A execução do filósofo e cientista Giordano Bruno pelas chamas da Inquisição Romana no ano de 1600, foi um dos acontecimentos mais dramáticos da época do Renascimento. Para alguns representou o fim da tolerância da Igreja Católica para com a dissidência representada por alguns sábios, para outros foi o sinal do recomeço dos tempos obscurantistas que opuseram a fé contra a ciência num confronto que não teve mais fim. "Ainda que isso seja verdade, não quero crê-lo; porque não é possível que esse infinito possa ser compreendido pela minha cabeça, nem digerido pelo meu estômago..." A execução de Bruno Talvez, naquele instante derradeiro, ele recordasse as palavras que certa vez escrevera num momento de profunda melancolia: Vejam, prognosticou Bruno, o que acontece a este cidadão servidor do mundo que tem como o seu pai o Sol e a sua mãe a Terra, vejam como o mundo que ele ama acima de tudo o condena, o persegue e o fará desaparecer. Morto aos 52 anos de idade, tornou-se um mártir do livre-pensamento, e um símbolo da intolerância da Contra-Reforma liderada pela Igreja Católica. O processo da Inquisição Uns tempos depois da sua volta à Itália, devido a um áspero desentendimento, Mocenigo trancou-o num quarto da sua mansão e chamou os agentes do tétrico tribunal inquisitorial para levarem-no preso, acusando-o de heresia. Encarceraram-no na prisão de San Castello no dia 26 de maio de 1592. Na primeira vez em que o interrogaram, Bruno conciliou. De nada lhe serviu. Em seguida, o Santo Ofício de Roma, alegando soberania em casos de heresia, exigiu que o Doge, o governante de Veneza, mesmo a contragosto, lhe enviasse Bruno algemado. Enquanto não se deu o translado, além de terem-no torturado, colocaram-no num espantoso calabouço. Era um poço imundo, úmido e escuro como breu, cavado num porão a beira do canal. A viagem a Roma, ainda que a ferros, deve ter-lhe parecido um alivio.
Búrquio, num diálogo de G.Bruno, in"... do infinito, do universo e dos mundos", 1584.
Era o dia 17 de fevereiro de 1600 quando o lúgubre cortejo saindo da prisão da Inquisição, ao lado da Igreja de São Pedro, seguiu pelas ruas de Roma até chegar no Campo dei Fiori, uma praça onde uma enorme pilha de lenhas amontoava-se ao redor de uma estaca fincada no terreno. Era a fogueira que iria abrasar vivo o filósofo Giordano Bruno. Trouxeram-no com uma mordaça na boca por temerem que ele pudesse dirigir algumas palavras perigosas ao povo que se juntava a sua passagem. Ao oferecerem-lhe o crucifixo para o beijo derradeiro, revirou os olhos. Em minutos, ao embalo das preces dos monges de San Giovanni Decollato, o verdugo jogou uma tocha na base da pira que, num instante, devorou-lhe as carnes. Estava feito.Giordano Bruno
Os agentes do Santo Ofício prenderam-no oito anos antes em Veneza, cidade onde o filósofo respondeu ao primeiro processo que a Inquisição lhe moveu. Sabe-se com detalhes deste episódio porque a documentação foi publicada em 1933, por Vicenzo Spampanato (*). Giordano Bruno, que há anos vivia no exterior, teria retornado à Itália em razão de um embuste. Uma dupla de livreiros, atendendo a um desejo de um nobre veneziano chamado Giovanni Mocenigo, ao encontrar Bruno na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, em 1590, convidou-o para vir à cidade dos doges a pretexto de ensinar a mnemotécnica, a arte de desenvolver a memória (tida como atividade mágica, herética), na qual ele era um perito.
"Os padres teólogos", determinou o documento final, "deverão inculcar no dito frade Giordano (Bruno era frei dominicano, mas não mais vinculado à ordem), que suas proposições são heréticas e contrárias à fé católica... Se as rechaçar como tais, se quiser abjurá-las, que seja admitido para a penitência com as devidas penas. Se não, será fixado um prazo de 40 dias para o arrependimento que se concede aos hereges impenitentes e pertinazes. Que tudo isso se faça da melhor maneira possível e na forma devida".
A leitura da sentença
| Cabalística atraiu Bruno |
O temperamento de Giordano Bruno
Estar em Londres ou em Praga, em Wittemberg ou em Paris, era-lhe indiferente. Monge errante e renegado, a corte do rei francês ou um salão de conferências de uma universidade alemã não lhe causava estranheza. Qualquer lugar lhe bastava. Tanto é assim que ficou conhecido por ter dito que: "Al vero filosofo ogni terreno è patria", ao verdadeiro filósofo qualquer terreno é a sua pátria.
Nada, pois, espantar-se em morar ele em Genebra, graduar-se em teologia em Toulouse, e logo ingressar no Colégio dos Leitores Reais de Paris. Não eram só as fronteiras dos reinos e dos principados que ele ignorava. Estar a Europa envolvida na Grande Guerra Civil Teológica travada desde 1517 entre católicos e protestante, não o abalava. Nada viu de mal em ser católico e ao mesmo tempo ingressar numa congregação luterana na Alemanha.
