27.8.08

Os relatos dos viajantes como fonte para o estudo da história

Autor: Heloisa Jochims Reichel
Instituição: Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS – RS- BRASIL
Abstract: Os depoimentos de viajantes, com explicações e aparato crítico adequados, contribuem para uma melhor e mais enriquecida compreensão do passado. Temos que cuidar, porém, para não cairmos na armadilha de aceitar as descrições e informações ali presentes como sendo a própria e única realidade. Elas se constituem de representações, reinvenções de realidades, produzidas a partir da visão de um sujeito. Por outro lado, os relatos dos viajantes se constituem em poderes capazes de atuar na mentalidade e na visão de mundo de uma sociedade, transformando o processo histórico. Com este sentido, as representações acerca do real, ou o real pensado, podem atuar como causa de práticas sociais. Nesta comunicação, serão analisadas estas duas formas de abordar teoricamente a literatura de viagem, tomando-se, como referência, o relato de alguns viajantes que participaram da “segunda descoberta da América” na Região Platina, nos inícios do século XIX.
TEXTO DA COMUNICAÇÃO
Introdução
Os depoimentos dos viajantes, atualmente, vêm sendo objeto de estudo de especialistas de vários campos do conhecimento, dentre os quais se destacam os da história, da crítica literária e da antropologia. Na historiografia latino-americana em especial, desde há muito, eles são considerados fonte importante de pesquisa, na medida em que oferecem descrições pormenorizadas sobre a economia, sociedade e cultura da América Latina. Na das últimas décadas, entretanto, as obras dos viajantes vêm sendo especialmente citadas, tendo em vista oferecerem subsídios para algumas temáticas que interessam aos historiadores, como o cotidiano, os estudos de gênero, os de grupos étnicos, etc1.
A renovada valorização dos relatos dos viajantes pela historiografia atual deve-se, também, ao fato dos mesmos servirem à utilização de uma categoria de análise muito utilizada na atualidade para a compreensão do que venha a ser a realidade histórica. Refiro -me à categoria representação que, por sua vez articula-se às de imaginário e simbólico. Os Por sua importância como fonte à produção historiográfica recente, os relatos de viajantes têm sido reproduzidos parcial ou integralmente em coletâneas, levantamentos bibliográficos, traduções e/ou edições sempre renovadas. Como exemplo, temos a lembrar a re-edição de textos clássicos de viajantes no Prata, como Viajes por la América Meridional de Félix de Azara, cujas edições anteriores datavam de 1808, 1923 e 1969 e como El Lazarillo de ciegos caminantes, de Concolorcorvo, publicado pela primeira vez em 1770 (?) e cuja última edição, de 1972, se encontrava esgotada.
1 progressos alcançados pela ciência em relação ao processo cognitivo, levou as ciências humanas a reconhecer que o conhecimento do real concreto se faz através da construção de imagens mentais, produzidas através do intelecto ou dos sentidos. Estas imagens mentais se constituem em representações do real que, quando acionadas para a compreensão do real concreto, passam a integrar a própria realidade. Esta, pois, que é decodificada individualmente através de representações mentais, apresenta uma pluralidade de significados, os quais se externalizam, principalmente, através do discurso.
Os depoimentos dos viajantes, com explicações e aparato crítico adequados, contribuem para uma melhor e mais enriquecida compreensão do passado. Temos que cuidar, porém, para não se cairmos na armadilha de aceitarmos as suas descrições e informações como sendo a própria e única realidade. Elas se constituem de representações, reinvenções de realidades, produzidas a partir da visão de um sujeito. São imagens que se constituem em representações do real, elaboradas a partir de componentes ideológicos de pessoas dotadas de equipamentos culturais próprios e que trazem um patrimônio anterior que condiciona o modo de observar e entender o empírico. Transportando esta condição para a temática desta mesa, Antonio Candido (in – LEITE, Ilka Boaventura. 1996: p.1.) alerta para o significado de visão do outro que as representações de viajantes europeus representam. Diz ele: “o europeu que chega se comporta geralmente como se fosse um foco absoluto. Ele detém conceitos, preconceitos e noções, mediante os quais vai organizar o mundo novo, e que é tão diverso do seu.”
