Nos tempos da monarquia brasileira, um sistemafalho e segregacionista ajudava os cidadãos a elegerem seus deputadose senadores
Temos a impressão de que a conquista do voto é fato consumado e que nada, além da limitação por causa da idade, pode impedir alguém de exercer esse direito. Não é bem assim. Mesmo nesses primeiros anos do século 21, encontramos situações em que parte das pessoas não possui o direito de voto(veja o quadro “Urnas fechadas”). Mas, certamente, ele é hoje muito mais amplo que em qualquer época da história – e essa conquista se deu especialmente na virada do século 19 para o século 20.
A situação durante o Império é um bom exemplo. Algumas características daqueles tempos eram diretamente conseqüentes da realidade brasileira. Outras obedeciam a um cenário mundial. Como no sistema de voto censitário, no qual somente quem tivesse renda acima de certo valor poderia votar. De fato, a restrição econômica do voto era algo comum na maior parte dos países. França, Inglaterra, Estados Unidos... todos possuíam essa regra em seus sistemas eleitorais. O argumento era o de que um homem pobre fatalmente venderia seu voto a um homem rico. Assim, para que as eleições fossem o mais corretas possível, melhor seria apenas os ricos votarem.
Essa idéia encontrou respaldo no Brasil do século 19, ainda que tenha sofrido algumas alterações. A primeira delas foi a adoção, em parte, do modelo francês criado com a Revolução de 1789: uma espécie de hierarquização do eleitor. Ou seja, na hora do voto os indivíduos teriam pesos diferentes.
No dia designado pela Câmara, as pessoas maiores de 20 anos reuniam-se nas paróquias determinadas e escolhiam os eleitores. Eles, por sua vez, deveriam ter 25 anos de idade e ganhar no mínimo 100 mil-réis anualmente. Além disso, para cada cem casas era escolhido um eleitor. Os eleitores, por sua vez, deviam indicaros votantes, pessoas com mais de 25 anos de idade com ganhos iguais a ou acima de 200 mil-réis. Por fim, os votantes escolhidos dirigiam-se a uma cidade ou vila previamente indicada e votavam nos deputados.
Iguais, mas diferentesO voto era sempre aberto: as pessoas anotavam na cédula o nome do candidato e assinavam. No caso dos analfabetos, indicavam o candidato e o nome era anotado por outra pessoa, com testemunhas. As cédulas eram feitas pelos candidatos, pois não havia uma Justiça Eleitoral no período. E o voto não era obrigatório.
Aquele processo aparentemente confuso e longo – pois durava em torno de dois meses ou mais – produzia efeitos que foram se entranhando na sociedade. Um deles era a contradição constante na qual a população vivia. Qualquer pessoa podia recorrer à Justiça (e, paradoxalmente, ao longo do século 19, até mesmo os escravos procuravam a Lei) buscando algum direito, oque dava certa sensação de igualdade social. Mas, na hora em que seriam escolhidos os representantes, revelava-se de forma crua a hierarquia social. Alguns valiam mais do que outros. Dito de maneira clara, todos eram iguais, exceto no momento de definir quem faria parte do poder político.
Temos a impressão de que a conquista do voto é fato consumado e que nada, além da limitação por causa da idade, pode impedir alguém de exercer esse direito. Não é bem assim. Mesmo nesses primeiros anos do século 21, encontramos situações em que parte das pessoas não possui o direito de voto(veja o quadro “Urnas fechadas”). Mas, certamente, ele é hoje muito mais amplo que em qualquer época da história – e essa conquista se deu especialmente na virada do século 19 para o século 20.
A situação durante o Império é um bom exemplo. Algumas características daqueles tempos eram diretamente conseqüentes da realidade brasileira. Outras obedeciam a um cenário mundial. Como no sistema de voto censitário, no qual somente quem tivesse renda acima de certo valor poderia votar. De fato, a restrição econômica do voto era algo comum na maior parte dos países. França, Inglaterra, Estados Unidos... todos possuíam essa regra em seus sistemas eleitorais. O argumento era o de que um homem pobre fatalmente venderia seu voto a um homem rico. Assim, para que as eleições fossem o mais corretas possível, melhor seria apenas os ricos votarem.
Essa idéia encontrou respaldo no Brasil do século 19, ainda que tenha sofrido algumas alterações. A primeira delas foi a adoção, em parte, do modelo francês criado com a Revolução de 1789: uma espécie de hierarquização do eleitor. Ou seja, na hora do voto os indivíduos teriam pesos diferentes.