Ele desconfiava dos césares que queriam unificar a Terra dotando-a de uma só lei e uma só fé, deplorando as técnicas que faziam com que os povos se aproximassem exageradamente. A simples existência das montanhas e dos mares, para ele, era uma advertência feita pela natureza para que cada povo fosse mantido no seu devido lugar. Melhor que assim fosse para manter-se a paz. Bruno, enfim, opunha-se à globalização, o que não deixa de ser contraditório para quem queria derrubar os muros que punham limites ao universo, mas aconselhava a manutenção deles aqui na Terra.
A intolerância das Igrejas
| Cosmo de Copérnico |
O Alto Clero Romano, e a corporação sacerdotal em geral, tornara-se, no decorrer do século 16, extremamente sensível às críticas, reagindo com brutalidade contra quem ousasse desafiar-lhe a autoridade ou colocasse em dúvida os seus dogmas. A curiosidade, a bonomia, e a tolerância, com que muitos papas do passado trataram o ceticismo e a incredulidade de muitos homens sábios, desapareceram com a morte de Leão X, em 1521.
Provocada por este clima radical de vida e morte, era natural que a Igreja Católica, como a Reformada, exigissem de todos posições bem definidas, a favor ou contra. Quem se mostrasse ambíguo ou neutro, era potencialmente um inimigo a quem não se concederia nem perdão, nem quartel. Até o grande Erasmo de Roterdã, o maior homem de letras daquele século, que falecera em 1536, e que tentou o quanto pôde manter-se eqüidistante, equilibrando-se entre as duas fés hostis, sofreram a dolorosa experiência de ver-se vilipendiado por ambos as partes.
A utopia de Bruno
Repetindo Marcilio Ficino, o filósofo renascentista que fundara a Academia Platônica, morto em 1499, gostava de lembrar que a cruz era, bem antes da crucificação de Jesus, um símbolo sagrado de Isis, e fora bordada no peito de Serápis. Numa memorável invocação que fez a Asclepius (Esculápio), após descrever o cenário de um mundo melancólico, sofrendo de total inversão, onde "as trevas sepultarão a luz", e só "permaneceriam os anjos perniciosos", Bruno não duvidava que Deus poria fim a tal mancha, "chamando para o novo mundo a sua antiga fisionomia". Isto é, restaurando o culto egípcio.
Ele criticava o cristianismo ter destruído as honoráveis religiões do passado, pois eram tesouros de conhecimentos imemoriais. Vira em Hermes Trimegistro - um imaginário sacerdote egípcio que, pela santidade da sua vida, pela dedicação aos cultos divinos, e majestosa dignidade, consagrara-se como Três Vezes Grande - o fundador da prisca theologia, a teologia antiga, de onde todas as outras derivaram.
A doutrina heliocêntrica de Copérnico, que ele difundiu em incontáveis e sensacionais conferências nos meios acadêmicos europeus, pareceu-lhe, pois, um sinal do inevitável retorno às crenças desaparecidas.
"Persevere, caro, persevere! Não te desencoraje, nem recue jamais porque, com o socorro de múltiplas maquinações e artifícios, o grande e solene senado da ignorância disfarçada, ameaçará e fará destruir o divino empreendimento do teu grandioso trabalho".
Antecipando o livre-pensar
| Galileu |
O mago egípcio
Essas leituras, múltiplas e variadas, fizeram com que o seu vocabulário confundisse muitos dos seus exegetas. Não afetou, porém, o seu magnífico estilo, e, de certo modo, contribuiu para evitar que fizessem dele um dogmático. A abertura dele para tudo o que viesse a somar para o conhecimento, fez com que colocasse, no seu Templo da Sabedoria, além de alguns teólogos não-convencionais, até os povos antigos e místicos diversos, não considerados pelo cristianismo como merecedores de atenção. Talvez, ele fizesse isso, é de supor-se, na intenção de alargar as sensibilidades do conhecimento e atenuar o preconceito contra o passado pagão da humanidade.
Bruno em Shakespeare
Frances Yates, a grande historiadora da ciência, sentiu a imagem espelhada de Bruno em duas figuras de William Shakespeare. Tanto em Berowne, personagem de Love´s labour lost (Trabalhos de Amor Perdido), como na de Próspero, o náufrago da The Tempest (A Tempestade) - o mago bonachão italiano capaz de embasbacar nativos como Caliban, com seus tubos enfumaçados e aparelhos de ensaio(*). Para escândalo dos teólogos, o filósofo não distingia mágica boa da má. Como uma espada, dizia, as artes do ocultismo eram neutras, podendo fazer-se bom ou mau uso do seu fio, era uma linguagem da natureza e não do demônio. Tanto Moisés como Jesus eram grandes magos para ele.
Bruno, no entanto, ao contrário de Shakespeare, reprovou a conquista da América bem como o comércio de ouro e prata que se seguiu. Não atribuía nenhum direito especial no homem branco que o autorizasse a submeter os nativos.