Para utilizarmos as representações dos viajantes como fonte histórica, é necessário, portanto, decifrar o seu significado, articulando texto e contexto. Chartier (1990) tem trabalhado as representações como produto de vivências sociais, as quais geram o contexto em que as imagens são produzidas. Nesta linha de raciocínio, ele indica o caminho para decifrar a construção de um sentido num processo determinado: o cruzamento entre práticas sociais e historicamente diferenciadas com as representações feitas. Como bem acentua o autor, as clivagens culturais não se organizam só através do recorte social, ocorrendo também configurações derivadas dos fatores sexo, idade, tradição cultural, época etc.
1. A segunda descoberta da América: o contexto dos viajantes Na busca da articulação de texto e contexto para a compreensão das representações construídas, vamos analisar o mundo econômico, social e cultural em que viviam estes viajantes. Com este sentido, as representações por eles construídas são vistas como efeito das suas práticas sociais. Focalizaremos o relato de dois viajantes franceses – Alcides D`Orbigny e Arsène Isabelle - que visitaram a América Platina nas primeiras décadas doséculo XIX. A escolha destes viajantes se deveu ao fato de terem estado na mesma década visitando a América e, também, porque estiveram em terras do Rio Grande do Sul, da Argentina e do Uruguai. Outros motivos foram: terem atividades profissionais semelhantes, ou seja ambos eram naturalistas e nacionalidade comum 2. A denominação de segunda descoberta da América indica que um novo olhar incidia sobre o continente americano. Como vimos, no período da conquista, grande foi a atenção e a curiosidade que o continente despertou nos europeus. Todas as expedições exploradoras, de caráter náutico ou geográfico, de ação missionária ou colonizadora eram integradas por cronistas, funcionários da Coroa ou particulares que tinham a missão de descrever e dar a conhecer o território e os povos conquistados. Passados estes momentos iniciais e restando pouco a desbravar nas terras desconhecidas, os aventureiros cronistas deixaram de realizar as suas viagens e o interesse por seus relatos, entre os leitores europeus, foi diminuindo. A atividade exploradora na América, do século XVIII em diante, caracterizou-se, ao contrário, por um marcado caráter científico. Era a época do racionalismo e do cientificismo, que buscavam o conhecimento da realidade através da observação do empírico, da natureza. A elaboração do texto e a forma como foram apresentadas as representações também estiveram influenciados pelo movimento romântico que se estruturava no período. A noção de natureza e seus corolários – a bondade natural, a pureza da vida em natureza, a superioridade da inspiração natural, primitiva, popular – estão presentes nas representações construídas pelos viajantes. Nos seus relatos, é comum o culto da natureza, considerada, pelos românticos, como lugar de refúgio, puro, não contaminado pela sociedade, lugar de cura física e espiritual. Relacionada com este culto foi a idéia do bom selvagem, do homem simples e bom em estado de natureza, que Rousseau exprimiu. 2
. Deu-se preferência a viajantes não ingleses, já que a maior parte dos estudos existentes tem se detido nos Articulado com o pensamento da sua época, Arsène Isabelle considerou o viajante como um historiador que se preocupa em relatar o homem natural, em buscar a essência da natureza humana. Escreveu: Um viajante – disse Chateaubriand – é uma espécie de historiador. Seu dever é contar o que viu e o que ouviu. Não deve inventar, mas também não deve omitir....Não me será possível completar as descrições físicas sem empregar algumas palavras ‘ técnicas’, mas podeis ficar tranqüilos que só usarei as que conheço. Lembrai-vos que estaremos num laboratório da natureza e que, ali, tudo é natureza, nada mais que natureza... Os próprios homens são naturais. A civilização é para eles um disfarce que gostam de exibir, mas do qual se despojam quando estão em ‘família’. (p.33) As ciências naturais, assim, se organizaram sobre a base