Flora Medeiros Lahuerta
Universidade de São Paulo
Viajantes e a construção de uma idéia de Brasil no ocaso da colonização (1808-1822) (Resumo)
Quando, em 1808, a Corte de Portugal se instala no Rio de Janeiro, ocorrem uma série de transformações, como a abertura dos portos ao comércio e a chegada de inúmeros viajantes, o que ocasiona, para Sérgio Buarque de Holanda, “um redescobrimento do Brasil”. Através dos desenhos, relatos, coleções e classificações, uma “geografia imaginativa” do Império é construída, pautada em sua natureza, principalmente pelos viajantes naturalistas. Conjugando as novas materialidades que se constroem – a partir de uma conjuntura inédita que é a presença da metrópole nos trópicos – com as novas idéias estrangeiras, a partir das quais se investiga a natureza “brasílica”, se pode chegar a importantes aportes para o estudo do processo de formação de uma identidade brasileira, a qual será fundamentada, essencialmente, em seu território e em sua natureza.
Quando, em 1808, a Corte de Portugal se instala no Rio de Janeiro, ocorrem uma série de transformações, como a abertura dos portos ao comércio e a chegada de inúmeros viajantes, o que ocasiona, para Sérgio Buarque de Holanda, “um redescobrimento do Brasil”. Através dos desenhos, relatos, coleções e classificações, uma “geografia imaginativa” do Império é construída, pautada em sua natureza, principalmente pelos viajantes naturalistas. Conjugando as novas materialidades que se constroem – a partir de uma conjuntura inédita que é a presença da metrópole nos trópicos – com as novas idéias estrangeiras, a partir das quais se investiga a natureza “brasílica”, se pode chegar a importantes aportes para o estudo do processo de formação de uma identidade brasileira, a qual será fundamentada, essencialmente, em seu território e em sua natureza.
Palavras-chave: viajantes naturalistas, Brasil, século XIX, identidade nacional
É no século XVIII que se fundamenta a idéia de um sujeito em movimento, quando não era mais possível se conceber um sábio que nunca tivesse viajado e visto o mundo com seus próprios olhos (Capel, 1985). Pode-se dizer que a geografia moderna nasce dessa necessidade, de ver e apreender os lugares distantes, de realizar uma “ação fora dos espaços familiares”, visando torná-los conhecidos. Ela nasce, portanto, do encontro com o outro. As próprias colônias são também fruto deste encontro e vão suscitar uma série de relatos, ainda fantásticos (uns mais, outros menos) que tentam traduzir as novas experiências (HOLANDA, 1994). Mas é somente a partir do século XIX que as expedições ditas científicas, mas também artísticas, produzirão um conhecimento sistemático sobre o território luso-americano, motivadas pelo novo contexto de abertura dos portos, influindo na construção do Império do Brasil.
A natureza dessacralizada que surge com o triunfo do Iluminismo é um espaço aberto para pesquisas de todo o tipo, que a dissequem, expliquem, diferenciem, classifiquem. E é neste contexto que a natureza americana passa a ser investigada com outros olhos: ela não necessariamente é melhor, mas nada indica a sua inferioridade; ao contrario, a diversidade da vegetação, a vivacidade das cores, a pluralidade de formas leva a um deslumbramento diferente do fantasioso: esta natureza, além de bela, é dotada de riqueza e potencial. Os modelos europeus têm que se render ao trópico, sem deixar de controlá-lo, no entanto.
Há uma pluralidade de discursos e de propósitos quando analisamos os relatos de viajantes que estiveram no Brasil no início do século XIX. Nos detivemos, neste artigo, mais no pensamento dos viajantes naturalistas, principalmente em Auguste de Saint-Hilaire e em Johann von Spix e Carl von Martius, mas também de Johann Emmanuel Pohl, por mais de um motivo. Primeiramente, por ser o olhar dos viajantes naturalistas o que mais se aproxima ao do geógrafo que logo mais ganharia espaço acadêmico. Para Luciana Martins (2001, p. 42), o olhar dos naturalistas se caracterizaria pela abrangência do conjunto de elementos naturais, “na tentativa de decifrar a história da terra e, por conseguinte, do homem”, reportando-se, assim, aos horizontes longínquos. Diferente seria o olhar dos marinheiros, votados para a costa, e o dos artistas, voltados para as atmosferas locais e o jogo de luzes. Deve-se frisar, entretanto, que a própria distinção entre arte e ciência não fazia tanto sentido, e era comum um botânico ou zoólogo, por exemplo, realizar belos exemplos de pintura considerados como arte.
