Jesus na cruz: fim de sua carreira revolucionária, em episódio envolto em “memórias inventadas” retrabalhadas pelas tradições evangélicas (Cristo carregando a cruz, óleo sobre tela, Giovanni Caracciolo, c. 1617)
Por Lair Faria
Não há como negar que os últimos dias de Jesus de Nazaré foram turbulentos. Não para os romanos, pois crucifi car sujeitos em conflito com as leis era um ato rotineiro e recorrente nos territórios por eles ocupados. Mas para aquelas pessoas que seguiram Jesus, desde as mais próximas até as que ficaram de longe apoiando seu desenvolvimento, não resta dúvida que foram momentos muito angustiantes e inesquecíveis.
Cumpre, porém, pensar detidamente em até que medida teriam sido, de fato, inesquecíveis as cenas dos momentos fi nais de Jesus naquela fatídica semana em que muitas expectativas foram abruptamente encerradas. Os estudos sobre memória tiveram, em anos recentes, significativos avanços e, por conseguinte, vêm proporcionando condições para novos olhares acerca da formação das tradições evangélicas. O que muitos acreditam ser inesquecível pode vir a ser, na realidade, o elemento que a memória registra com menor precisão.
Com efeito, no atual estágio das pesquisas sobre memórias é pertinente indagar: são confiáveis os relatos das testemunhas oculares da Paixão de Jesus? Perguntar sobre a confiabilidade das testemunhas não significa colocar em suspeita a honestidade das pessoas que narraram o que viram, mas ter clareza de que mesmo o indivíduo mais imbuído de boa vontade pode ser traído por suas recordações.
O diálogo entre a pesquisa sobre os primórdios dos cristianismos e os estudos empíricos sobre memória ensejou identificar fatores que podem alterar as lembranças de uma testemunha ocular acerca de um evento: aspectos dos relatos de outros indivíduos que inconscientemente são incorporados à memória de uma testemunha ocular; a tendência de evitar conflitos com relatos de outrem, que leva à escolha de uma versão culturalmente apropriada do evento; informações pós-eventos que influenciam aquilo que é retido pela memória, além de suposições sobre elementos dos relatos que, com o passar do tempo, podem passar a ser tratadas como parte da lembrança original. Embora memórias coletivas sejam mais estáveis do que as individuais, as memórias do grupo podem agregar erros de registro de um testemunho individual, e as memórias coletivas são moldadas por considerações teológicas inerentes ao grupo.
EVANGELHOS ANÔNIMOS
Antes de avançarmos, cabem considerações de suma importância a respeito de alguns consensos acadêmicos e, por que não dizer, teológicos, em torno do caráter dos evangelhos canônicos. “Mateus”, “Marcos”, “Lucas” e “João” não são os autores daquelas obras que abrem o assim chamado Novo Testamento. Esses quatro textos eram, originalmente, anônimos e suas autorias foram determinadas a posteriori, no contexto das disputas de poder que tiveram lugar à proporção que outros grupos foram surgindo e apresentando seus próprios evangelhos. Estima-se que entre os séculos I e III quase 40 evangelhos diferentes tenham sido escritos.
Houve uma lacuna de tempo considerável entre a morte de Jesus de Nazaré e o início da escrita dos evangelhos. Nenhum desses textos foi escrito imediatamente após o desfecho fatal da carreira revolucionária de Jesus. Do mais antigo ao mais recente dos evangelhos canônicos, calcula-se um intervalo que variou de 40 a 80 anos. Em outras palavras, por uma quantidade nada desprezível de décadas, os ditos e feitos de e sobre Jesus estavam depositados nas memórias de variadas pessoas que os propagavam oralmente, até que se resolveu que chegara o momento de registrar por escrito o que era falado, congelando, em definitivo, as lembranças em forma de texto.
Por conseguinte, esse deve ser o pano de fundo sobre o qual as narrativas da Paixão de Jesus precisam ser lidas caso se queira saber o que nelas pode ser considerado, com alguma probabilidade, histórico. Com efeito, há um núcleo de historicidade soterrado por debaixo de camadas e mais camadas de esquecimentos intencionais, elucubrações teológicas enviesadas e interesses específicos de lideranças religiosas que entraram em ação, em épocas distintas, na formação das tradições evangélicas.
