pelo deserto verde da campanha.

Aos 14 anos, Artigas fugiu de casa e se instalou entre os gauchos nas terras de ninguém. Anos depois, reapareceu liderando um bando de hombres sueltos que o idolatravam. Alguns historiadores acreditam que ele viveu entre as tribos charruas - e teve um filho com uma índia. "Seus amigos eram índios, mestiços e escravos fugitivos. E a maior parte das mulheres que amou, e que o amaram, pertenciam a esse universo", diz Caula.

Aos 33 anos, entrou para o serviço da coroa espanhola, no Corpo de Blandengues - uma divisão de cavalaria que lutava contra os bandoleiros que infestavam o pampa na Banda Oriental. Poderia ter passado o resto de sua vida como um honorável servidor de Sua Majestade. Mas, por volta de 1807, tudo haveria de mudar - graças à confusão armada no outro lado do Atlântico por Napoleão Bonaparte, imperador da França.

No início do século 19, as tropas de Napoleão andavam pela Europa depondo monarcas - o plano era não só transformar o Velho Mundo em um grande império francês mas também se apoderar das colônias europeias no além-mar. Em 1807, os franceses tentaram depor a coroa portuguesa - mas a família real conseguiu fugir para o Brasil, estabelecendo a corte no Rio de Janeiro em 1808. Em abril daquele ano, Napoleão fez na Espanha o que não lograra em terras lusitanas: aprisionou o soberano Carlos IV e colocou seu próprio irmão, José Bonaparte, no trono usurpado.

Deste lado do oceano, a queda da coroa espanhola foi o estopim para as lutas de independência. Os próprios descendentes de colonizadores - chamados criollos - se ressentiam com os impostos e as restrições ao livre-comércio. Os indígenas queriam se livrar dos dominadores europeus, e os africanos escravizados buscavam liberdade. Em 1809, a revolução se espalhou pela Província do Paraguai, o Vice-Reino do Peru, a Capitania do Chile e o Vice-Reino do Prata (que incluía o que hoje é Argentina, Uruguai e uma parte do Rio Grande do Sul). Em maio de 1810, a Junta de Buenos Aires - espécie de câmara revolucionária que substituiu o governo nas cidades coloniais - declarou independência. Já o governador de Montevidéu se manteve leal aos espanhóis. Batalhas se espalharam dos Andes até as fronteiras com o Brasil. Os defensores da coroa eram apelidados de godos ou maturrangos - palavra que também significa "sujeito moleirão, que não sabe andar a cavalo".


Guerra do pampa

Artigas, na época, era um dos oficiais mais respeitados no serviço do exército colonial. Seu conhecimento da geografia do pampa e sua popularidade entre os mestiços e gauchos faziam dele um líder natural. Em 15 de fevereiro de 1811, porém, desertou, atravessou o Rio de Prata e foi oferecer seus serviços à Junta de Buenos Aires. Um mês depois, retornava à terra natal à frente de um pequeno exército e com a missão de colocar os maturrangos para correr.

Ao iniciar sua revolução, Artigas comandava 180 homens contra milhares de soldados monarquistas. Mas bastou cavalgar pela campanha e em pouco tempo tinha um exército de gaúchos, índios e africanos - alguns destes fugidos de senzalas brasileiras. "Os soldados eram acompanhados por seus familiares, pois, curiosamente, era mais seguro estar próximo à frente de batalha do que nas casas desprotegidas", diz a historiadora Ana Ribeiro, da Universidade Católica do Uruguai. "Era uma espécie de nação que se movia como um corpo não só militar como político: guerreavam, deliberavam, se reuniam em assembleias ou congressos." Artigas não usava roupas de general, mas a indumentária típica de um gaúcho. Nos intervalos da batalha, costumava ler o Contrato Social de Rousseau, deitado sobre um pelego em uma carroça.

As lutas contra os monarquistas anteciparam, em muitos aspectos, as táticas de guerrilha que seriam usadas nos séculos 20 e 21, de Cuba ao Oriente Médio. Os exércitos da coroa seguiam a ciência militar europeia: tropas com formações fixas, movimentos lentos e disciplinados, sob o resguardo de canhões e obuses.

Boa parte do arsenal do grupo de Artigas era composto de carabinas velhas, lanças improvisadas, laços, facões e boleadeiras - arma indígena composta de três pedras redondas presas em cordões de couro trançado. Mas suas tropas tinham cavalos, muitos cavalos. Além disso, no espaço ilimitado da campanha, tropas ligeiras levavam vantagem. Os paisanos de Artigas atacavam de surpresa as rígidas formações espanholas e batiam em retirada, levando todas as armas de fogo que pudessem apanhar ao inimigo. Com essa guerra de atrito, Artigas derrotou as forças espanholas na Batalha de Las Piedras, em maio de 1811. Poucos meses depois, os guerrilheiros mestiços acampavam junto às muralhas de Montevidéu.

Prestes a cair, o governo colonial pediu socorro a um velho inimigo: o reino de Portugal, Brasil e Algarves. Em junho de 1811, o rei dom João VI enviou 3 mil soldados, vindos de São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com o suposto objetivo de salvar a monarquia espanhola na Banda Oriental. Na verdade, a princesa Carlota Joaquina, esposa de dom João, sonhava em dominar as terras ao redor do Rio da Prata: ela era filha de Carlos IV, o deposto rei espanhol, e se considerava sua herdeira nas Américas. Apanhado entre as forças espanholas e o exército luso-brasileiro, Artigas levantou sítio e fugiu em direção ao Rio Uruguai, buscando refúgio na província de Entre Rios (hoje na Argentina). Mas não foi sozinho: mais de 700 famílias o seguiram.


