O Patrimônio Histórico no Brasil e o projeto Modernista: a política de preservação do Patrimônio Histórico Brasileiro. BASTOS, Paulo Roberto da Silva RESUMO: Há uma preocupação mundial em preservar os patrimônios históricos da humanidade, através de leis de proteção e restaurações que possibilitam a manutenção das características originais. A institucionalização do patrimônio nasce no final do século XVIII, com a visão moderna de história e de cidade. A preocupação com a valorização do patrimônio brasileiro inicia-se com os intelectuais modernistas, oriundos do movimento cultural denominado "Semana de 22". O Modernismo representava a busca de uma identidade cultural brasileira. O Brasil necessitava de uma identidade, e esta seria histórica, etnográfica e seus elementos formariam aquilo que se denominava Patrimônio Histórico. Uma política de preservação só se mostra correta e conseqüente quando, além de contemplar medidas referentes à memória de um povo, baseia-se mais amplamente em uma concepção que integra as questões sócio-econômicas, técnicas, artísticas e ambientais, articulando-as com as questões de qualidade de vida, meio ambiente e cidadania. ABSTRATC: There is a worldwide concern in preserving the historical heritage of mankind, through laws to protect and restore that enable the maintenance of the original features. The institutionalization of the heritage born in the late eighteenth century, with the modern view of history and city. The concern with the appreciation of Brazilian heritage begins with the modernist intellectuals, coming from the cultural movement called "Semana de 22". Modernism represented the search for a Brazilian cultural identity. The Brazil needed an identity, and this would be historic, ethnographic and its elements would form what was called Heritage. A policy of preservation only correct and consequently shows when, and include measures relating to the memory of a people is based more extensively on a design that integrates the socio-economic, technical, artistic and environmental issues, linking them with issues of quality of life, environment and citizenship. INTRODUÇÃO: Há uma preocupação mundial em preservar os patrimônios históricos da humanidade, através de leis de proteção e restaurações que possibilitam a manutenção das características originais. Mundialmente, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Cultura, Ciência e Educação) é o órgão responsável pela definição de regras e proteção do patrimônio histórico e cultural da humanidade. No Brasil, existe o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Este órgão atua na gestão, proteção e preservação do patrimônio histórico e artístico. A preservação da memória de um povo está diretamente relacionada à conservação de seu patrimônio cultural. A institucionalização do patrimônio nasce no final do século XVIII, com a visão moderna de história e de cidade. A idéia de um patrimônio comum a um grupo social, definidor de sua identidade e enquanto tal merecedor de proteção perfaz-se através de práticas que ampliaram o círculo dos colecionadores e apreciadores de antiguidades e se abriram a novas camadas sociais: exposições, vendas públicas, edição de catálogos das grandes vendas e das coleções particulares. O monumento histórico foi preservado durante três séculos sob a forma de ilustrações em livros. Só no século XVIII com o advento da Revolução Francesa e da Revolução Industrial é que começou a se pensar na preservação do patrimônio histórico in situ (CHOAY, 2001). Um dos primeiros atos jurídicos da Constituinte francesa de 02 de outubro de 1789 foi colocar os bens do clero "à disposição da nação". Vieram em seguida os dos emigrados, depois os da Coroa. Assim, a idéia de nação veio garantir o estatuto ideológico do patrimônio e foi o Estado Nacional que assegurou, através de práticas específicas, a sua preservação. O surgimento das idéias de direitos dos cidadãos, de representação, de república democrática foi o fundamento para a mudança conceitual do patrimônio, que se inseriu em um projeto mais amplo de construção de uma identidade nacional e passou a servir ao processo de consolidação dos estados-nação modernos (Fonseca apud Santos, 2001). Podemos então, entender que o Patrimônio Histórico é mais que um testemunho do passado, é um retrato do presente, uma expressão das possibilidades políticas dos diversos segmentos sociais, expressas em grande parte pela herança cultural, dos bens que materializam e documenta sua presença, sua marca no fazer histórico da sociedade. "O patrimônio Histórico é uma vertente particular da ação desenvolvida pelo poder público para a instituição da memória social. O patrimônio se destaca dos demais lugares de memória uma vez que o reconhecimento oficial integra os bens a este conjunto particular, aberto às disputas econômicas e simbólicas que o tornam um campo de exercício de poder." (RODRIGUES. 