No dia designado pela Câmara, as pessoas maiores de 20 anos reuniam-se nas paróquias determinadas e escolhiam os eleitores. Eles, por sua vez, deveriam ter 25 anos de idade e ganhar no mínimo 100 mil-réis anualmente. Além disso, para cada cem casas era escolhido um eleitor. Os eleitores, por sua vez, deviam indicaros votantes, pessoas com mais de 25 anos de idade com ganhos iguais a ou acima de 200 mil-réis. Por fim, os votantes escolhidos dirigiam-se a uma cidade ou vila previamente indicada e votavam nos deputados.
Iguais, mas diferentesO voto era sempre aberto: as pessoas anotavam na cédula o nome do candidato e assinavam. No caso dos analfabetos, indicavam o candidato e o nome era anotado por outra pessoa, com testemunhas. As cédulas eram feitas pelos candidatos, pois não havia uma Justiça Eleitoral no período. E o voto não era obrigatório.
Aquele processo aparentemente confuso e longo – pois durava em torno de dois meses ou mais – produzia efeitos que foram se entranhando na sociedade. Um deles era a contradição constante na qual a população vivia. Qualquer pessoa podia recorrer à Justiça (e, paradoxalmente, ao longo do século 19, até mesmo os escravos procuravam a Lei) buscando algum direito, oque dava certa sensação de igualdade social. Mas, na hora em que seriam escolhidos os representantes, revelava-se de forma crua a hierarquia social. Alguns valiam mais do que outros. Dito de maneira clara, todos eram iguais, exceto no momento de definir quem faria parte do poder político.
O voto censitário
Um segundo aspecto sobre o sistema eleitoral do Brasil-Império diz respeito à renda de 100 mil-réis anuais para uma pessoa se transformar em eleitor. A quantia era pouca, e qualquer trabalhador tinha condições de recebê-la.
Com isso, aconteceu algo, no mínimo, curioso.
Em 1872, ano do primeiro censo populacional do país, o Brasil possuía aproximadamente 10 milhões de habitantes. Desses, 3 milhões eram escravos. Nas eleições da primeira metade da década de 1870, foram registrados por volta de 1 milhão de eleitores, algo em torno de 13,5% da população. Isso dava a entender que o País era a maior democracia do Ocidente. Para efeito de comparação, votava na Inglaterra 4% da população; nos Estados Unidos, por volta de 3,5%; e na França, algo entre 4% e 5%. Se percentual de participação eleitoral fosse sinônimo de democracia, o Brasil estava na liderança. Uma democracia... com escravos! Coisas do Brasil.
Ainda falando dos tais 100 mil-réis, vejamos como era constatada a renda necessária para ganhar o direito ao voto. Era simples: a pessoa dizia ao mesário na paróquia que ganhava tanto, e só. Não existia carteira de trabalho ou nota fiscal. Era pela pura e simples experiência cotidiana que se sabia o quanto poderia ganhar uma pessoa: ninguém conferia nada!
Esse jeitinho brasileiro funcionou até 1875, quando a lei Saraiva- Cotegipe determinou que os rendimentos deveriam ser comprovados. O resultado foi o seguinte: de 13,5% de participantes no processo eleitoral, caímos para menos de 1%. O índice anterior seria novamente igualado nas eleições de 1946.
Mulheres de foraVamos para um dos mais confusos itens do sistema eleitoral do Império: o voto feminino. Se alguém perguntasse“Mulher votava?”, a resposta certamente seria“Não”. Muitos diriam que a mulher era proibida de votar. Mas nunca existiu lei que proibisse o voto feminino no Brasil. Nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, entre outros países, existiam leis explícitas. Mas no Brasil nunca houve. Então, por que a mulher não votava? Por uma questão cultural: pela tradição, a mulher deveria ser submissa ao homem. Como o voto não era obrigatório, pegava muito mal uma dama, por mais simples que fosse, participar de coisas de homem, como eleição.
A ausência do voto feminino no Brasil jamais foi uma questão política. Sempre foi uma questão social. Por fim, quando as mulheres passaram a votar, em 1934, isso não significou que a cultura mudou. Mas simplesmente o voto passou a ser obrigatório para todos por meio de um decreto-lei assinado por Getúlio Vargas dois anos antes (veja a matéria “As donas da casa”, à pág. 22). A sociedade continuou machista, e, lamentavelmente, ainda mantém certas características assim até hoje.
Com isso, aconteceu algo, no mínimo, curioso.