Para completar, também investigamos os comentários de John Luccock e John Mawe, ambos ingleses, o primeiro um comerciante e viajante renomado, o segundo um mineralogista de estreitas relações com a Corte portuguesa. Estes relatos são importantes na medida em que fornecem um contraponto ao olhar naturalista. Além disso, tanto os escritos destes como os dos primeiros viajantes citados foram muito lidos e incorporados pela produção literária e intelectual posterior, desde o Instituto Histórico e Geográfico até publicações recentes.
Com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, em 1838, diversos relatos seriam publicados (ou republicados) e, ainda, através desta instituição, Martius publicaria, em 1844, o texto “Como escrever a História do Brasil”. Até hoje utilizados como fonte primária de estudos, estes relatos contêm uma enorme riqueza de detalhes e podem gerar interpretações diversas sobre os mais variados assuntos. Por isso, também, mais uma vez se fez necessário um recorte, pelo qual analisou-se principalmente as contribuições destes viajantes para a construção de uma imagem da “natureza esplêndida” que o território brasileiro conteria, em detrimento de realizações históricas e culturais significantes. Idéia muito forte no imaginário brasileiro, a de um país “abençoado por Deus” onde os “bosques têm mais vida”.
Ao estudarmos as viagens do século XIX e como essas visões formaram uma imagem de Brasil, no âmbito da construção do Estado emancipado e de um imaginário nacional, também estamos entrando num movimento de busca das origens do próprio pensamento geográfico, pois nestas descrições se encontra a gênese de várias diretrizes que nortearão a produção geográfica do século XIX, e mesmo depois. Ainda, há de se ressaltar que a geografia, por muito tempo, foi associada ao estudo do presente, sem dirigir grandes atenções às geografias passadas. Quando o fazia, por vezes realizava a apreensão de formas estáticas do passado, não conseguindo captar a historicidade intrínseca à realidade (Abreu, 2000). Desse modo, o estudo de geografias históricas se faz necessário para resgatar o movimento presente na construção do espaço e das ideologias geográficas (Moraes, 1988). Essa ligação se mostra muito pertinente hoje, pois ao lidar com essas categorias que se remetem ora ao fluido, ora ao estático, ora às idéias e ações, ora às materialidades, o pensamento também tem que atravessar constantemente a ponte entre a rigidez da conceituação e a fluidez da realidade sobre a qual se debruça.
A metrópole nos trópicos
“Paira sobre o trópico a clareza da luz civilizatória de Apolo; na sombra densa da Mata Atlântica, de pés firmes no chão, senta-se sua irmã gêmea, Ártemis, para alimentar os homens com suas mamas múltiplas e cheias de leite”. Gustavo Rocha-Peixoto. Reflexos das Luzes na Terra do Sol.
As invasões napoleônicas terão distintos efeitos sobre as colônias das metrópoles ibéricas. Se na América Hispânica a crise sobre a legitimidade dinástica contribuiu para a irrupção de organizações autônomas, manifestas, por exemplo, nas proclamações de “cabildo aberto” como ocorreu em Buenos Aires, na América portuguesa a vinda da Corte para o Rio de Janeiro, em 1808, propicia um desenrolar de uma história muito peculiar, em que a independência se fez sob a égide da monarquia e com a manutenção da escravidão, após a transformação da “periferia” em “centro”, com a presença da metrópole nos trópicos.
A partir desta nova configuração, algumas decisões não poderiam deixar de ser tomadas, frente a uma conjuntura delicada (após os acontecimentos do final do século XVIII, como a Conjuração mineira em 1789) e à crescente presença inglesa nos negócios portugueses. Assim, pouco tempo depois da atracação da frota que trouxe a família real e os membros da Corte, assinou-se a Carta Régia que declarava a abertura dos portos “às nações amigas”. Isso implicava numa abertura econômica, mas também cultural, visto que a América portuguesa até então permanecia fechada aos olhares estrangeiros (destaque-se que ingleses circulavam mais livremente antes mesmo desta data), suscitando indescritíveis elucubrações sobre o que esconderia tão vasto território.
Sérgio Buarque de Holanda descreve este momento como um “novo descobrimento do Brasil”: “A não ser no Quinhentos e, até certo ponto, no Seiscentos, nunca o nosso país parecera tão atraente aos geógrafos, aos naturalistas, aos economistas, aos simples viajantes, como naqueles anos que imediatamente se seguem à instalação da Corte portuguesa no Rio e à abertura dos portos ao comércio internacional. O fato acha em si mesmo sua explicação. A contar de 1808 ficam enfim suspensas as barreiras que, ainda pouco antes, motivaram o célebre episódio daquela ordem régia mandando atalhar a entrada em terras da Coroa de Portugal de ‘certo Barão de Humboldt, natural de Berlim’, por parecer suspeita a sua expedição e sumamente prejudicial aos interesses políticos do Reino. De modo que a curiosidade tão longamente sofreada pode agora expandir-se sem estorvo, e não poucas vezes, com o solícito amparo das autoridades”. (Holanda, 1975, p. 12).