da observação e do experimento. Instalaram-se jardins botânicos, gabinetes de história natural, laboratórios de experimentação, observatórios astronômicos. As academias científicas promoveram investigações e financiaram, muitas vezes, expedições científicas de estudiosos europeus que, após as observações de viagem, tornaram-se especialistas. Alcides D’ Orbigny, um dos dois viajantes que escolhemos para analisar, se enquadra nesta condição. Aos 23 anos, foi indicado pelo Museu de História Natural de Paris para visitar, explorar e estudar a fauna e a flora da América do Sul. Após viajar por 8 anos por terras do Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Peru e Bolívia, voltou ao seu país natal em 1834, organizou seus documentos e registros, os classificou e, em 1839, publicou o primeiro dos 10 tomos de seu livro Viagem a América Meridional. Como resultado desta expedição, para a qual denominou-se de naturalista viajante, D’Orbigny passou a ser reconhecido como grande especialista, tendo ocupado o cargo de vice-presidente da Sociedade Geológica da França e recebido o título de Cavaleiro da Ordem Real da Legião de Honra, por parte do governo francês. Foi autor, também, da obra O homem americano. desta nacionalidade que foram, em bom número, comerciantes e diplomatas. Nos dois primeiros tomos e na metade do terceiro de seu livro Viagem à América Meridional, dedicou-se a estudar o homem da América, a estudar a origem da população nativa e a relatar a história das nações que recentemente haviam se formado. O que antes fizera Felix de Azara na região do pampa e Alejandro de Humboldt na parte norte da América do Sul, D’ Orbigny o realiza em terras de guarani, de araucanos, calchaqués e quechuas. Nos demais volumes, estuda e classifica 160 mamíferos, 115 répteis, 166 peixes, 980 moluscos, 5000 insetos e crustáceos, 3000 plantas e aporta vários conhecimentos à geologia, à paleontologia e à etnografia. Louis-Frédèric Arsène de Isabelle, o outro viajante francês que focalizamos também era naturalista, tendo vindo para a América às suas próprias custas. Em 1830, viajou para a região do Prata com o desejo de descrever os aspectos geográficos, geológicos, zoológicos e botânicos desta região. Esteve primeiro no Uruguai e depois dirigiu-se para Buenos Aires. Nesta cidade, perdeu todo seu capital em maus negócios financeiros, sendo obrigado a abrir uma pequena indústria textil para depois seguir com sua expedição pelo interior. Sem alcançar a prosperidade almejada, deslocou-se para o Uruguai, cruzando pelas terras rio- grandenses em 1833 e 1834. Retornou à França em 1835, ocasião em que publicou seus relatos de viagem na obra Voyage à Buenos Ayres et à Porto Alegre3. Posteriormente, retornou à América, radicando-se em Montevideo, cidade onde viveu grande parte de sua vida, foi agente consular, colaborou com o jornal Patriotte Français, mantido por um grupo de exilados franceses e estimulou o comércio entre França e Uruguai. Uma das preocupações centrais dos viajantes dos séculos XVIII e XIX era conhecer e aceitar o diferente. Criticando o etnocentrismo clássico, que conceituava o homem e o mundo a partir dos parâmetros europeus e que, por decorrência, denominou o habitante da América de selvagem, Rousseau afirmara em relação aos viajantes da fase anterior ao cientificismo: Há trezentos ou quatrocentos anos que os habitantes da Europa inundam as outras partes do mundo e publicam novos relatos e narrativas de viagem, e estou persuadido de que os únicos homens que conhecemos são os próprios europeus”.( apud Todorov, T.. 1993:.p.30) Para ele, o viajante deveria ser um homem instruído, curioso em descobrir a especificidade de cada povo e de cada lugar, sendo que, para isso, deveria se despir do etnocentrismo europeu. Os viajantes buscavam conhecer e dar a conhecer os lugares estranhos, as terras selvagens, ricas de pitoresco, ou simplesmente de diferentes fisionomia e costumes. O movimento romântico, por sua vez, também valorizava o diferente, o exótico. Por isso, foi o período em que estiveram em voga, na pintura e na literatura, as paisagens, as etnias e as culturas consideradas exóticas. D´Orbigny ao desembarcar primeiramente no Rio de Janeiro quando viajou à América, preocupou-se em descrever o pitoresco do colorido da sua população e sua natureza exótica, através destas imagens: “ O que mais me surpreendeu ao entrar na cidade foi a grande quantidade de homens de cor, comparativamente a de brancos. É o que suponho há de estranhar mais a todo europeu que desembarque no Brasil. A vista acostumada ao espetáculo de uma população de cor, por assim dizê-lo, uniforme, se habitua com dificuldade a esta mescla de tintas de todos os tons possíveis, do negro ao branco, passando pelo amarelo e o moreno (p.31)... Meu primeiro passeio foi realizado pelo lado do Corcovado....Choças de negros, semeadas pela montanha em pitoresca desordem, elegantes vivendas rodeadas de campos cultivados... Esta paisagem se estende pelo horizonte até o ponto que começam as selvas virgens. Alí toma a natureza um caráter mais agreste e mediante o pensamento é possível retroceder-se à idade primitiva deste lindo país... cheguei a um lugar em que conclui o aqueduto e a água, caindo de pedra em pedra, na selva virgem, forma um pequeno estanque natural que alimenta o próprio aqueduto. Seria preciso ter muito pouca sensibilidade para não emocionar-se diante de tal espetáculo. As diversas árvores entrecuzam sua ramagem Arsène Isabelle escreveu outras duas obras: Emigração e colonização na Província brasileira do Rio Grande do Sul, na República Oriental do Uruguai e em toda a bacia do Prata, editado em Montevideo em 1850 e Notas comerciais e de muitos outros escritos sobre Montevideo. 3 por cima da água que salta da cascata sobre pedras graníticas, e parecem querer preservá-la, de tal modo, dos raios solares e manter-lhe a frecura tão preciosa ao viajante, titubeante sob o peso do dia.” ( p.32) Arsène Isabelle, na introdução de seu livro, também denota estar imbuído desta sensibilidade para com o novo, o diferente que motivava o viajante a descobrir uma nova América. Diz ele: “Tudo será novo ao redor de nós: nada de monumentos antigos a exumar, nada de lembranças gloriosas presas a esta terra quase virgem. No máximo exumaremos um fóssil e, então, quanta meditação, quanta poesia”. (p.33) Ao longo do século XVIII, a adoção do fisiocracismo na economia mundial intensificara a agricultura e o comércio marítimo na América. Na Holanda, França e Inglaterra, bem como Portugal e Espanha, se constituíram companhias para explorar intensivamente a produção colonial, o que exigia um minucioso conhecimento das condições geográficas, climatéricas e demográficas dos territórios ultramarinos. Também por estes motivos, as viagens de exploração e estudo dos naturalistas se sucederam e a América voltou a ser percorrida com a mesma intensidade que no século XVI. Bouganville, Malaspina, Antonio de Ulloa e Felix de Azara são alguns dos estudiosos que percorreram o continente, desvendando novos conhecimentos de botânica, zoologia e geografia. Encerra o século um dos viajantes científicos mais notáveis, o alemão Alexandre de Humboldt, que fez do Peru, das Antilhas e do México o campo predileto de suas observações. A emancipação dos países americanos despertou ainda mais o interesse dos viajantes europeus pelo continente, principalmente por parte dos não ibéricos. Afora os cientistas, um bom número de comerciantes, diplomatas, artistas e buscaram descrever as condições sociais, políticas e econômicas que encontravam nos novos Estados independentes, bem como as possibilidades de ampliar o comércio dos mesmos com seus países de origem. São deste período, relatos de viagens que analisamos e também o de Darwin, o de Auguste Saint-Hillaire e o de Debret, dentre outros. Vinculado a estes objetivos, os relatos destacaram o sistema de produção de alguns produtos que