Em 1872, ano do primeiro censo populacional do país, o Brasil possuía aproximadamente 10 milhões de habitantes. Desses, 3 milhões eram escravos. Nas eleições da primeira metade da década de 1870, foram registrados por volta de 1 milhão de eleitores, algo em torno de 13,5% da população. Isso dava a entender que o País era a maior democracia do Ocidente. Para efeito de comparação, votava na Inglaterra 4% da população; nos Estados Unidos, por volta de 3,5%; e na França, algo entre 4% e 5%. Se percentual de participação eleitoral fosse sinônimo de democracia, o Brasil estava na liderança. Uma democracia... com escravos! Coisas do Brasil.
Ainda falando dos tais 100 mil-réis, vejamos como era constatada a renda necessária para ganhar o direito ao voto. Era simples: a pessoa dizia ao mesário na paróquia que ganhava tanto, e só. Não existia carteira de trabalho ou nota fiscal. Era pela pura e simples experiência cotidiana que se sabia o quanto poderia ganhar uma pessoa: ninguém conferia nada!
Esse jeitinho brasileiro funcionou até 1875, quando a lei Saraiva- Cotegipe determinou que os rendimentos deveriam ser comprovados. O resultado foi o seguinte: de 13,5% de participantes no processo eleitoral, caímos para menos de 1%. O índice anterior seria novamente igualado nas eleições de 1946.
Mulheres de foraVamos para um dos mais confusos itens do sistema eleitoral do Império: o voto feminino. Se alguém perguntasse“Mulher votava?”, a resposta certamente seria“Não”. Muitos diriam que a mulher era proibida de votar. Mas nunca existiu lei que proibisse o voto feminino no Brasil. Nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, entre outros países, existiam leis explícitas. Mas no Brasil nunca houve. Então, por que a mulher não votava? Por uma questão cultural: pela tradição, a mulher deveria ser submissa ao homem. Como o voto não era obrigatório, pegava muito mal uma dama, por mais simples que fosse, participar de coisas de homem, como eleição.
A ausência do voto feminino no Brasil jamais foi uma questão política. Sempre foi uma questão social. Por fim, quando as mulheres passaram a votar, em 1934, isso não significou que a cultura mudou. Mas simplesmente o voto passou a ser obrigatório para todos por meio de um decreto-lei assinado por Getúlio Vargas dois anos antes (veja a matéria “As donas da casa”, à pág. 22). A sociedade continuou machista, e, lamentavelmente, ainda mantém certas características assim até hoje.
URNAS FECHADAS
Em pleno século 21, o direito de votar e ser votado é limitado até mesmo em lugares de tradição democrática. É o caso da Suíça, onde mulheres são barradas em algumas regiões, ou da Grã-Bretanha, na qual alguns cargos são adquiridos pela hereditariedade, como acontece com aproximadamente um terço da Câmara dos Lordes, instituição equivalente ao Senado.
Na verdade, o ato de votar nunca foi algo acessível a todos. Não era na Grécia, quando se restringia aos homens maiores de 25 anos, livres e naturais da cidade. Não era nas repúblicas italianas, como Veneza ou Gênova, de princípios do século 16, onde apenas comerciantes e nobres possuíam esse direito. Não era nem mesmo na Revolução Francesa de 1789, quando a vitória da burguesia classificou as pessoas em cidadãos de primeira e segunda classe, cabendo aos primeiros direitos e obrigações, incluindo o voto, e aos segundos, apenas obrigações – pagar impostos e mais nada. O direito de escolher aqueles que irão governar nunca foi algo universal, e exemplos de retaliação da democracia, como os relatados, ainda inspiram regimes mundo afora e demorarão a ser extintos.
Na verdade, o ato de votar nunca foi algo acessível a todos. Não era na Grécia, quando se restringia aos homens maiores de 25 anos, livres e naturais da cidade. Não era nas repúblicas italianas, como Veneza ou Gênova, de princípios do século 16, onde apenas comerciantes e nobres possuíam esse direito. Não era nem mesmo na Revolução Francesa de 1789, quando a vitória da burguesia classificou as pessoas em cidadãos de primeira e segunda classe, cabendo aos primeiros direitos e obrigações, incluindo o voto, e aos segundos, apenas obrigações – pagar impostos e mais nada. O direito de escolher aqueles que irão governar nunca foi algo universal, e exemplos de retaliação da democracia, como os relatados, ainda inspiram regimes mundo afora e demorarão a ser extintos.
Antonio Marcelo Jackson F. da Silva é doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), professor do Centro Universitário Geraldo Di Biase (UGB) e da Faculdade de Ciências Econômicas de Valença-RJ (Facev).