29.5.20

LOUCURA REAL: GRANDES NOMES DA REALEZA QUE FORAM VÍTIMAS DE SÉRIOS TRANSTORNOS MENTAIS



De Ivan IV a Maria de Portugal, essas personalidades pagaram um preço alto em vida

BIANCA NUNESCrédito: Wikimedia Commons


Era tarde da noite no palácio de Windsor, na Inglaterra de 1788, quando o rei George III deixou seus aposentos vestindo uma camisola. Com uma fronha fazendo as vezes de chapéu, ele carregava um travesseiro nas mãos, tal qual um bebê recém-nascido. Aos berros, corria pelos corredores e acordava a todos dizendo que Londres estava alagada e que aquele que segurava era o príncipe Octavius, que acabara de nascer.

A cena bizarra já não era mais estranha aos conselheiros reais e membros da corte. Havia anos que a Inglaterra estava sendo governada por um rei debilitado mentalmente, que não reagia a nenhum tipo de tratamento (todos tão loucos quanto o paciente).

Assim como George III, muitos outros soberanos reinaram acometidos por doenças mentais. Alguns, devido à gravidade de seus desequilíbrios, foram obrigados a deixar o trono. Muitas famílias reais, desesperadas, gastaram fortunas em procedimentos médicos inusitados.


George III, por exemplo, foi enrolado em camisa-de-força e passou por tratamentos agressivos, que incluíam incisões no cérebro e uso de fortes purgantes. Capaz de falar sem parar por 60 horas e de engolir a comida sem mastigar, não conseguia manter as mãos quietas e vivia enrolado em lençóis – usava cerca de 40 por dia.

O monarca governou a Inglaterra de 1760 a 1820. Os surtos passaram a ser registrados após sua coroação, aos 30 anos. Aos poucos, ele passou a ter dificuldade de concentração, a falar muitos palavrões e a ficar irritado facilmente. Em 1788, o médico Richard Warren declarou: "Nosso rei está louco". George reinou assim, maluco, até seus derradeiros dias, quando foi isolado numa ala do palácio.

Cômodo: Sede de sangue
Marco Aurélio Cômodo / Crédito: Wikimedia Commons



O imperador romano Marco Aurélio Cômodo (161-192) não gostava de política. No início de seu reinado (180 a 192), deixou o governo sob poder dos conselheiros do pai. Após a morte de dois deles, resolveu assumir o trono, mas entregou-se a um estilo de vida no mínimo exótico: proclamando-se Deus vivo.

Autodenominava-se Ducator orbis, Conditor, Invictus, Amazonianus, Exsuperatorius (Chefe supremo, Líder, Todo-Poderoso, Incrível, Vencedor) e afirmava ser a reencarnação do herói grego Hércules. Em um de seus acessos, mandou trocar a nomenclatura dos meses do ano e abandonou o nome de sua família, obrigando todos a chamá-lo de Hércules, filho de Zeus.


Começou a exibir suas proezas físicas nos jogos públicos. "Provou-se um expoente super entusiasta e sádico de seu papel, pois tinha um apetite tão insaciável por derramamento de sangue e carnificina que suas ações só podem ser vistas como fruto de uma mente doente", escreveu o historiador inglês Vivian Green em A Loucura dos Reis.

Ordenou a seus devotos que cortassem os braços e a sacerdotes que surrassem o próprio peito até sangrar. Nos anfiteatros romanos, de seu camarote privado, Cômodo atirava flechas em suas vítimas. Durante os 14 dias dos jogos flavianos, ele promoveu caças a avestruzes. Sua diversão era cortar a cabeça dos bichos e vê-los correr decapitados. Gostava também de participar de batalhas contra gladiadores jovens, vigorosos e nus. Ai de quem o vencesse.

Na época, o Senado estava letárgico. E o povo, entretido com os espetáculos que Cômodo lhe proporcionava. Mas dentro de sua família havia medo e pânico – todos temiam por suas próprias vidas. Liderados pela amante Márcia, os familiares deram a ele bebida envenenada.

Enquanto o imperador vomitava, um campeão de lutas, Narciso, o estrangulava. Não há registro de que Cômodo tenha sido medicado. "Na época os tratamentos eram à base de banhos termais. A ideia que de os banhos poderiam acalmar os doentes mentais perdurou até o início do século 20", afirma o psiquiatra Walmor Piccinini, da Fundação Universidade Mário Martins, no Rio Grande do Sul.

Carlos VI: o rei de vidroCarlos VI / Crédito: Wikimedia Commons



Carlos VI ascendeu ao trono da França aos 12 anos, em 1380. Novo demais para governar, delegou o poder aos três tios e acostumou-se a não assumir responsabilidades. Em 1392, Carlos soube de uma conspiração para matar um de seus conselheiros. Jurou vingança e organizou uma expedição para lutar contra o duque da Bretanha, responsável pela trama.

Num dia muito abafado de verão, quando se aproximava das fronteiras bretãs, um incidente deu início a uma sequência de episódios que só terminariam com sua morte. Assustado com um barulho de lança, Carlos se imaginou no meio de inimigos e investiu contra seus cavaleiros, matando cinco. Segurado por seus criados, foi levado de volta ao palácio e ficou dois dias em coma.

Quando recuperou a consciência, demorou a falar de maneira coerente e reconhecer as pessoas. Passou a sofrer delírios, esquecendo que era rei da França e de seu matrimônio. Jogava objetos no fogo e urinava na roupa que usava. Por meses, recusou-se a trocar as roupas de baixo, a tomar banho e a fazer a barba – chegou a pegar doenças de pele e piolhos. Relatos do futuro papa Pio II diziam que "ele às vezes acreditava que era de vidro e não podia ser tocado, inseria varetas de ferro em suas roupas e se protegia de muitas maneiras, temendo quebrar-se ao cair".