encontravam mercado na Europa. No caso da região platina, foram inúmeras as descrições realizadas sobre a sua riqueza pecuária, sobre as estâncias e o trabalho que nelas se realizava. 4 As possibilidades comerciais eram também objeto das descrições dos viajantes, em especial de Arsène Isabelle que dedicou sua obra aos “negociantes que constituem o comércio do Havre”.5 Sobre o Rio Grande do Sul, escreveu Em tudo o que se tem publicado sobre o Brasil nada vi que pudesse chamar a atenção dos europeus e especialmente dos franceses sobre a importância da província do Rio Grande do Sul, ou de São Pedro. O sr. Auguste Saint-Hilaire, viajante erudito e consciencioso, fez dela um bom esboço, mas não se estendeu, nem podia fazê-lo, sobre o interesse comercial que oferecem novas cidades e novos portos, os quais, fundados há poucos anos, estão crescendo rapidamente, como consequência natural da afluência de estrangeiros e mesmo de brasileiros das outras províncias do Império, atraídos em massa pelas doçuras de um clima saudável e temperado reunidas aos encantos e à facilidade da vida agrícola....esta bela e rica Província marcha enfim apesar de tantos obstáculos, para um estado de prosperidade muito superior ao das outras províncias brasileiras e só rivalizado pelo da sua vizinha, a Banda Oriental.” (p. 31/32) A partir do século XVIII, o homem passou a reconhecer como característica
humana, além da racionalidade, a sua sociabilidade. Ao analisar esta dimensão humana, Todorov afirma: “A sociabilidade, portanto, implica capacidade de submissão, assim como pressupõe a existência de leis, de uma ordem estabelecida, de usos constantes, de costumes fixos. Ao mesmo tempo, a sociabilidade (...) é a condição indispensável para a multiplicação da espécie, e basta saber o número de habitantes para se poder concluir sobre o alto grau de sociabilidade, portanto, de sua superioridade: quantidade implica qualidade. ...Mas é também à presença da sociedade que o homem deve o progresso das técnicas e dos utensílios, inclusive dos instrumentos intelectuais que são a língua e a escrita.(op. cit. P.114-115)
A partir da racionalidade e da sociabilidade, solidárias entre si, instala-se a oposição civilização e barbárie. Buffon, ao final do século XVIII, hierarquiza a espécie humana, construindo uma classificação que vai desde os mais civilizados, ou seja as sociedades da Europa setentrional, logo abaixo os outros europeus, depois as populações da Ásia e da África e, por último, os selvagens americanos. Sendo assim, nenhum viajante europeu que visitava a América deixava de trazer consigo a representação da inferioridade da natureza É interessante referir que os relatos serepetiam, o que denota terem, os viajantes, conhecimento dos depoimentos de outros que lhe antecederam. As descrições de Felix de Azara foram as que serviram, na maioria das vezes, de matriz a esses relatos. 4 5 Arsène Isabelle era natural do Havre, região portuária da França que comerciava com os quatro continentes americana. De uma maneira geral, os índios eram descritos como “ nada industriosos, inclinados naturalmente à preguiça”. (Isabelle, p.213) Nesse sentido, ilustramos com as palavras de Arsène Isabelle quando comparou os colonos imigrantes alemães que se radicaram no Rio Grande do Sul a partir de 1824, com os platinos: “Depois de termos subido e descido várias vezes, avistamos enfim, na volta de um caminho coberto, a vila de São Leopoldo, situada no meio de uma planície baixa, que pode ter duas léguas de circunferência. Pensamos estar na Alemanha. Não pude deixar de experimentar, à vista dessa população européia, um sentimento de admiração, pois fui imediatamente surpreendido pelo contraste que me ofereciam esses lugares cultivados com cuidado, esses caminhos abertos penosamente através das colinas, dos montes e das florestas, essas pequenas propriedades cercadas de fossos profundos ou de sebes vias, essa atividade dos agricultores e operários, rivalizando, de modo invejável, pela prosperidade comum, com o abandono absoluto no qual os brasileiros deixam suas terras, o mau estado de seus caminhos, suas choupanas em ruínas, enfim, essa falta de indústr4ia, esse espírito perdulário e destruidor que o caracteriza, assim como aos argentinos.” (p.287/88) 2. A dicotomia campo e cidade nos relatos dos viajantes: o texto como causa de práticas sociais.