Segundo Elizabeth Mendes, os viajantes que aportaram no país entre 1808 e 1822 [1] podiam ser classificados como: naturalistas, assim como Auguste de Saint-Hilaire, Edward Pohl e Johann von Spix e Carl von Martius; artistas, como Jean Debret e os membros da missão artística francesa; militares, como os prussianos Leithold e Raugo; alguns especialistas contratados pela Coroa para um serviço específico, como o mineralogista Eschwege; e ainda os viajantes renomados, membros de uma burguesia comercial inglesa e francesa, como John Luccock, Koster e Tollenare, geralmente interessados em verificar assuntos de importância econômica. As descrições políticas foram contempladas mais por estes últimos, que geralmente se mantinham apenas nas cidades [2] ; o estudo da natureza coube, no entanto, como é de se prever, aos viajantes naturalistas, que se propuseram a adentrar o interior do Brasil em busca do conhecimento de novas espécies.
Muitos desses viajantes realizavam sozinhos a sua empreitada [3] , como Saint-Hilaire, que percorreu o centro-sul do Brasil [4] de 1816 a 1822. Ainda, Luccock e Mawe também eram viajantes solitários. O primeiro percorreu o Rio de Janeiro e as províncias setentrionais do Brasil em duas viagens, uma em 1813 e outra em 1818. Já Mawe entrou em terras brasileiras pelo sul, indo, de 1809 a 1811, de Santa Catarina até o Rio de Janeiro e Minas Gerais, quando obteve permissão real para conhecer as veladas minas de diamantes do Arraial do Tejuco. Mas era comum na época o envio de missões, como a missão artística francesa (1816), chefiada por Joaquim Lebreton, contratada pela Coroa portuguesa para retratar os membros da Corte e fundar a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, transformada, em 1826, na Imperial Academia e Escola de Belas-Artes [5] ; e a expedição científica enviada por Francisco II, Imperador da Áustria, para compor a comitiva nupcial da futura princesa Leopoldina, por onde vieram Spix, Martius e Pohl [6] . Entretanto, devido a um atraso de outros membros da expedição, Spix e Martius iniciaram a viagem sozinhos, percorrendo, de 1817 a 1820, imensas distâncias, indo do Rio de Janeiro à Amazônia, passando por São Paulo, Minas Gerais, pelo Rio São Francisco e pelas capitanias de Porto Seguro, Bahia, Pernambuco, Piauí, Maranhão, Pará e Rio Negro.
Entre os viajantes estudados, Spix e Martius foram os que percorreram a maior parte de capitanias, o que talvez tenha lhes dado a segurança de denominar a publicação dos relatos de Viagem ao Brasil. Era comum, entre os outros viajantes, frisar, já no título da obra publicada, que se estava tratando de uma parte do Brasil, como em Saint-Hilaire, que dedicou cada volume a uma província, ou conjunto de províncias [7] . Em Pohl, que percorreu, entre 1817 e 1821, as capitanias de Goiás, São Paulo e Bahia, o título “Viagem ao interior do Brasil”, indicava que não havia permanecido somente no litoral, mas sim que havia se embrenhado pelo interior do país em construção. Mesmo remetendo-se somente a porções de tão vasto território, que era o luso-americano, estes relatos eram utilizados como partes de um todo inquestionável, uma vez que é uma imagem de Brasil como totalidade que se visa construir a partir da independência.
É justamente no contexto do início do século XIX que tomam forma diversas transformações políticas e materiais que visam à integração das dispersas regiões coloniais em nome da manutenção da integridade territorial do que era a colônia portuguesa na América. Para Maria Odila Dias, com a vinda da Corte para a América portuguesa ocorreria um processo denominado interiorização da metrópole, que ocasionaria uma ruptura interna nos setores políticos do velho reino e, ao mesmo tempo, um estreitamento de interesses portugueses com os das grandes famílias rurais (interesses voltados para a produção, mas nem sempre separados das atividades de comercio e transportes), frente à perda do papel de intermediário que Portugal tinha no comércio colonial.
Pela primeira vez, “configuravam-se nos trópicos portugueses preocupações próprias de uma colônia de povoamento e não apenas de exploração ou feitoria comercial, pois que no Rio teriam que viver e, para sobreviver, explorar os ‘enormes recursos naturais’ e as potencialidades do império nascente, tendo em vista o fomento do bem-estar da própria população local” (Dias, 1972, p. 82). A partir de então, diretrizes como povoamento, fomento à agricultura e constituição de uma rede de comunicações, passam a fazer parte da política da Coroa, construindo-se um aparato material que tinha como centro a cidade do Rio de Janeiro, capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em 1815.
Frente à civilidade trazida pela sociedade de Corte, é necessário se implementarem melhoramentos nas cidades e nos “cidadãos”, principalmente no Rio de Janeiro, a morada da família real e então capital do Império português. Isso se deu por três vias principais: o ordenamento do espaço, de forma a deixar claras as hierarquias do poder e coibir maus comportamentos, além de embelezar as aparências; o policiamento dos habitantes da cidade, principalmente frente ao aumento do número de homens livres que “vagueavam”; e a divulgação, através da Imprensa Régia e dos manuais de civilidade, assim como pela (pouquíssimo abrangente) educação, dos bons modos e comportamentos (Pechman, 2002)
É também no Rio de Janeiro que se localiza a sede política que deveria centralizar todo o território. Pode-se dizer que até então havia uma política contraditória na atividade colonizadora entre a dispersão, de forma a evitar a união de interesses entre as capitanias, e a aproximação, a partir da constatação, desde o século XVIII, pelo Marquês de Pombal, que era necessário unir esforços para combater inimigos comuns: “Todas as colônias portuguesas são de Sua Magestade, e todos os que as governam são vassalos seus. E nessa inteligência tanta obrigação tem o RJ de socorrer a qualquer das capitanias do Brasil, como cada uma delas de se socorrerem mutuamente (...) logo que qualquer das ditas capitanias for atacada, ou ameaçada de o ser; sendo certas que nesta recíproca união de poder, consiste essencialmente a maior força de um Estado, e a falta dela, toda fraqueza dele” [8] .
Após a vinda da Corte, ainda que se agisse com cautela, a implementação de novos caminhos [9] passa a ser um exemplo da necessidade de prover as outras capitanias de comunicação com a nova capital, já que havia a quase inexistência de ligação entre as capitanias ou regiões da colônia portuguesa da América, apontada por diversos viajantes (Lyra, 1992). “Com a localização do eixo dinâmico da ação centralizadora do Estado absolutista português no Rio de Janeiro, criou-se um ponto de convergência, isto é, um centro de união, não apenas entre as várias partes do território chamado Brasil, como entre este e o reino de Portugal na Europa...” (Lyra, p. 129). Essa mudança na geografia colonial implicaria um rompimento com a política dispersiva e uma busca pela unidade brasileira, que se tornaria uma grande causa a ser defendida no processo de construção de uma nação independente.
A bagagem dos viajantes europeus: empirismo e romantismo
“Sendo o espaço um ‘fato’ da natureza, a conquista e organização racional do espaço se tornou parte integrante do projeto modernizador. A diferença, desta vez, era que o espaço e o tempo tinham de ser organizados não para refletir a glória de Deus, mas para celebrar e facilitar a libertação do ‘Homem’ como indivíduo livre e ativo, dotado de consciência e vontade. Foi a essa imagem que surgiria uma nova paisagem”. David Harvey. A condição pós-moderna.
É no século XVIII, o “século das luzes”, que se gesta uma nova concepção de ciência, que vem acompanhada do racionalismo cada vez mais latente. Segundo Jean Starobinski (1987, p. 115), é a partir desse momento que o espaço passa a ser visto como neutro, em que a ausência de Deus destituía os lugares de seu sacramento, abrindo o campo para a instauração do “espaço da técnica”. A partir do que já haviam anunciado Descartes e Bacon, o século XVIII lança as bases sistemáticas da exploração científica da natureza.
Este processo torna os homens cada vez mais proprietários: das terras, dos objetos, do mundo cada vez mais esquadrinhado e parcelado. A vontade de conhecer a natureza e de dominá-la vem também com a necessidade de guardar algum registro dela: a coleção (por exemplo de herbários, algo muito comum no século XVIII) indica um aspecto dessa vontade, que é, entretanto, paradoxal, uma vez que a incompletude é necessária para a perpetuação contínua do acúmulo de peças, estas tornadas verdadeiros capitais simbólicos (CICERCHIA, 2005, p. 26). È neste processo de apropriação que a imagem vai desempenhar um papel considerável, principalmente através das pinturas (Starobinski, 1987, p. 125).
As expedições para o Novo Mundo se inserem nesse movimento de ânsia pela apropriação de novos lugares. Desde meados do século XVIII, a Europa se lança a um “redescobrimento” do mundo, mas agora com intuitos muito distintos, que se remetem principalmente a uma apropriação científica da natureza “selvagem” dos trópicos. Através da figura dos viajantes, organizados ou não a partir de expedições cientificas, um mundo pitoresco é revelado aos europeus.
Todo esse processo de apropriação tem uma direção bem clara: da Europa partem os viajantes, imbuídos de um conhecimento que lhes conferia status, para a América, onde iriam observar o continente “Novo”, com habitantes que – já que novos... – eram também exóticos e “inferiores”, ainda intocados pela civilização. Na maioria dos autores e filósofos iluministas nota-se um eurocentrismo, em maior ou menor grau, e uma grande influência do pensamento hegeliano, para o qual a natureza e os habitantes em estado selvagem careciam do espírito que movia o Velho Mundo, ou seja, o de realizações históricas.
Hegel, por exemplo, via na ausência de uma história de legados humanos a prova de inferioridade dos habitantes americanos. Nota-se nessa idéia a preocupação em provar a superioridade da civilização européia em relação às demais, a qual irá permear os trabalhos de pensadores como Montesquieu – ao desenvolver sua teoria climática, que tentava constatar a inferioridade dos homens dos trópicos – e de Thomas Hobbes, ao dizer que o estado de natureza era a barbárie, e que as leis eram necessárias para conter o medo e a desordem que reinam no mundo selvagem.
Segundo o conde Buffon, que publica o livro História Natural, geral e particular em 1749, o continente americano em seu estado bruto era hostil ao homem, com suas paisagens pantanosas, inundadas e fétidas, sendo seus habitantes selvagens, “primos” dos animais, marcados pela insensibilidade e pela imaturidade (dando como exemplo a falta de barba). Cornelius De Pauw, seu seguidor, inspira-se numa imagem bíblica para afirmar a inferioridade do continente americano, evocando a decadência após a expulsão do Éden e a destruição diluviana – o que explicaria a impossibilidade de haver leis da sociedade e educação no Novo Mundo. Para De Pauw até os animais que nele habitavam eram de pequeno porte e inferiores. O interessante é constatar que nenhum desses pensadores esteve em continente americano para comprovar suas hipóteses. (Lisboa, 1997; Cicerchia, 2005).
A partir do pensamento de Jean Jacques Rousseau, formula-se toda uma concepção que sugere justamente o contrário do que diziam os autores anteriores: seria o próprio homem civilizado ocidental inferior ao homem em seu estado natural. Inserido num debate sobre as benesses ou não do progresso, Rousseau teve importante posição ao refutar a idéia de progresso desenfreado e da superioridade européia (Rousseau, 1988-89). Imbuídos pelo mesmo espírito de recusa ao progresso – que mostrava suas transformações com a Revolução Industrial – Goethe, Schiller e o movimento romântico Sturm und Drang se voltavam contra as interpretações racionalistas e pregavam um escapismo urbano, com um retorno à natureza pautado na intuição. Esta era enxergada como organismo vivo, que poderia ser percebido pelos cinco sentidos, entre os quais o da visão seria o mais privilegiado, não em razão da observação taxonômica, mas, segundo Goethe, “por ser o que melhor conseguia satisfazer as exigências plásticas do poeta, o seu amor à riqueza e à metamorfose de formas da natureza” (apud Lisboa, 1997, p. 73)
A importância do empirismo para a ciência é indiscutível, e é no século XVIII que este método de pesquisa se torna quase que “obrigatório”. Se a Geografia, como clamam muitos, nasceu com Humboldt, não é à toa que o olhar e o trabalho de campo representaram uma das dimensões fundamentais desta ciência o que inclusive gerou muitas críticas futuras ao caráter meramente descritivo deste saber.
Permeia também os trabalhos dos naturalistas a idéia de que a natureza encontrava-se desordenada, cabendo ao homem ilustrado o seu enquadramento, levando ao impulso nominalista. A taxonomia do sueco Carl Linné, ou Lineu, uma grande referência para qualquer trabalho científico, exemplificava esse ímpeto, que também se propunha universalista, ao ser abrangente suficientemente para classificar mesmo espécies ainda desconhecidas. De acordo com Valéria Souza, “estabelecer classes e categorias tornava-se um impulso generalizado nos meios científicos da Europa, pois se acreditava que nomeando se conhecia o objeto. Nomear tornava-se uma forma de apropriação” (Souza, 1995, p. 177).
Esse tipo de apropriação da natureza através da classificação tornava o desconhecido familiar. Para tanto, a pesquisa científica embasava-se na observação do mundo real, algo que requeria anotações e registros, muitas vezes em forma de pinturas, que acompanha quase todos os relatos de viajantes. Justamente por isso, a pintura vivencia uma relação entre arte e ciência, ao transitar entre a necessidade de registro exato e a criação artística e estética. Para Nicolau Sevcenko (1995, p. 57), “a arte da paisagem nasceu na zona de fronteira entre essas duas forças opostas”. Ou seja, “...qualquer que seja seu feitio ou condição, esse ícone [a arte da paisagem] ao mesmo tempo ratifica o rigor da observação direta, ‘científica’, do artista e proporciona a dimensão evasiva da imagem, sua remissão ao imaginário mítico, seu valor exótico”.
Imbuído dessas influências, o pensamento de Alexandre Von Humboldt [10] teve desdobramentos fundamentais que subverteram a imagem negativa que se fazia da natureza americana [11] . Enxergando nesta natureza um campo riquíssimo e inesgotável para a pesquisa naturalista, Humboldt frisa a importância da observação empírica como método de investigação científica. Sua obra seria referência para todos os viajantes que estiveram no Brasil a partir da abertura dos portos. O pensador alemão conseguiu unir as diferentes influências teóricas de sua época, conjugando missão cientifica com viagem sentimental (o viajante teria que estar receptivo ao “prazer” que a mente sensível recebe da contemplação imediata da natureza). Assim, a natureza dos trópicos seria, para Humboldt, numa definição típica do romantismo, um refúgio às “almas angustiadas” (apud Lisboa, 1997, p. 157), posição assumidamente contrária às assertivas de Buffon, De Pauw e do abade Raynal, que sempre levavam a crer que “a decadência tropical definiria a América” (Lis, 2003, p. 615).
Humboldt foi o pensador que melhor conseguiu unir as diferentes correntes às suas pesquisas na América. É evidente a influencia do romantismo alemão, principalmente no que diz respeito a sua concepção de natureza, unitária e quase supra-real, dotada de uma finalidade. Dizia ele que “a natureza considerada por meio da razão, isto é, submetida em seu conjunto ao trabalho do pensamento, é a unidade na diversidade dos fenômenos, a harmonia entre as coisas criadas, que diferem segundo as formas, a própria constituição e as forças que as animam; é um todo animado por um sopro de vida” (apud Moraes, 2002, p. 93). Sua postura perante a natureza era quase religiosa de contemplação e adoração.
Ao mesmo tempo, Humboldt também sofre forte influencia do empirismo e do pensamento iluminista, afinal ele é, de certo modo, um herdeiro do enciclopedismo e seguidor do racionalismo e da experiência cientifica rigorosa. Sua postura era radicalmente anticlerical e antidogmática, defendendo o ideário da ilustração. Somadas à influência do iluminismo e do romantismo alemão, podem ser encontradas citações de autores clássicos em suas, obras como Aristóteles, Platão e Pitágoras. Além disso, a classificação, propagada por Lineu, empenhava um grande papel nos estudos científicos da época, sendo um importante referencial nos trabalhos do cientista.
Em Humboldt, todavia, a incorporação das idéias Lineu será apenas no âmbito de seu método classificatório, pois quanto à historicidade da natureza, a concepção humboldtiana era contrária a de Lineu e Buffon. Seu método comparativo trazia um movimento, e o fazia perceber que a conexão dos fenômenos não advinha do sistema taxonômico. Essas considerações podem ser tidas como o gérmen da teoria evolucionista, ao admitirem a existência de dinamismo na natureza. Ainda, a idéia do empirismo humboldtiano era associada à comparação, combinação e formulação de hipóteses por indução, reservando um espaço para a intuição frente ao mundo exterior. (Capel, 1983).
Segundo Jean Starobinski (1987, p. 220), no século XVIII, o século das luzes, da claridade, onde a razão quer se expandir, crescerá no homem a vontade de identificar o visível, mas também de ultrapassá-lo: “a visão é o mais expansivo de todos os nossos sentidos: ela nos transporta ao longe, num momento de conquista. E é o próprio sucesso da razão que faz que com que logo o universo sensível não o seja suficiente. A claridade é buscada para além das aparências; os objetivos se situam bem antes do instante sensível. Querer é prever, é ver aquilo que ainda não é, através daquilo que é. Quando triunfa o estilo da vontade, as coisas se tornam um meio e não são mais amadas por elas mesmas”.
A “esplêndida natureza”: percursos e relatos sobre o Brasil
“Cartesius é derrotado pelo calor, pela absoluta inviabilidade tropical de se trancar num quarto. A paisagem super-poderosa dita seu contra discurso, deixando-o atônito, perplexo, frustrado e absolutamente confuso”. Paulo Leminski. O Catatau.
Em seu truncado livro “O Catatau”, um verdadeiro desafio lingüístico ao leitor, o poeta Paulo Leminski brinca com a idéia da impossibilidade de adaptação da lógica cartesiana aos trópicos, através da viagem do personagem Ricardo Cartesius pela Pernambuco de Maurício de Nassau, e de suas frustradas tentativas de, seguindo o filósofo Renée Descartes, se trancar num quarto escuro para se entregar à reflexão. Vencido pelo calor, era obrigado a sair e confrontar a realidade do mundo, para ele inexplicável.
Na virada do século XVIII para o XIX, cada vez mais se critica a postura científica dita de “gabinete”, para valorizar a experiência empírica e o registro dos fatos in loco. Esta postura, na verdade, vinha sendo construída ao longo do século XVIII, em cujo início já se dizia, na Espanha, que não se devia “decir más que lo que ha visto por sí mismo” (Capel, 1985). Mas é na virada para o século XIX que ela parece se afirmar como diretriz absoluta, fazendo com que famosos cientistas “de gabinete” tenham que justificar a importância igualmente significativa do trabalho de reflexão sobre dados coletados por outrem (Kury 2001). Saint-Hilaire, por exemplo, correspondia a este “novo perfil do viajante-naturalista idealizado no meio científico parisiense: pesquisa in loco, especialização, capacidade de produzir informações balizadas, publicação dos resultados” (Kury, 2001), sendo elogiado por Humboldt pelas “observações preciosas que ele fez nos próprios sítios” [12] .
Para estes cientistas e naturalistas, porém, o ímpeto em ver o mundo e desvendar seus segredos vinha acompanhado pela crença em que tudo era passível de classificação, ordenamento e compreensão. Afinal, a concepção de espaço que se gesta a partir de Kant é “aquela que nos permite dar ordem à externalidade, identificando cada coisa em seu lugar” (Santos, 2000, p. 185). De acordo com Iara Lis (2003, p. 604), “a história natural tornava a natureza todo um domínio empírico cognoscível, descritível e ordenável em sua totalidade, retirando-a de uma noção caótica que a marcaria in loco”. Logo, para estes viajantes que aportavam no Brasil no início do século XIX, a paisagem provavelmente não causaria um sentimento de “confusão”, pois seria compreendida a partir dos modelos de ordenamento europeus.
Todo o tipo de tentativa de incorporar o novo cenário e traduzi-lo em uma linguagem compreensível aos europeus era utilizado no estudo da natureza: coleta de diversas amostras, dissecação de espécies, desenhos morfológicos, pinturas da paisagem, medições, descrições, classificações. No Brasil, visto como terra fecunda para os interesses naturalistas, com suas numerosas espécies desconhecidas a serem classificadas, os viajantes se valeram em muito da produção de imagens (desenhos e pinturas) para realizar suas observações, o que pode ser notado em diversos relatos, sempre acompanhados de recursos visuais. A presença de fichas de classificação pode ser verificada na obra de diversos viajantes, como por exemplo, em Johann von Spix e Carl von Martius (1981), em que cada detalhe da morfologia da planta é registrado minuciosamente, ressaltando o papel do desenho cientifico exato e nada fantasioso, onde não há espaço para vôos de criatividade.No entanto, essa perspectiva de incorporação do desconhecido não significa a ausência de sensações de “perplexidade” diante da natureza americana. Afinal o grande naturalista Alexander von Humboldt, e seu método romântico de fazer ciência natural, exerciam influência sobre a maioria destes viajantes que aportaram no Brasil, ansiosos para se espantarem e se deixarem levar pela contemplação da beleza dos trópicos. Parece ser comum à grande maioria destes viajantes a visão extremamente idílica da baia do Rio de Janeiro, porto de entrada para “tão imenso território”. Spix e Martius, logo depois de aportarem na cidade, se declaram estar num “jardim paradisíaco de exuberância e magnificência” (1981, vol. I, p. 43).
Até mesmo John Luccock, sempre atento aos assuntos econômicos e políticos, não pôde deixar de se reportar às belezas naturais da cidade. O viajante inglês admitia que, apesar de seus esforços para não se comover com o efeito de “novidade” ou “contraste” que a natureza tropical causava nos estrangeiros, era “loucamente apaixonado pelo lugar [a baía da Guanabara], não invejando os sentimentos dos homens que são capazes de contemplar o mais resplandecente dos sorrisos da natureza, sem com ele sorrir sempre” (Luccock, 1975, p. 24).
Johann Emanuel Pohl vai ainda mais além: descreve a baía de Guanabara como “pujante e grandiosa” e reserva ao Rio de Janeiro a alcunha de “Olho do Brasil”. E completa: “se algum ponto do Novo Mundo merece, por sua situação e condições naturais, tornar-se um dia teatro de grandes acontecimentos, um foco de civilização, e cultura, um empório do comércio mundial, é, ao meu ver, o Rio de Janeiro. [...] De bom grado a fantasia paira sobre o futuro de tão sedutor país, que tem um presente pouco desenvolvido e, por assim dizer, não tem passado” (1976, p. 38). Esta frase é emblemática de um posicionamento presente em quase todos os viajantes-naturalistas das primeiras décadas do século XIX. Trata-se do elogio ao “cenário natural” do Brasil, em detrimento de sua “civilização”, que ainda teria que ser construída. Já nestes discursos, identifica-se o Brasil que se formava com a idéia de uma enorme potencialidade, contida em tão rica natureza, formulando-se a imagem de um país cujo futuro conteria grandes êxitos (seria aqui que poderíamos identificar a origem da máxima, hoje já um pouco desgastada, “Brasil: o país do futuro”?)