1996. p.195) O PATRIMÔNIO HISTÓRICO BRASILEIRO E O PROJETO MODERNISTA A preocupação com a valorização do patrimônio brasileiro inicia-se com os intelectuais modernistas, oriundos do movimento cultural denominado "Semana de 22", destacando-se Mario de Andrade e Lúcio Costa, os quais exerceram papel determinante na criação e funcionamento da agência nacional de proteção. O Modernismo "representou um esforço de penetrar mais fundo na realidade brasileira" (BOSI, 1994. p. 332), representava a busca de uma identidade cultural brasileira. O Brasil necessitava de uma identidade, e esta seria histórica, etnográfica e seus elementos formariam aquilo que se denominava Patrimônio Histórico. É interessante observar que contraditoriamente, os modernistas, que buscavam novos parâmetros para a cultura, elegem como patrimônio cultural a ser protegido apenas as edificações e monumentos de pedra e cal, representativos do país colonial, escolhendo os sítios e monumentos setecentistas como símbolo das nossas raízes sócio-culturais, o nosso lastro de identidade nacional. A corrente de modernistas defendia a arquitetura colonial e as artes barrocas como símbolo da identidade cultural brasileira. Para eles a arquitetura colonial representava um estilo genuinamente brasileiro e fonte de inspiração para uma moderna arquitetura autenticamente brasileira, valorizando a relação passado-futuro. A história da preservação do patrimônio histórico brasileiro se reveste desde o seu início, de interesses políticos de uma classe dominante. Em 1936, por solicitação do ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, Mário de Andrade redige o anteprojeto da lei de proteção ao patrimônio cultural, no qual propõe a criação do SPAN (Serviço do Patrimônio Artístico Nacional). Verdadeiro visionário, Mário de Andrade coloca em destaque em seu texto a riqueza das expressões e manifestações culturais e a importância da diversidade. Seu amplo conceito de patrimônio estava à frente das concepções culturais da época conforme mostra a Tabela 1. Tabela 1: Anteprojeto da lei de proteção ao patrimônio cultural - Mário de Andrade - 1936 "Entende-se por obra de arte patrimonial, pertencente ao Patrimônio Artístico Nacional, todas e exclusivamente as obras que estiverem inscritas, individual ou agrupadamente, nos quatro livros de tombamento. Essas obras de arte deverão pertencer pelo menos a uma das oito categorias seguintes: I Arte arqueológica; II Arte ameríndia; III Arte popular; IV Arte histórica; V Arte erudita nacional; VI Arte erudita estrangeira; VII Artes aplicadas nacionais; VIII Artes aplicadas estrangeiras. A promulgação do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico brasileiro e instituiu o instrumento do tombamento. Criou-se o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Na realidade, a política preservacionista brasileira data do início do século XX, com a criação da Inspetoria de Monumentos Nacionais, em 1934, iniciativa pioneira do poder público no sentido de institucionalizar uma ação de proteção do patrimônio cultural brasileiro. Desde então, 676 bens arqueológicos, etnográficos, paisagísticos e históricos estão catalogados nos livros de tombo do órgão federal; outras centenas estão em tese protegidos pelos institutos estaduais e municipais. Porem, o processo de tombamento nem sempre é garantia de perpetuidade dessa memória, que muitas vezes se desfaz pela falta de incentivos públicos e privados. Inicialmente, a categoria do patrimônio que mereceu a atenção foi a que se relaciona mais diretamente com a vida de todos, o patrimônio histórico representado pelas edificações e objetos de arte. Paulatinamente, ocorre a passagem da noção de patrimônio histórico para a de patrimônio cultural, de tal modo que uma visão inicial reducionista que enfatizava a noção do patrimônio nos aspectos históricos consagrados por uma historiografia oficial foi-se projetando até uma nova perspectiva mais ampla que incluiu o "cultural", incorporando ao "histórico" as dimensões testemunhais do cotidiano e os feitos não-tangíveis. A Constituição de 1988 estabelece no seu artigo 216 que "Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem, conforme a tabela abaixo: Tabela 2: Patrimônio Cultural Brasileiro – Constituição de 1988; art. 216 I as formas de expressão II os modos de criar, fazer e viver III as criações científicas, artísticas e tecnológicas IV as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais V os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico Devido também à sua herança escravista, no Brasil, os objetos considerados dignos de preservação estiveram, até recentemente, relacionados à colonização, às classes proprietárias, aos brancos com acessos às faculdades e à cultura européia, tida como modelo, confirmando a ideologia dominante do branco. Nesse sentido é justificável a distância e a falta de identificação entre o patrimônio cultural e a maioria da população brasileira que não consegue se reconhecer em tais monumentos: Temos hoje uma gama de lugares construídos a partir de concepções de memória, de história e de patrimônio, que encerram ou encobrem disputas e falam a respeito de um passado que quer se fazer homogêneo, mas que não pertence a todos, que não traduzem um sentimento de pertencimento a todos, portanto, não respaldam um projeto de cidadania." (OLIVEIRA, 2002. p. 50) POLÍTICA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO BRASILEIRO Uma política de preservação só se mostra correta e conseqüente quando, além de contemplar medidas referentes à memória de um povo, baseia-se mais amplamente em uma concepção que integra as questões sócio-econômicas, técnicas, artísticas e ambientais, articulando-as com as questões de qualidade de vida, meio ambiente e cidadania. Além disso, há que se considerar a dinâmica da história em sua característica de "agregação do trabalho humano a um suporte material", a necessidade de desenvolvimento dos assentamentos humanos e a importância da contribuição de cada geração, dentro de um conceito de desenvolvimento sustentado e respeito a todas as gerações e à própria história. A integração do