A partir do reconhecimento da importância das representações no processo cognitivo, as imagens, os símbolos e os discursos foram reconhecidos como elementos que integram o real, deixando de ser vistos apenas como acessórios da vida material. Eles se constituem em poderes capazes de atuar na mentalidade e na visão de mundo de uma sociedade, transformando o processo histórico. Com este sentido, as representações, o real pensado, passam a ser causa de práticas sociais e, como tal, a fazer parte do processo histórico. Sobre isso, alertou Roberto da Matta: “ (...) quando deixamos de perceber quando as idéias passam a ser atores em certas situações sociais, seja porque atuam para desencadear a ação, seja para impedir certas condutas, deixamos de penetrar no mundo social propriamente dito e, assim fazendo, corremos o risco de cair na postura teórico-formal e, com ela, no plano abstrato das determinações.” ( DA MATTA, Roberto. 1997 p.62)
A partir desta forma de abordar as representações, vamos selecionar algumas das representações que D´Orbigny e Arsène Isabelle construíram acerca da vida rural e da vida urbana na região platina. Nossa intenção é mostrar que seus relatos, que foram lidos intensamente pelos homens e mulheres desta sociedade, influiram decisivamente nas representações que os platinos vão construir acerca destes dois mundos. Em outras palavras, consideramos que, nos relatos dos viajantes, em parte, se encontram as razões para a dicotomia civilização x barbárie estar relacionada, na América, à de campo e cidade. Norbert Elias, em sua obra O processo civilizatório, analisa os diferentes entendimentos que o têrmo civilização tinha para os europeus do século XIX.. Segundo Elias, civilização “expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesma. (...). Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo, e muito mais. (ELIAS, Norbert. 1994: p. 23) Acreditando que essa palavra não teve o mesmo significado em todas as sociedades européias do século XVIII, Elias considera que, para os franceses, nacionalidade dos viajantes aqui analisados, o conceito de homem civilizado estava intimamente relacionado com o comportamento social dos indivíduos, em especial da burguesia. O conceito civilização foi inicialmente um instrumento da classe média no conflito social interno da sociedade francesa e, com a ascensão da burguesia ao poder, esta procurou reformar a falsa civilização da nobreza, que se baseava na polidez e nas boas maneiras, em uma civilização boa e autêntica que se situava entre a barbárie e a civilização. Cabia aos governos executar esta tarefa que, segundo Elias, no entanto, permanecia “ dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado de cima, e que não opõe ao que critica nos costumes do tempo, uma imagem ou conceito absolutamente novos, mas em vez disso, parte da ordem existente, desejando melhorá-la... (op. Cit. p.60) Na América platina, a civilização foi discursivamente relacionada com a vida urbana e a barbárie com a rural na obra clássica de Sarmiento, Facundo o civilización y barbárie en las pampas argentinas (..). Diz ele: -“ Facundo não morreu; está vivo nas tradições populares, na política e revoluções argentinas; em Rosas, seu herdeiro, seu complemento: sua alma passou a este molde, mais acabado, mais perfeito... A natureza campestre,colonial e bárbara tranformou-se nesta metamorfosis em arte, em sistema, em política... Facundo, provinciano, bárbaro, valente, audaz foi substituído por Rosas, filho da culta Buenos Aires sem sê- lo... “ (p.7)
-“ Em sua embocadura estão situadas duas cidades: Montevideo e Buenos Aires, colhendo hoje,
alternadamente, as vantagens de sua invejável posição. Buenos Aires está chamada a ser a cidade mais gigentesca de ambas as Américas... seria já a Babilônia americana se o espírito do pampa não tivesse soprado sobre ela e se não afogasse em suas fontes o tributo de riqueza que os rios e as províncias têm que levar-lhe sempre. Ela somente, na vasta extensão argentina, está em contato com as nações européias; ela só explora as vantagens do comércio estrangeiro; ela só tem poder e rendas. Em vão se pediu às províncias que lhes deixe passar um pouco de civilização, de indústria e de população européia: uma política estúpida e colonial se fez surda a estes clamores. Porém as províncias vingaram-se, mandando-lhe em Rosas, muito e demasiado da barbárie que a elas lhes sobrava.” (p.25) -“ A cidade é o centro da civilização