13.6.11

O Horror já não causa mais horror

Os últimos 70 anos trouxeram ao morticínio a planificação burocrática e a execução em escala industrial
por Luiz Marques
Biblioteca do Congresso, Washington
Ruínas remanescentes do bombardeio de Dresden, Alemanha, em fevereiro de 1945
A Segunda Guerra Mundial iniciou-se em 1936 com a guerra civil espanhola, que foi, de fato, uma guerra internacional. O uso pelos alemães de bombas incendiárias contra civis na Espanha prenuncia Dresden, Hiroshima e Nagasaki. Impressiona, contudo, a escalada vertiginosa da atrocidade, a se admitir que esta seja quantificável. Em Guernica, as estimativas vão de 200 a 1.700 mortos. Em fevereiro de 1945, Dresden, a “Florença do Elba”, recebe 7 mil toneladas de bombas que incendeiam a cidade e matam em 15 horas 35 mil civis. Segundo o “U.S. Strategic Bombing Survey” (1945), a aviação britânica despejou na Alemanha 1,35 milhão de toneladas de bombas, causando mais de 300 mil mortos e 780 mil feridos. Em 6 de agosto de 1945, em Hiroshima, a bomba de urânio 235, carinhosamente chamada pelos americanos de “Little Boy”, mata em horas 70 mil civis e continua matando outros 200 mil até o final do século XX. Três dias depois, “Fat Man”, de plutônio 239, é experimentada em Nagasaki, com um saldo imediato de 40 mil mortos e 120 mil até o final do século.

Ninguém desconhece essas cifras. Relembro-as apenas para observar como elas parecem módicas ao lado do que testemunhamos nos últimos 50 anos. Entre 1965 e 1973, os Estados Unidos despejaram no pequeno Vietnã 8 milhões de toneladas de bombas, três vezes mais que todos os bombardeios da Segunda Guerra Mundial e o equivalente a 300 toneladas por vietnamita, além de 72 milhões de litros de substâncias químicas letais, que ainda hoje afetam 650 mil pessoas, segundo um relatório de 2003. Além disso, o conhecimento mais circunstanciado dos campos nazistas e soviéticos, Suharto na Indonésia, Pol Pot no Camboja, os genocídios dos curdos e da ex-Iugoslávia, Ruanda, a Chechênia, o Sudão, o Chile, a Argentina, Israel e, de novo, os americanos no Laos (2 milhões de toneladas de bombas), Guatemala, Nicarágua, Afeganistão, Iraque e alhures (além da cumplicidade da CIA em alguns dos massacres acima referidos) tornaram o horror corriqueiro, e banal a idéia da ferocidade humana.

Obviamente o binômio guerra / atrocidade sempre existiu. Mas a “contribuição” dos últimos 70 anos (1937-2007) é específica, já que trouxe ao morticínio a planificação burocrática e a execução em escala industrial. Pode-se dizer, ademais, que nos últimos 20 anos emergem duas outras novidades: 1. a indiferença: os Horrores da guerra, de Goya, Guernica, de Picasso e Apocalypse now, de Coppola parecem definitivamente coisa do passado. Talvez por efeito de saturação e de superexposição à imagem (ao reality show), o Horror, em suma, não causa mais horror; 2. a percepção de que a atrocidade está ao alcance de todos. Não é mais prerrogativa de mentes monstruosas. As experiências de Philip Zimbardo (Stanford, 1971) e de Stanley Milgram (Yale, 1974) mostraram que pessoas “normais” tornam-se facilmente implacáveis torturadores. Dr. Jekyll não precisa mais de sua poção para se transformar em Mr. Hyde. Dormita em cada um de nós alguém que admitíamos existir somente no outro.
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