MARCOS E O PLANO PARA MATAR JESUS
Conforme o evangelho de Marcos, o texto canônico que, em termos cronológicos, é anterior a todos os outros evangelhos do assim chamado Novo Testamento, antes que Jesus e seus acompanhantes adentrassem o palco em que se deu o clímax de sua campanha revolucionária, ou seja, Jerusalém, os chefes dos sacerdotes e os escribas articulavam uma forma ardilosa de matar Jesus com a preocupação de que tal intento não se consumasse durante a festa da Páscoa, pois eles temiam tumulto entre o povo.
As primeiras questões que essa passagem suscita são: como o autor do evangelho de Marcos conseguiu essa informação? É plausível imaginar que alguém dentre os chefes dos sacerdotes ou dentre os escribas relatou o que foi tramado a portas fechadas para um estranho? Quem conhece o desenrolar da história dos últimos dias de Jesus, sabe que sua prisão e morte se verificaram exatamente durante a Páscoa e diante do povo. É uma passagem, portanto, que pode ser qualificada como uma memória inventada.
Com efeito, as narrativas evangélicas sublinham, insistentemente, as rivalidades entre Jesus e diferentes grupos judaicos letrados. A propósito, convém assinalar que a oposição ao filho primogênito de José e Maria nunca partira do meio do povo, mas que as tensões que os autores dos quatro evangelhos assinalam sempre ocorreram entre Jesus e as classes dirigentes. O que isso quer dizer? Que, conhecidas as animosidades existentes, não era difícil criar, com toques de plausibilidade, uma cena na qual se planejasse uma maneira de dar cabo do problemático Jesus.
AS 30 MOEDAS DE JUDAS
O mesmo tipo de reflexão cabe para uma passagem registrada na sequência da narrativa. Um dos discípulos de Jesus, chamado Judas Iscariot, foi ter com os chefes dos sacerdotes na intenção de entregar seu mestre a eles. O texto de Marcos descreve que o encontro sigiloso alegrou de tal forma aqueles religiosos que eles prometeram, como compensação, retribuir o gesto do apóstolo com uma soma em dinheiro.
Sem outras testemunhas que possam corroborar a iniciativa de Judas e o acerto fi nanceiro entre o apóstolo e membros da elite sacerdotal do Templo de Jerusalém, essa passagem pode ser encaminhada para a lista de memórias inventadas. Com efeito, a própria narrativa da traição de Judas tem todas as características de uma construção imaginativa elaborada em razão da necessidade de se encontrar uma explicação convincente para a prisão de Jesus.
Essas duas situações se encaixam, portanto, nos casos em que suposições são feitas em torno de determinadas memórias que, com o passar do tempo, acabam agregadas ao conjunto de memórias e ganham status de originais.
Na sequência de eventos que culminaram na crucifixão do filho mais velho de Maria, Jesus dirige-se com seus discípulos para um lugar chamado Getsêmani. Ali será observado um episódio crucial no desenvolvimento da história e, concomitantemente, fundamental para pensar o papel das testemunhas oculares na formação das tradições evangélicas.
De acordo com o evangelho de Marcos, Jesus e seus companheiros foram surpreendidos pela chegada de Judas e uma multidão disposta a capturar o Nazareno. Essa passagem, portanto, teve várias testemunhas oculares que poderiam ter servido de informantes sobre o ocorrido e garantiriam a fidelidade dos fatos narrados. Mas, quando entram em jogo as peculiaridades da memória, nem isso pode estar assegurado. O mais conveniente a fazer é pensar que mais de uma memória brotou daquela situação, em que cada uma dependia das predisposições particulares de quem presenciou a prisão de Jesus. O que se tem por escrito no evangelho já seria uma harmonização dessas memórias individuais, modelada pelos propósitos teológicos e apologéticos dos que tomaram para si a tarefa de registrar o que podia ser lembrado e esquecido.
JESUS DIANTE DO SUMO SACERDOTE
Pois bem, no auge da altercação que resultou no aprisionamento de Jesus, o autor do evangelho de Marcos faz uma afirmação curiosa, mas de alta relevância: os discípulos abandonaram seu mestre, fugindo todos. Dali para a frente, portanto, Jesus ficou sozinho. O que nos leva a uma indagação fundamental: quem foram as testemunhas oculares dos eventos que se sucederam à prisão do Nazareno e que forneceram os detalhes – ações e diálogos – daquilo que veio a acontecer?
Assim, acompanhando a narrativa do primeiro evangelho, Jesus foi levado ao sumo sacerdote que estava reunido com todos os chefes eclesiásticos, os anciãos e os escribas. No meio deles, foi interrogado e agredido fisicamente. Dispensável lembrar que nenhum dos seguidores do filho do carpinteiro estava presente. No dia seguinte, “logo de manhã”, assim diz o texto, as elites judaicas entregaram-no a Pilatos, a autoridade máxima romana na Palestina ocupada. No interior do palácio em que Pilatos administrava os interesses do império, quem, dos seguidores de Jesus, se encontrava em condições de observar e depois narrar para os outros os acontecimentos?