Sobre a conquista do Novo Mundo opinou que ela só servira "para perturbar a paz do próximo, violar as próprias pátrias das regiões, confundir o que a previdente natureza distinguiu, redobrar os defeitos mediante o comércio e agregar vícios aos vícios de cada povo, mediante a violência impor novas loucuras e demências inéditas aonde não existem, mostrando, enfim, ser mais sábio o que é mais forte: ensinar novos cuidados, instrumentos e artes de tirania e assassinar um ao outro" (Ceia..)
Shakespeare, por sua volta, pintou o filósofo na corte de Henrique de Navarra, pondo-lhe na boca um discurso hedonista, sem muito entusiasmo em seguir com rigor a disciplina que o rei, um homem culto e estudioso, desejava impor no seu grupo de estudos ( Ver Cena I, ato I, do Trabalhos de amor perdidos)
A infinitude dos mundos
O mais vasto império de Deus
"Or ecco quello ch´há varcato l´aria, penetrato il cielo, discorse le stelle, trapassati gli margini del mondo, fatte svanir le fantastiche muraglie de le prime, ottave, none, decime, et altre che vi s´avesser potute aggiongere sfere per relazione de vani matematici e cieco veder di filosofi volgari".
("Ora, aquele que cruzou o espaço, penetrando no céu, descortinando as estrelas, ultrapassando as margens do mundo, faz com que desapareçam as fantasiosas muralhas da primeira, oitava, nona, décima, e tantas outras que os maus matemáticos e o beco sem saída da visão dos filósofos vulgares puderam agregar às esferas").
Anos depois da morte de Bruno, Galileu irá transformar esse paradoxo, isto é o Cosmos inteiro existir apenas em função da terra, numa das suas mais sarcásticas afirmações, quando, num dos seus diálogos, faz Sagredo (o próprio Galileu) dizer a Simplicio (um tolo que defende a ortodoxia e o geocentrismo):
"Como assim? Estas afirmando que a natureza concebeu e produziu tantos e tão vastos corpos celestiais, nobres e perfeitos, invariáveis, eternos, divinos, sem nenhum outro propósito que o de servir a esta Terra mutável, transitória e perecível? Servir a isto que chamas os detritos do universo, e esgoto de toda a imundície?" ( Diálogos sobre os dois sistemas do mundo, 1632).
Anunciando os astronautas
(*) Foi o silêncio dos espaços infinitos, de onde não se recolhera ainda nenhuma prova de existências extraterrestres, que, mais tarde, levou Pascal à reflexão sobre a terrível situação em que se encontrava a humanidade, para a qual seria psicologicamente insuportável viver sem Deus. A crença no Ser Supremo era a compensação para a sua solidão absoluta.
As esperanças de Bruno
Na França, entronara-se um novo rei em 1589: Henrique de Navarra. Um homem culto, um renascentista dos pés à cabeça. Ele derrotara a Santa Liga dos católicos, propondo em seguida conciliar as duas religiões rivais (proposta que materializou no Édito de Tolerância de Nanes de 1598). Bruno arriscou. Talvez a Igreja relevasse os tumultos que ele provocara no passado, inclusive sua estada em Wittemberg, a capital da heresia (onde publicamente elogiou Lutero). Afinal, a expectativa otimista que depositara no "efeito Navarra" de se poder dali em diante "viver e pensar livremente", não era só dele. Pagou com a vida pelo engano.
É bem possível que outras razões, além da acusação de heresia, pesaram na decisão das autoridades de levá-lo às chamas numa praça pública de Roma. Um pouco antes, em 1599, Tommaso Campanella, um outro frade napolitano, dominicano como Bruno, liderara uma rebelião dos calabreses contra o domínio espanhol em Nápoles. Campanella propunha, em substituição ao governo estrangeiro, a instalação da Cidade Mágica do Sol (que irá inspirar o seu livro La Città del Sole, escrito na prisão em 1602), uma sociedade utópica inspirada na "República" de Platão. Yates cogita que a execução brutal de Bruno poderia estar de alguma forma relacionada com a insurreição napolitana. Servira de advertência a qualquer tentativa futura de desafio à hierarquia e ao estabelecido. Bruno, é bom lembrar, era também um alvo fácil. Não pertencia a nenhuma corporação acadêmica ou ordem religiosa que intercedesse a seu favor junto à Cúria Romana.
Duas concepções cósmicas rivais
As consequências da morte de Bruno
Um medo sombrio pairou sobre as ações da Igreja Católica. Viram-na como uma instituição capaz de perseguir os doutos e os sábios, caso eles questionassem o Alto Clero e a burocracia papal. Imagem negativa que perdurou até recentemente, quando o Papa João Paulo II desculpou-se pela infelicidade do processo contra Galileu, reabilitando-o em 1992. Porém, até o momento, o Pontificam Consilium Cultura que reabilitou Johann Huss e Galileu, ainda não tomou uma decisão favorável a Giordano Bruno. A Igreja Católica só deplorou a execução, mas não os motivos da sua condenação.
Fonte:http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/2005/08/25/006.htm