argentina, espanhola, européia; alí estão as oficinas de arte, as lojas de comércio, as escolas e colégios, os tribunais, tudo o quecaracteriza, enfim, ao povos cultos. O homem da cidade veste o traje europeu, vive da vida civilizada, tal como a conhecemos em todas as partes: alí estão as leis, as idéias de progresso, os meios de instrução, alguma organização municipal, o governo regular etc. Saindo do recinto da cidade, tudo muda de aspecto: o homem do campo usa outro traje, que chamarei de americano, por ser comum a todos os pueblos; seus hábitos de vida são diversos; suas necessidades, peculiares e limitadas, parecem duas sociedades distintas, dois povos estranhos um ao outro. (p.31) A representação construída por este intelectual portenho em seu texto foi, em muito, influenciada pelas representações que os viajantes haviam feito e faziam das condições de vida e do perfil do habitante do campo e da cidade. Comparando os discursos de ambos, reproduzimos alguns trechos das obras dos naturalistas franceses aqui focalizados: Isabelle- - “ Os ´gaúchos` ou habitantes do campo são, em relação a Buenos Aires, o que são os tártaros em relação à China ou os beduínos em relação a Argel. Foi um chefe gaúcho que triunfou do partido de Lavalle e serão os gaúchos que dominarão sempre a cidade, opondo-se a toda inovação útil ao país, até que se ponha em prática o plano de Rivadávia, que consistia em favorecer aos estrangeiros e induzí-los a formar colonias no interior (...) agora, percebo que estou mais próximo dos ´pampas` que da praça da Vitória”. (p.94) -“ Pouco direi aqui sobre os habitantes do campo ou os gaúchos que, em muitos aspectos, podem ser classificados entre os ´beduíbnos`de Argel, os ´sertanejos`e ´mamelucos`do Brasil e, mesmo, ´zambos` da Colômbia . (p. 137) -“ Com exceção do uso do pente, as mulheres de Buenos Aires e de Montevideu seguem as modas francesas. Há um grande número de modistas e de costureiras dessa nacionalidade, e os jornais de moda de Paris circulam em todos os `boudoirs` (ou o que faz as vezes de `boudoirs`) das portenhas.... Os homens, bem proporcionados, de excelentes maneiras como as mulheres, seguem indistintamente as modas francesas e inglesas. Há um grande número de alfaiates das duas nacionalidades, de sapateiros e cabelereiros, que fazem ótimos negócios”. (p.157-) -“Aqui começa uma série de habitações esparsas, de aldeias e de vilas, que foram povoadas por índios guarani, trazidos dos ´pueblos` das missões durante a guerra com o Brasil.... Desgraçadamente, porém, esses índios nada industriosos, inclinados naturalmente à preguiça, foram abandonados à própria sorte.” (p. 214) D´Orbigny- -“ A cidade de Montevideu tinha um ar de riqueza, de vida e prosperidade comercial. (...) O comércio brindou, mediante comunicações freqüentes entre os habitantes de todos os países, um ar de soltura e amabilidade de modos aos cidadãos de Montevideu, dotados, por outra parte, como todos os argentinos, de muita vivacidade e excelente aspecto. Os homens são bem formados, com boa figura; as mulheres, bonitas, amáveis e muito espiriruais... (p.66) -“ ... A cabana constava de duas pecinhas, das quais uma servia, primeiramente, de cozinha, logo de comedor e também de dormitório, pois percebemos uns couros vacunos, estendidos no chão, em um canto, e sobre os quais sem dúvida a família se recuperava das tarefas diárias. Como ornamento, estavam dependurados nas paredes uns laços, bolas e celas à moda do país.... Acostumada a esta miséria aparente, que feria nossa delicadeza, a família parecia estar muito satisfeita... (p. 79) - “... Nas casas dos empregados ou dos comerciantes há muito luxo.... Há, por exemplo, dando para a rua, uma luxuosa sala, bem decorada, mobiliada com um piano, um sofá, cadeiras americanas de madeira, bem douradas, de cores brilhantes; essa sala é o lugar de recepção das senhoras. Nessa peça, uma grande porta aberta deixa ver um dormitório, provido de um leito suntuoso e de móveis análogos.... (p.474) -“ Nessas grandes salas, as senhoritas da casa passam todo o dia sem fazer nada, ou bem estudando contradanças espanholas, ou valsas ou o acompanhamento de uma nova melodia que devem cantar ao entardecer...(tertulias).... se baila o minueto, o montonero, a contradança e a valsa.... As senhoritas participam de todas a sconversas, agradando com sua espiritualidade,... sempre alegres e encantando as reuniões... (p.474) -“ Os habitantes da cidade são tão falantes como os da campanha são taciturnos.... Assombra, sobretudo, ver os jovens abordar os problemas mais importantes de moral e de direito, estender-se sobre teorias de economia política, falar de indústria, belas artes, literatura...(p.478) -“ O insensível gaúcho, que quase desconhece o amor, conece raramente a amizade, aceita apenas a existência dos afetos familiares e trata aos animais tão duramente como a seus semelhantes e a si mesmo. Os europeus veêm com indignação, nas cidades, aos peões dos ´matadouros `, divertir-se mutilando aos pobres cães que acodem em busca de despojos. Até as crianças, educados desde cedo na crueldade, se comprazem em cortar-lhes, a golpes de faca, as partes, como veêm seus pais fazerem com as vacas, e seus primeiros jogos anunciam a ferocidade de seus costumes futuros;porque, providos de armas proporcionais a sua idade, as crianças da campanha se ameaçam sem cessar, em suas lutas, com mutilar-se e degolar-se.( p.482-3) -“ Pouco mais tarde, fomos alcançados por dois homens e duas mulheres a cavalo, cuja vestimenta nos permitiu reconhecer como fazendeiros ou estancieiros. As mulheres estavam vestidas como todas as amazonas, quer dizer, levavam um chapéu de homem, adornado como lindas plumas de avestruz, que lhes sentava muito bem.... (p.80)
Conclusão
Os relatos de viajantes têm sido utilizados como importantes fontes para a pesquisa histórica. Além de oferecerem descrições pormenorizadas sobre a realidade econômica, social, política e cultural da América Latina em diferentes momentos de seu processo histórico, as representações construídas pelos seus autores influenciaram, em muito, na construção do imaginário existente sobre a América Latina, tanto no exterior quanto no próprio continente. Os europeus descreveram viagens à América Latina desde o episódio da conquista até os dias de hoje. Dentre eles, os que mais contribuíram para a produção do conhecimento histórico do continente foram os viajantes do século XVI, movidos pelo espírito de aventura e conquista, e os que realizaram suas viagens a partir do final do século XVIII e ao longo de todo o XIX, influenciados pelos valores do cientificismo e do romantismo. Nessa comunicação, inciamos, considerando a literatura de viagem como uma reinvenção da realidade que, diferentemente da literatura ficcional, encontrou seu fio terra no contexto social, econômico, cultural e principalmente científico que esteve presente na Europa desde meados do século XVIII. Como tal, destacamos a valorização do conhecimento científico e o cenário exótico que o romantismo introduziu na época, identificamos os objetivos e as características das expedições que visitaram o território latino-americano, bem como apresentamos uma síntese de relatos de viajantes que descreveram preferencialmente a Região Platina. Com este sentido, entendemos os depoimentos dos viajantes como efeito de um contexto histórico e, sob esta ótica, se constituindo em fonte para a compreensão da sociedade de um certo período histórico.
Num segundo momento, analisamos a contribuição dos relatos desses viajantes à construção da antinomia civilização x barbárie, da forma como foi re-apresentada por Sarmiento na obra Facundo e largamente difundida entre os platinos, ou seja, como sendo expressão da contradição existente entre cidade e campo. Sendo assim e buscando, do ponto de vista teórico, abordar a participação das idéias e das representações na construção da realidade, comparamos as descrições realizadas pelos viajantes e por Sarmiento a fim de entender como a transculturação que se efetivou acabou influindo no imaginário dos intelectuais e políticos platinos da primeira metade do século XIX. Com este sentido, os relatos de viagens podem ser considerados como representações que atuam como causa da prática social e política.
Bibliografia citada:
AZARRA, Félix. Viajes por la América Meridional. Buenos Aires, El Elefante Branco,
1998.
CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa, Difel,
1990.
CONCOLORCORVO. El lazarillo de los ciegos caminantes. Buenos Aires, Emece, 1997.
D´ORBIGNY, Alcides. Viagem à América Meridional – 1826-1833. Buenos Aires,
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ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. 2ª ed., RJ, Jorge
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ISABELLE, Arsénè. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro,
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