patrimônio ao cotidiano das pessoas e às suas celebrações faz com que este exerça sua força geradora de identidade étnica, de valorização ética e de referência cultural. No conjunto de bens culturais produzidos pela humanidade, a arquitetura constitui um testemunho excepcional na formação da memória histórica dos povos e, na formação da identidade. Ela é um testemunho sedimentado e acumulado dos modos de vida do homem, não só daqueles que a conceberam na origem, mas também dos que ali viveram através dos tempos e lhe conferiram novos usos e significados. A arquitetura é carregada de sentimentos de gerações, acontecimentos públicos, tragédias, fatos novos e antigos. Algumas obras arquitetônicas alcançam o valor de monumentos, seja por seu valor intrínseco ou por sua situação histórica (ROSSI, GUTIÉRREZ, 1989). Preservá-las e incorporá-las na vida da cidade, no plano urbanístico, é um desafio para os gestores do urbanismo nas cidades. A preservação e conservação do patrimônio histórico na cidade moderna é um grande desafio, porém, a cidade moderna não pode se agregar e funcionar a não ser a custa, pelo menos em parte, da cidade antiga. A condição de sobrevivência dos núcleos antigos remanescentes é determinada pela solução urbanística e pelos critérios tomados na cidade. A cidade deve ser pensada em seu conjunto, antiga e moderna, não se pode admitir que ela conste de uma parte histórica com valor qualitativo, e de uma parte não-histórica com caráter puramente quantitativo (ARGAN, 1998). Neste caso, o Estado torna-se o grande zelador do patrimônio cultural de seu povo. Assim, além das tarefas de fiscalização e do estabelecimento de medidas legais de proteção, é importante o entendimento do Estado como incentivador, fomentador, definidor de referências técnicas de excelência, irradiador e criador de oportunidades de acontecimento e financiamento, difusor de métodos e ações de proteção, apoiando e orientando os agentes culturais, instituições e comunidades até mesmo para uma maior abrangência e eficiência de suas ações. CONCLUSÃO: O que se faz necessário hoje é uma política de preservação que assegure a continuidade dos elementos vitais para a sociedade, que tenha como uma das metas a melhoria da qualidade de vida e acima de tudo que tenha a participação da população. Gutiérrez considera que "a participação da população é o ponto essencial para que essa política tenha êxito com o tempo. Só se conserva aquilo que se utiliza, e os novos usos dos espaços asseguram a continuidade de respostas adequadas às novas necessidades, dentro da evolução da cidade" (GUTIÉRREZ, 1989. p. 129). A população precisa e deve ser integrada na discussão da preservação para que a mesma construa uma identidade com o patrimônio cultural e conseqüentemente se torne aliada dos gestores na proteção e na vigia dos bens. O maior risco do patrimônio histórico brasileiro é perder a relevância social. O patrimônio só faz sentido se tem ressonância para a população. Nossas cidades não são locais onde apenas se ganha dinheiro, não se resumem em ser apenas dormitório para seus habitantes. Nela vivem seres humanos que possuem memória própria e é parte integrante da nossa história. A memória coletiva das cidades serve para transmitir às gerações posteriores os episódios históricos que neles tiveram lugar e também como referência urbana e arquitetônica para o nosso momento atual. Preservá–los não só para os turistas tirarem fotos ou para mostrar aos nossos filhos e netos, mas para que as gerações futuras possam sentir "in loco" a visão de uma cidade humana e como se vive nela. Entretanto, acredito que não se pode cobrar de um povo consciência cultural quando lhe é negado um direito previsto até mesmo na constituição de seu país, o direito de uma educação de qualidade gratuita. No caso do patrimônio histórico brasileiro poucos conhecem o seu valor, a sua importância para o cenário cultural do país, devido à falta de instrução, e outros que até admiram a beleza histórica dos mesmos não sabem como preservá-los ou como exigir de seus dirigentes atitudes mais significativas no que tange à sua salvaguarda. O ideal seria que se iniciasse o processo de sensibilização dos cidadãos no princípio de sua formação, no início de sua vida escolar, pois é nessa fase que são formados conceitos essenciais sobre o que realmente importa para uma vida social equilibrada. O que se observa, é que preservar parece não estar em sintonia com a realidade brasileira. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1998. BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 38 ed. São Paulo: Cultrix, 1994. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Editora UNESP, 2001. GUTIÉRREZ, Ramón. Arquitetura latino-americana: textos para reflexão e polêmica. São Paulo, Nobel, 1989. p. 129. OLIVEIRA, Almir Félix Batista de. Memória, história e patrimônio histórico: políticas públicas e a preservação do patrimônio histórico. Recife: UFPE, 2002 (Dissertação de Mestrado em História). RODRIGUES, Marly. De Quem é o Patrimônio? Um olhar sobre a prática preservacionista em São Paulo. In. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, 1996. ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1995; GUTIÉRREZ, Ramón. Arquitetura latino-americana: textos para reflexão e polêmica. São Paulo, Nobel, 1989. SANTOS, Cecília R. Novas Fronteiras e Novos Pactos para o Patrimônio Cultural. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, 2001. Fonte:
"Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: