Por 1. Introdução As primeiras noções de patrimônio histórico e artístico remontam ao século XVIII. Até então, as ações voltadas diretamente a preservação de monumentos eram bastante esporádicas e visavam apenas a conservação dos bens de clérigos e aristocratas. Em 1789, com o advento da Revolução Francesa, observa-se uma mudança neste cenário. Quando o clero e a nobreza são derrubados do poder, o povo tenta destruir os seus (agora confiscados) bens, como forma de rechaço ao modelo opressor vigorante até o momento. Desse modo, o novo Governo estabelecido tenta regular a proteção de tais bens, pautado na idéia de que a memória de um Estado se conservava mediante a preservação de depoimentos concretos de seu processo histórico de formação: os bens imóveis e as obras de arte. No caso do Brasil, as preocupações com a preservação do patrimônio cultural apareceram ainda no final dos anos 10 do século XX, por conta da evasão de bens e obras de arte para outros países. No entanto, é nos anos 20 (década da Semana de 22, das discussões modernistas de "projeto de nação") que surgem na esfera política as primeiras tentativas de traçar instrumentos legais para preservação, tais como os projetos de Luiz Cedro (1923), Augusto Lima (1924) e Jair Lins (1925). Mas é com a Revolução de 30, a qual conduz Getúlio Vargas ao poder, que as questões referentes à identidade nacional assumem papel de destaque. E é a partir de então que se iniciam oficialmente as políticas públicas destinadas a preservação do patrimônio histórico e artístico: data de 1933 a primeira norma federal em que o governo toma a iniciativa de uma política preservacionista. Trata-se do Decreto nº 22.928, que elevou a cidade de Ouro Preto à categoria de monumento nacional. Em 1934, o governo cria a Inspetoria dos Monumentos Nacionais, ligada diretamente ao Museu Histórico Nacional, destinada a impedir que objetos antigos representativos para a história nacional deixassem o país, bem como a evitar a destruição de obras monumentais nas reformas urbanas. No ano seguinte, foi criado o Departamento Municipal de Cultura da cidade de São Paulo, tendo em Mário de Andrade a figura de seu primeiro diretor. 2. O anteprojeto de Mário de Andrade Em 1936, por solicitação do ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, Mário de Andrade redige o anteprojeto da lei de proteção ao patrimônio cultural, no qual propõe a criação do SPAN (Serviço do Patrimônio Artístico Nacional). No documento, pelas definições de Mário, "Entende-se por Patrimônio Artístico Nacional todas as obras de arte pura ou de arte aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes aos poderes públicos, a organismos sociais e a particulares nacionais, a particulares estrangeiros, residentes no Brasil." (grifo nosso) "Entende-se por obra de arte patrimonial, pertencente ao Patrimônio Artístico Nacional, todas e exclusivamente as obras que estiverem inscritas, individual ou agrupadamente, nos quatro livros de tombamento. Essas obras de arte deverão pertencer pelo menos a uma das oito categorias seguintes: Esclarece ainda que: "Arte é uma palavra geral, que neste seu sentido geral significa a habilidade com que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos." (grifo nosso) Verdadeiro visionário, Mário de Andrade enxergou claramente a riqueza das expressões e manifestações culturais e a importância da diversidade. Seu amplo conceito de patrimônio estava à frente das concepções culturais da época. Em seu ousado anteprojeto, são propostos quatro livros de tombo, abrigando oito categorias de classificação e tratando de bens tangíveis e intangíveis. 3. O decreto-lei nº 25 de 25/11/1937 No final do ano de 1937, já no Estado Novo, o instituto jurídico do tombamento é finalmente instaurado no Brasil, por meio do decreto-lei de nº 25. Promulgada por Vargas, a norma que estabelece o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) apresenta, no entanto, diferenças importantes em relação ao texto do anteprojeto de Mário de Andrade. Apresenta-se: "Capítulo I Do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Artigo 1º – Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dosbens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. §1º – Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o Art. 4º desta lei." (grifos nossos) "Artigo 4º – O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá quatro Livros do Tombo, nos quais serão inscritas as obras a que se refere o art. 1º desta lei, a saber: 1º) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas no §2º do citado art. 1º; 2º) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interesse histórico e as obras de arte históricas; 3º) no Livro do Tombo das Belas-Artes, as coisas de arte erudita nacional ou estrangeira; 4º) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras. Como se verifica, o conceito de patrimônio utilizado no texto legal é mais reducionista que o do anteprojeto: fala-se apenas de bens móveis e imóveis, descuidando-se dos bens de natureza imaterial. Ou seja, para solicitar a proteção legal há que se referir a coisas, não sendo possível o tombamento dos saberes e manifestações folclóricas, por exemplo. 4. A Constituição de 1988 e a Carta de Fortaleza Com o fim da ditadura militar, é promulgada, em 1988, uma nova Constituição no país, tratando especificamente da cultura em seus artigos 215 e 216. Encontramos: "Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. §1º – O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação." (grifos nossos) A nova carta constitucional revê o conceito de patrimônio cultural, e o aumenta: trata também do bens imateriais, fala nas formas de expressão e nos modos de criar, fazer e viver. Nesse novo contexto, faz-se necessário regulamentar as novas formas de proteção ao patrimônio intangível. Quase dez anos depois, em 1997, em comemoração aos seus sessenta anos, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) promove o seminário "Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas de Proteção". No evento, é redigida a Carta de Fortaleza que, dentre outras recomendações, solicita: "Que seja criado um grupo de trabalho no Ministério da Cultura, sob a coordenação do IPHAN, com a participação de suas entidades vinculadas e de eventuais colaboradores externos, com o objetivo de desenvolver os estudos necessários para propor a edição de instrumento legal, dispondo sobre a criação do instituto jurídico denominado registro, voltado especificamente para a preservação dos bens culturais de natureza imaterial;" (grifo nosso) No ano seguinte, é instituído o GTPI, Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. 5. O decreto nº 3.551 de 04/08/2000 A norma que institui o registro de bens culturais de natureza imaterial é finalmente promulgada no último ano do século XX: trata-se do decreto federal nº 3.551. Neste dispositivo, são criados mais quatro livros destinados a proteção do patrimônio cultural brasileiro, para se somarem aos outros quatro de 1937. "Artigo 1º – Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro. § 1º Esse resgistro se fará em um dos seguintes livros: I – Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; II – Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; III – Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; IV – Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas." (grifo nosso) Vale notar que, num dos parágrafos do seu artigo primeiro, o decreto também prevê a possibilidade da criação de novos livros de registro se fazer necessária. Tal fato é de suma importância, dado o caráter dinâmico dos bens imateriais. "§3º Outros livros de registro poderão ser abertos para a inscrição de bens culturais de natureza imaterial que constituam patrimônio cultural brasileiro e não se enquadrem nos livros definidos no parágrafo primeiro deste artigo." 6. Conclusão Na elaboração de seu anteprojeto, Mário de Andrade demonstrou enorme conhecimento da vastidão cultural brasileira. E a forma como ele pretendia protegê-la, mostra o quanto ela lhe era cara. Revolucionário, ao propor a preservação do patrimônio imaterial, ele anteviu questões que os demais só viriam a tratar depois de passado mais de meio século. Tristemente, seu inovador posicionamento não encontrou respaldo político e o decreto aprovado em 1937 não constituiu mais do que uma versão "empobrecida" de seu anteprojeto. Os aspectos imateriais da cultura brasileira foram deixados de fora do decreto-lei nº 25. Em 1988, a nova Constituição brasileira alargou o conceito de patrimônio, tocando no assunto dos bens imateriais, abrindo caminho para a modernização de nosso sistema preservacionista. Finalmente, em 2000, foi instituído o registro de bens culturais de natureza imaterial e a criação de quatro novos livros de tombo, por meio do decreto nº 3.551. Embora a proteção aos bens intangíveis pudesse ter começado ainda na primeira metade do século XX, o Brasil está na vanguarda mundial no que se refere a proteção de seu patrimônio imaterial. Em 2006, foi eleito, com mandato de dois anos, integrante do Comitê de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO, ao qual compete orientar a elaboração das listas dos bens que serão considerados patrimônio cultural imaterial da humanidade e dos bens culturais imateriais em risco. 7. Bibliografia CHAGAS, Mário. Há uma gota de sangue em cada museu: a ótica museológica de Mário de Andrade. In: Cadernos de Sociomuseologia, nº 13/1998, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. (Dissertação) CORRÊA, Alexandre Fernandes. Mudanças no paradigma preservacionista clássico: reflexões sobre patrimônio cultural e memória étnica. DUARTE, Paulo Sérgio. Duas ou três coisas que você deveria saber sobre patrimônio cultural. In: Reprodução UCAM. MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Cultura, tradição e patrimônio Imaterial. In: debate apresentado à Mesa-Redonda "A cultura popular e a tradição oral", realizada em Mossoró – RN, em 31/08/2006. MALVERDES, André. A lei do patrimônio imaterial e a cultura popular no Brasil: o caso das paneleiras de barro em Goiabeiras Velha, Vitória do Espírito Santo. MANZATO, Maria Cristina Biazão. Proteção ao patrimônio cultural brasileiro: o tombamento e os critérios de reconhecimento dos valores culturais. (Tese) PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Origem da noção de preservação do patrimônio cultural no Brasil. In: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, 2/2006, EESC-USP. RODRIGUES, Marly. De quem é o patrimônio: um olhar sobre a prática preservacionista de São Paulo. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 24, p. 195-203, 1996. TELLES, Mário Ferreira de Pragmácio e COSTA, Rodrigo Vieira. Direitos culturais: aspectos jurídicos do registro de que trata o decreto 3.551/2000. In: trabalho apresentado no III ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, realizado entre 23 e 25 de maio de 2007, na Faculdade de Comunicação/UFBA, Salvador. VIANNA, Letícia C. R. e TEIXEIRA, João Gabriel L. C. Patrimônio imaterial, performance e identidade. In: Concinnitas, ano 9, volume1, número 12, julho de 2008.
Bruno Couto de Oliveira;
Luzimar Valentim e;
Simone dos Santos Almeida Serra.
1.8.11
Considerações Sobre A Proteção Ao Patrimônio Histórico No Brasil
Fonte: