3.3.15

Vieira, o Incansável


Braço direito do rei e inimigo da Inquisição, jesuíta dedicou-se a muitos combates, perdeu a maioria, mas marcou o século

Ronaldo Vainfas
Não é exagero dizer que Antônio Vieira foi o principal jesuíta luso-brasileiro do século XVII. No mínimo. Neto de mulata pelo lado paterno e filho de meia cristã-nova pelo lado materno, sempre tentou esconder tais origens, mas teve pouco êxito. Nos anos em que viveu na corte, seus inimigos o acusaram de judeu e mulato em panfletos difamatórios. Em uma sociedade marcada pelo ideal de “limpeza de sangue”, eram denúncias graves.

Nascido em Lisboa, em 1608, ele passou a infância e a juventude na Bahia, onde seu pai foi escrivão do tribunal da Relação, nomeado pelo rei. Foi lá que Vieira tornou-se jesuíta e iniciou a carreira de orador sacro, missionário e político. Acompanhou as conquistas holandesas, tanto na Bahia em 1624 quanto em Pernambuco em 1630. Já era muito prestigiado em 1640, quando D. João IV foi aclamado rei de Portugal em prejuízo do rei castelhano Felipe IV. A Restauração estava em marcha contra a União Ibérica, e Antônio Vieira integrou a comitiva enviada pelo governador do Brasil para jurar lealdade ao novo rei.

Com seu carisma, logo conquistou a confiança do monarca, tornando-se seu principal conselheiro. Viveu no reino entre 1641 e 1653, atuando em missões diplomáticas na França e na Holanda. Sua grande obsessão foi, então, lutar pela consolidação da monarquia, renovando suas bases de apoio e recuperando o erário régio. Portugal estava combalido, privado da maioria das capitanias açucareiras do Brasil, de portos estratégicos na costa africana e de praças importantes na Índia.

O projeto de Vieira, adotado pelo rei, foi o de buscar o suporte dos cristãos-novos, amparado em Duarte da Silva, grande banqueiro, com ligações na Bahia, que o jesuíta conhecia bem. Mas o plano ousava mais: atrair os cristãos-novos que tinham regressado ao judaísmo na França e na Holanda. E se tratava não só dos capitais, mas também de incentivar os próprios mercadores e suas famílias a viver em Portugal.



A gravura em água-forte, de 1650, retrata o processo da guerra de Restauração Portuguesa até a coroação de D. João IV. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)

É claro que tal plano implicava enfrentar a Inquisição. A luta começou em 1643, com a Proposta feita a el-rei em que se lhe representava a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa. A conjuntura era propícia porque o Santo Ofício estava dividido. Parte dele seguia o inquisidor geral, D. Francisco de Castro, favorável à dinastia dos Felipes. O próprio inquisidor-mor fora preso por integrar uma conspiração contra o monarca português, em 1641, embora libertado pouco depois.

Apoiado pelo rei, Vieira reuniu-se com mercadores judeus em Rouen e Amsterdã, assegurando que a Inquisição estava nas últimas. Não estava: mandou prender homens-chave da rede liderada pelo jesuíta, como Duarte da Silva e o judeu novo (português convertido ao judaísmo) Manoel Vila Real, que acabou queimado. Também morreu na fogueira, em 1647, o jovem Isaque de Castro, causando indignação na comunidade judaico-portuguesa de Amsterdã. Tais fatos abalaram a credibilidade de Vieira entre os judeus portugueses da diáspora europeia.

Mas o padre reagiu ainda em 1647, com a Proposta a favor da gente da nação sobre a mudança de estilos do Santo Ofício e do fisco. Defendia nada menos do que retirar da Inquisição o controle dos bens confiscados aos cristãos-novos condenados como judaizantes. O rei adotou a proposta em alvará de 1649. No mesmo ano, surgiu a Companhia de Comércio do Brasil, com capitais de cristãos-novos, por isso mesmo chamada de companhia dos judeus. A conexão entre o combate ao confisco de bens e os interesses dos cristãos-novos era evidente.

No campo diplomático, Vieira escreveu o Papel Forte, em 1649, propondo a entrega aos batavos das capitanias açucareiras em disputa. A Insurreição Pernambucana havia azedado as negociações com os holandeses pela recuperação daquela capitania, e o jesuíta estava convencido de que, se a Holanda bloqueasse o Tejo como então ameaçava, a soberania portuguesa seria destroçada.

Vieira abriu frentes de combate que não tinha condições de vencer. No caso pernambucano, contrariou os conselheiros do rei que apostavam, com razão, na vitória dos rebeldes. A proposta sobre o confisco de bens dos cristãos-novos desencadeou um conflito com o papado, o que levou os inquisidores a recorrer para anular o alvará real. D. João IV, cuja legitimidade não era reconhecida por Roma, negou-se a cumprir a decisão papal. Vieira apoiou o monarca nesta decisão, para não dizer que o aconselhou, mas foi longe demais: contrariar o papa significava atropelar os estatutos da Companhia de Jesus, cujo voto solene era justamente o de lealdade incondicional ao Sumo Pontífice.



Gravura do Padre Veira pregando na Igreja de Santo Antônio da Bahia. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)O alvará foi confirmado, mas os jesuítas portugueses se dividiram. O grupo de inacianos que apoiava o papa triunfou, e o padre português quase foi expulso da Companhia, o que só não ocorreu graças à intervenção do rei. Na solução negociada, Vieira continuou jesuíta, mas foi afastado da corte. Realizou sua última missão diplomática em Roma, em 1650, propondo aos delegados castelhanos o plano de casar a filha do rei espanhol com o herdeiro do trono português, D. Teodósio, incluindo a mudança da corte de Madri para Lisboa. União Ibérica à portuguesa. Desastre total.

Ele não teve saída senão partir para São Luís, em 1653, no cargo de Superior das Missões. Por algum tempo caiu em total melancolia. Escrevendo a um velho companheiro, contou que andava vestido com um pano grosseiro da terra, “mais pardo do que preto”, dormia pouco e não saía de sua palhoça por nada. Não tardou, porém, a recobrar o ânimo, percebendo que ali havia inimigos poderosos a combater: os apresadores de índios. Antes de tudo, treinou os padres e organizou os aldeamentos. Percorreu vasto território, visitando Belém do Pará, a serra de Ibiapaba, no Ceará, e diversas partes do Maranhão. Viajava em comboio de canoas pelos rios amazônicos.

Arrancou do rei leis favoráveis aos índios e combateu os apresamentos arbitrários. Pregou sermões contra os escravistas e interveio em várias causas específicas com o apoio do governador, conseguindo provar muitos cativeiros ilegais. Mas não primava por tentar compreender os índios, como Anchieta no século anterior. Pregando a missionários, chegou a chamá-los de selvagens terríveis. Que os padres se acautelassem! Vieira não amava os índios, mas a catequese da Companhia de Jesus. De todo modo, os colonos o odiavam. E em 1661, deram um basta: expulsaram-no, e aos demais jesuítas.

Durante o exílio amazônico ele também se dedicou às letras, varando noites ensimesmado com o futuro da monarquia portuguesa. Escreveu, em 1659, a famosa Carta ao Bispo do Japão, dando continuidade a um escrito iniciado dez anos antes, a História do Futuro. Neste último, previa a ascensão de Portugal como a cabeça do “Quinto Império do Mundo”, reflexão inspirada pelo encontro com o principal rabino português de Amsterdã: Menasseh Ben Israel. Outra influência foram as Trovas do Bandarra, consideradas a “Bíblia do sebastianismo”. No texto de 1659, sustentou que o advento do Quinto Império estava próximo com a ressurreição de D. João IV, falecido em 1653, herdeiro de D. Sebastião, desaparecido (morto jamais!) em Alcácer Quibir, no norte da África, em 1578.

Vieira mostrou-se ancorado em dois sistemas de conhecimento. De um lado, tinha consciência da decadência portuguesa no século XVII. De outro, parecia convencido de que a glória eterna daquela monarquia era vontade de Deus. Buscava a ligação invisível entre os atos políticos e os desígnios divinos, combinando o cálculo maquiavélico com o modelo providencialista da história, à moda de Santo Agostinho.



Detalhe da biografia de Vieira por André de Barros, publicada em 1746. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Expulso do Maranhão, passou anos terríveis em Portugal. Intimado pela Inquisição de Coimbra, em 1663, presumiu que o acusariam pelas atitudes anti-inquisitoriais dos anos 1640. Nada disso. O problema residia em seus escritos proféticos e heréticos. Em 1665, foi preso e redigiu sua defesa, base de outro escrito inédito, a Clavis Prophetarum (Chave dos Profetas). Nele Vieira recua, deixando Portugal de lado para realçar o Reino de Cristo como cabeça do Quinto Império. Medo da Inquisição? Talvez. Em 1667, foi condenado à reclusão em alguma casa inaciana, privado do direito de pregar e proibido de votar ou ser votado para cargos na Companhia de Jesus. Mas a Inquisição não conseguiu anular Vieira: um golpe palaciano no mesmo ano resultou na suspensão de sua pena. O rei D. Afonso VI foi destronado pelo irmão, D. Pedro, apoiado por amigos do jesuíta na corte: o duque de Cadaval e o conde da Ericeira. Amparado na nova ordem, ele recuperou a liberdade e os seus direitos como jesuíta e pregador.

Não custou a perceber, porém, que jamais teria a influência política de antes. Partiu para Roma em 1668, para tentar anular – mais do que suspender – a sentença que recebera do Santo Ofício. Mas seu projeto, como sempre, era mais ambicioso. Apoiado pelos cristãos-novos portugueses, liderou campanha para desmoralizar a Inquisição portuguesa e, quem sabe, obter do papado a extinção do tribunal. Em 1673, revisou as Notícias recônditas do modo de proceder da Inquisição, escritas por um ex-notário patrocinado pelos cristãos-novos. O texto trucidava a Inquisição como tribunal. Um ano depois, escreveu o Memorial a favor da gente de nação hebreia, condenando a “limpeza de sangue” como critério para separar cristãos velhos e novos. Usou, então, argumento indiscutível: o próprio Cristo era judeu. A campanha deu certo. A Inquisição portuguesa foi suspensa no mesmo ano e, no ano seguinte, a sentença contra Vieira estava anulada.

Em 1680, retornou a Lisboa com assento no Conselho de Estado. Voltou a atuar nas questões coloniais, conseguindo a aprovação de nova lei contra o cativeiro dos índios e a jurisdição exclusiva da Junta das Missões sobre os aldeamentos. Em 1682, foi criada, sob a inspiração do jesuíta, a Companhia de Comércio do Maranhão, com capital de cristãos-novos. Entre outros, ela recebeu o monopólio de vender africanos no Maranhão. A companhia resumia uma antiga convicção de Vieira e dos jesuítas, em geral: incentivo à escravidão negra e combate ao cativeiro indígena.

Àquela altura, o religioso vivia novamente no Brasil. Deixara Lisboa em 1681, inconformado com a restauração da Inquisição, e voltou à sua terra de formação, a Bahia de Todos os Santos. Já septuagenário, dedicou-se à publicação do vasto sermonário pregado durante décadas. Recluso na casa do Largo do Tanque.

Nem por isso ficou quieto. Apoiou o irmão Bernardo Ravasco, secretário de Governo do Estado do Brasil, contra o governador Antônio de Sousa Meneses. Era uma disputa política com ares de caso policial, pois Bernardo fora acusado pelo governador de ser o mandante do assassinato de Francisco Teles, alcaide-mor de Salvador, em 1683. Ravasco foi preso e teve seu patrimônio embargado. Em 1687, porém, recuperou bens e cargo por gestão de Vieira junto ao conde de Cadaval, velho aliado.

Nos últimos anos de vida, ainda teve fôlego para esgrimir suas posições sobre assuntos coloniais. Posição rebelde em 1694, ao criticar o acordo feito pelos jesuítas com os administradores de índios em São Paulo. Posição conservadora em 1691, quando condenou a alforria dos quilombolas de Palmares em troca da paz. “Esta mesma liberdade”, escreveu, “seria a total destruição do Brasil”.

Zumbi morreu em 1695, decapitado. Vieira em 1697, com quase 90 anos. Alquebrado mas lúcido, faleceu de morte natural. Seu maior biógrafo, João Lúcio de Azevedo (1855-1933), qualificou o Vieira da última fase como vencido, derrotado nas lutas que enfrentou ao longo da vida. Mas a opinião é inexata. Primeiro, porque perdeu algumas batalhas, mas venceu outras. E sobretudo porque, mais do que vitórias, o que ele mais apreciava era o combate. Soldado de Cristo, jesuíta do rei.

Ronaldo Vainfas é professor da Universidade Federal Fluminense e autor de Antônio Vieira, jesuíta do rei (Companhia das Letras, 2011).

Saiba Mais

AZEVEDO, João Lúcio. História de Antônio Vieira (original de 1921). São Paulo: Alameda, 2008.
AZEVEDO, Silvia Maria & RIBEIRO, Vanessa Costa. Vieira: vida e palavra. São Paulo: Loyola, 2008.
LIMA, Luís Silvério. Padre Vieira: sonhos proféticos, profecias oníricas. São Paulo: Humanitas, 2004.

Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/vieira-o-incansavel
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