Moisés uruguaio

Foi um êxodo de proporções bíblicas. Temendo as represálias dos espanhóis e os abusos do invasor lusitano, 80% da população da campanha abandonou casas e plantações: cerca de 16 mil pessoas seguiram Artigas para o exílio. Brancos, índios, negros e mestiços iam misturados, sob o fogo dos portugueses e brasileiros. Ricos fazendeiros viajavam em carruagens, e pobres iam a pé.

Ainda em 1812, a caravana voltou à Banda Oriental, após a retirada dos portugueses (veja na linha do tempo abaixo). Montevidéu foi tomada em 23 de junho de 1814, acabando aí o domínio espanhol sobre a região do Rio da Prata. Mas nem bem um conflito terminara, outro começou. A Junta de Buenos Aires quis anexar a Banda Oriental à então chamada União Argentina, mas Artigas se recusou e partiu para o ataque contra seus antigos aliados argentinos, derrotando- os na batalha de Guayabos, em janeiro de 1815. Em Buenos Aires, ele foi declarado "traidor, inimigo da pátria, o Átila dos pampas" - e sua cabeça, colocada a prêmio.

Mais uma vez, Portugal e o Brasil foram gentilmente convidados a invadir o Uruguai - e aceitaram a oferta. Agora, eram os próprios republicanos argentinos que recorriam ao vizinho monarquista contra Artigas. A segunda invasão brasileira foi ainda maior: 5 mil soldados de elite vindos direto de Portugal sob o comando do general Carlos Frederico Lecor. Durante cinco anos, Artigas foi perseguido pelos argentinos e pelas tropas portuguesas. Em represália, ele chegou a invadir o Rio Grande do Sul com 3 mil homens, ocupando a região de Missões e cidades na fronteira sudoeste - mas logo teve de bater em retirada. Em meio a fugas e escaramuças sem fim, deixou um esboço de Constituição ao estado que sonhou criar: pregava a liberdade religiosa, o fim da escravidão e a distribuição de terras entre os indígenas.

Derrota após derrota, don José conseguia escapar, galopando pelos campos - e juntava novos exércitos espontâneos aonde quer que fosse. Ao general Lecor, Artigas enviou uma mensagem com uma de suas frases célebres: "Quando não tiver mais homens, vou juntar os cães selvagens do campo para combatê-lo". Cenas como a narrada no início desta reportagem se repetiram até 1821. Foi só então que, após mais de dez anos de guerra, o Grande Cacique exilou-se no Paraguai.

Depois da derrota de Artigas, o Uruguai foi anexado aos domínios portugueses sob o nome de Província Cisplatina. A ocupação só acabou cinco anos depois, em uma rebelião liderada por Manuel Oribe e Juan Antonio Lavalleja - ambos, ex-seguidores de Artigas. Mas mesmo após a liberação do Uruguai, o antigo mestre dos paisanos não quis retornar à terra natal - por motivos até hoje obscuros. Passou suas últimas três décadas em uma quinta no interior do Paraguai, cuidando de sua horta. Os índios das redondezas o chamavam de Karay Guazú, "o grande Senhor", e Oberavá Karay, "o senhor que resplandece". Aos 86 anos, no leito de morte, deixou à posteridade suas últimas palavras. Não eram um ideário político, nem um epigrama contra seus muitos inimigos. O velho gaucho, não querendo morrer deitado, exclamou: "Meu cavalo! Me tragam meu cavalo!" Mas o cavalo não veio.

Uma história contada por batalhas sem fim

1776

Origem do Vice-Reino do Prata, parte do império colonial espanhol que incluía o que hoje é Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai, fatias do Rio Grande do Sul, Chile e do Peru. Antes, os territórios integravam o Vice-Reino do Peru, criado no século 16.

1808

Napoleão Bonaparte depõe Carlos IV, rei da Espanha, e coloca seu irmão, José Bonaparte, no trono.

1809-1810

A queda da coroa espanhola deflagra lutas pela independência na América do Sul. É criada uma junta revolucionária em Buenos Aires, que declara independência, pondo fim ao Vice-Reino do Prata. O governo de Montevidéu apoia a monarquia.

1811

Artigas se une à revolução e começa a guerra contra os monarquistas na Banda Oriental. Os defensores da coroa são derrotados na Batalha de Las Piedras. Artigas cerca Montevidéu. Do Brasil, D. João VI envia exércitos para salvar os domínios espanhóis - sua verdadeira intenção é anexar o Uruguai. Artigas e seus seguidores fogem para a província argentina de Entre-Rios.

1812

A Inglaterra pressiona Portugal para que se retire do Uruguai. Os ingleses querem a queda do domínio espanhol nas Américas, pois a Espanha impunha obstáculos ao livre-comércio. As tropas portuguesas se retiram, e Artigas volta à Banda Oriental.

1814-181

A cidade de Montevidéu é tomada pelos revolucionários. Artigas se opõe ao domínio argentino na Banda Oriental. Os portenhos declaram Artigas "inimigo da pátria".

1816-1822

Começa a segunda invasão luso-brasileira à Banda Oriental. Cinco mil soldados de elite vêm de Portugal. O novo conflito dura cinco anos. Derrotado, Artigas foge para o Paraguai, onde morrerá 30 anos depois. O Uruguai é ocupado pelos portugueses. Com a independência do Brasil, em 1822, torna-se uma província do Império.

1825

Manuel Oribe e Juan Antonio Lavalleja lideram uma rebelião contra o domínio brasileiro, e o Uruguai acaba se tornando um país independente.

Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/jose-gervasio-artigas-heroi-construcao-uruguai-768936.shtml
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