A regra é, portanto, considerar que os episódios da Paixão de Jesus que se desenrolaram em espaços fechados e hostis não tiveram testemunhas oculares confiáveis e capazes de transmitir para quem quer que fosse as palavras e ações ocorridas. Implica dizer: todas as descrições evangélicas compreendidas entre o instante em que Jesus foi conduzido até o sumo sacerdote, passando pelo interrogatório por Pilatos, até a hora em que é levado para ser crucificado, devem ser enquadradas como memórias inventadas.
No instante em que a narrativa do evangelho de Marcos frisa que Jesus foi levado para ser crucifi cado, há uma alteração na situação. Dali para a frente, o filho mais velho de José e Maria passa a transitar em espaços, por assim dizer, públicos. Portanto, com chances maiores de ser observado por testemunhas oculares, garantindo-se, desse modo, um mínimo de plausibilidade aos relatos que foram preservados por escrito.
Iniciada a assim chamada Via Crucis de Jesus, o autor do evangelho de Marcos introduz um fato e três personagens novos: Simão Cireneu e seus dois filhos, Alexandre e Rufo. Sobre estes dois últimos, nada se sabe a não ser o fato de, muito provavelmente, o autor do evangelho de Marcos tê-los citado como atestadores do testemunho de seu pai.
Com efeito, certo Simão Cireneu vinha do campo e foi requisitado para carregar a cruz. Deduz-se que a cruz de Jesus. Mas nada se afirma acerca das razões que levaram os soldados romanos a solicitar isso a um transeunte aparentemente desconhecido. Atente-se para o fato de que a narrativa evangélica jamais afirma que Jesus caiu no chão enquanto se dirigia ao Gólgota, tornando-se ainda mais enigmática aquela situação.
Entretanto, na medida em que o autor do evangelho de Marcos incluiu essa informação em sua narrativa, cabe postular que ela estava circulando de boca em boca no período que antecedeu seu registro escrito e foi considerada digna de entrar para o texto. De modo que, com alguma boa vontade, Simão Cireneu pode ser incluído no rol das testemunhas oculares que serviram como informantes do acontecido.
A EXISTÊNCIA DE SIMÃO CIRENEU
Não existe, todavia, apenas um relato acerca dos últimos dias da carreira revolucionária de Jesus. Convém não desprezar o evangelho que a tradição cristã atribuiu a João. Muito embora seja o texto reconhecidamente, menos histórico entre os canônicos, há nele lampejos do que pode ter acontecido, submersos em meio às releituras teológicas de seu autor. Trata-se, porém, do único evangelho que alega ser depositário do testemunho de alguém que presenciou os momentos mais importantes da vida pública de Jesus.
Em tese, o relato contido nesse evangelho seria muito mais confiável e preciso do que os outros – desde que se desconsiderem os estudos sobre memória aplicados aos relatos orais e escritos, é claro. De acordo com a narrativa desse evangelho, após entregue para a crucificação, embora não se encontrem descrições das agressões cometidas por soldados romanos a Jesus, o filho mais velho de José e Maria saiu “carregando sua cruz” e chegou ao local chamado “Lugar da Caveira”, “onde o crucificaram”. Um leitor atento logo sentiria curiosa ausência nesta passagem: certo Simão Cireneu, pai de Alexandre e de Rufo.
Conforme o evangelho de João, Jesus não recebeu ajuda de ninguém e percorreu a chamada Via Crucis carregando a cruz que lhe fora designada. De maneira que surgem indagações: como conciliar as duas narrativas? Houve um lapso de memória no relato feito por aquela testemunha ocular anônima que está por trás da escrita do evangelho de João? Simão Cireneu existiu mesmo? Qual dos dois evangelistas está falando a verdade?
Os últimos dias de Jesus não foram turbulentos apenas para aqueles que o amaram até o fim. Continuam sendo para os que buscam reconstruir seus passos com esteio nos evangelhos canônicos em diálogo com os estudos sobre memória. Ao fim e ao cabo, é de bom alvitre confiar desconfiando de testemunhas oculares e suas lembranças.
13.3.15
Dossiê Entre a História e os evangelhos: a paixão de Jesus
Fonte:http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/entre_a_historia_e_os_evangelhos_a_paixao_de_jesus.html
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