Em desespero, os médicos reais decidiram tratá-lo com purgações no cérebro (incisões na cabeça para aliviar a pressão, drenando os "fluidos que o corrompiam") e exorcismos com freis agostinianos. Até o susto foi empregado (homens com os rostos pintados de preto entravam em seu quarto e davam um grito). Nada teve resultado. O rei morreu em 1422.

Ivan, o Terrível: o rei da dorIvan IV, conhecido como Ivan, o Terrível / Crédito: Wikimedia Commons



A saga da loucura real russa não perde para nenhuma maluquice da Europa ocidental. Muito pelo contrário. Ivan, o Terrível (1530-1584), que se tornou o primeiro czar da Rússia em 1547, conseguiu deixar uma bela história no currículo do Império.

Sua índole já se manifestava desde criança, quando Ivan se divertia jogando cães e gatos do teto do palácio e arrancando penas de aves enquanto lhes furava os olhos e lhes fendia o corpo. Ivanzinho era um menino inteligente e lia muito. Embora fosse herdeiro do trono (o pai, governante do Grande Reino de Moscóvia, morreu quando ele tinha 3 anos e a mãe assumiu o governo até os 8 anos do filho, quando morreu), não teve vida mansa. Os nobres que cuidavam dele e disputavam o poder o tratavam brutalmente e o deixaram passar fome. Ao ser coroado czar, vingou- se: livrou-se dos aristocratas e executou muitos deles.

Por sua natureza sexualmente promíscua – teve ao todo oito esposas oficiais –, caiu gravemente doente em 1553. Não se sabe exatamente a causa: pode ter sido sífilis ou um ataque de encefalite. Quando se recuperou, viu que a maioria de seus apoiadores tramava contra ele.

A partir daí, ficou obcecado com a possibilidade de traição e instituiu um governo forte e autoritário. Em seus ataques de fúria, arrancava os próprios cabelos e espumava pela boca. Ao ordenar execuções, depois de ouvir os gritos dos prisioneiros sendo torturados, batia a cabeça em penitência, rezando pelos que havia matado.

Aos 35 anos parecia um idoso, com a face enrugada, barba rala e fina e quase calvo. Ivan inaugurou um reinado de terror, ainda que tivesse propósito político. Quando suspeitou que a importante cidade comercial de Novgorod queria a independência da Grande Rússia, saqueou-a e massacrou seus habitantes — muitos foram jogados nas águas congeladas do rio.

O arcebispo da cidade foi o que mais sofreu: costurado dentro de uma pele de urso, foi estraçalhado por uma matilha de cães de caça. Nessa época, Ivan teria adquirido o vício de ingerir mercúrio - ele o consumia frequentemente e mantinha um caldeirão borbulhante em seu quarto. Após a morte do filho, pelo qual foi responsável (numa discussão, ele deu um golpe de bengala de ferro na cabeça do filho, que morreu 11 dias depois), seu estado mental piorou.

Em 1584, adoeceu gravemente: seu corpo inchou e emitia um odor forte, e a pele descamou-se. Não há relato de que ele tivesse sido tratado de alguma doença nessa época. Sua morte foi descrita como "decomposição do sangue" e pode ter sido ocasionada por envenenamento de mercúrio ou por sífilis.

Maria de Portugal: medo do DiaboMaria I / Crédito: Wikimedia Commons



A história de loucura real mais conhecida dos brasileiros é a da rainha portuguesa Maria I, que morreu no Brasil. A mãe de dom João VI assumiu o trono em 1777 e, como fervorosa católica, tratou de dar à Igreja o devido prestígio. Aos 47 anos, começou a ter pesadelos e visões de seu falecido pai. Após a morte do marido, Pedro, seguida pela do filho, José (que a deixou extremamente culpada, pois não o vacinara contra a varíola, doença que o matou), dona Maria piorou.

Seu declínio mental se tornou público no início da década de 1790, aos 56 anos, quando ela teve um surto em um teatro de Lisboa. A doença da rainha tinha caráter religioso. No começo, seus ataques eram curtos e explosivos, com insultos a seus confessores e pavor de crucifixos e de lugares sagrados. Tinha visões do diabo a espionando e achava que estava condenada à perdição eterna. Passou a seguir uma dieta estranha (queria comer apenas ostras com cevada) e falava palavrões de modo incoerente. O desespero da corte com seu estado era grande.

Em 1792, decidiu-se por chamar o médico Francis Willis, que ficara conhecido pelo tratamento de choque com George III, que incluía o uso de camisa-de-força e purgantes. Ao que consta, ele teria recebido a quantia de 20 mil libras esterlinas, o equivalente a aproximadamente 4 milhões de reais atuais, para curá-la, mas não conseguiu reverter a situação. No fim do tratamento, propôs levar a rainha para a Inglaterra como parte de uma jornada terapêutica marítima.

A sugestão foi rejeitada. A Revolução Francesa provocou mais surtos na rainha e, depois de inúmeras tentativas para fazê-la melhorar, dom João, o segundo na linha sucessória do trono, teve de assumir o poder. Em 1799, foi proclamado príncipe regente. No fim de 1807, ela viajou junto com a família para o Brasil, fugindo da invasão napoleônica. Conta-se que, durante o trajeto ao navio real, dona Maria disse a seu cocheiro: "Mais devagar! Ou vão pensar que estamos fugindo!" Aqui ela ficou num antigo convento no Rio de Janeiro até morrer, em 1816.