Como já dito, a visão dos naturalistas é possuidora de um olhar que mais se aproxima ao olhar geográfico nascente, ou seja, aquele voltado para a escala da paisagem, que previa uma descrição que se propunha totalizadora, indo dos comportamentos sociais, ao uso da terra, passando pela atenta descrição e diferenciação de tribos indígenas, entrando no âmbito da classificação botânica, mas sem dissociá-la de seu conjunto paisagístico. É inegável, entretanto, que apesar de se proporem abrangentes, estes relatos se voltavam mais à descrição da “natureza brasílica”, visto que este “era um dos assuntos preferidos desses viajantes, em sua exuberância, grandeza e diversidade” (Lis, 2003, p. 617). Neste ponto, novamente uma passagem de Pohl é elucidativa. Depois de fazer uma descrição um tanto desinteressada sobre os costumes sociais na cidade do Rio de Janeiro, o austríaco retoma o entusiasmo quando volta-se à descrição do mundo natural: “passo agora, dessas descrições da vida no Rio, para a esplêndida Natureza e conduzo o leitor ao ar livre, onde tudo reverdeja e cresce viçosamente” (Pohl, 1976, p. 47).
Este intuito correspondia às expectativas do leitor europeu “sedentário” de entrar em contato com o “exótico” e “pitoresco”, e de retornar ao idílico, já que o cenário urbano europeu era aquele que se deixava tomar pela recente Revolução Industrial. Desse modo, pode-se afirmar que “havia um imperativo em explicitar uma paisagem própria ao Brasil entre esses viajantes do início do XIX, que dá, para nossa contemporaneidade, a impressão de que ampliaram o retrato do Brasil, formulando maximamente em sua totalidade tão ambicionada, sobretudo ao conformarem um amplo quadro da natureza em sua completude e unidade, suscitando um efeito sensível agradável no espectador” (Lis, 2003, p. 624).
Seguindo a idéia de Humboldt, a descrição minuciosa de espécies levada a cabo pelos viajantes, também exigia a contextualização das plantas no seu “entorno”, valorizando o recorte da paisagem (enquanto apreensão possível do visível) como recurso explicativo e estético. Esta “superlativa valoração da vegetação tropical como motivo pictórico e as minuciosas e eruditas observações acerca dos diversos tipos de plantas que podem conviver num mesmo ambiente introduziram à criação de uma nova linguagem artística para o registro da natureza de ultramar” (Diener & Costa, 2002). Na figura 2, pintura feita por Carl von Martius, em complementação à figura 1, há o exemplo da “mudança de escala” do registro naturalista, em que duas espécies vegetais, que dão título à pintura, são agora retratadas em meio a seu habitat natural, em harmonia com as outras espécies, num exemplo típico da diversidade botânica das matas tropicais. Também discorrendo sobre esta diversidade, Saint-Hilaire atesta que, na floresta tropical dos arredores do Rio de Janeiro, “nada faz lembrar a fatigante monotonia dos nossos bosques de carvalhos e pinheiros; [pois] cada árvore ostenta, por assim dizer, um porte que lhe é próprio; cada qual tem sua folhagem, que freqüentemente difere do matiz da das árvores vizinhas” (Saint-Hilaire, 2000, p. 20). Estas pinturas de paisagem possibilitavam também a aplicação de técnicas de luz e sombra em que o “sentimento de natureza” (Naturgefühl) herdado dos românticos era passado ao espectador. Isso somava-se aos trechos mais literários dos relatos, como aquele em que Spix e Martius alegavam que tudo agia “com magia toda especial na alma do homem sentimental renascido pelo espetáculo do delicioso país” (Spix & Martius, 1981, vol.I, p. 80). O aspecto da contemplação também é presente nos relatos (e é curioso notar diversos trechos poéticos sobre a mata à noite, envolta pelo luar e pelo céu estrelado, dando a impressão de que neste período do dia os viajantes se permitiam com mais afinco o “desarme” do olhar de cientista [13] ). Estes viajantes procuravam, no decorrer de seu percurso, estar abertos à influência poética que a natureza exerceria na alma do “homem sentimental”. Saint-Hilaire (2000, p. 53), durante sua estadia afirmava que: “tudo que rodeia o viajante se associa para produzir em seu espírito uma impressão deliciosa”.
No entanto, é necessário notar que para conseguir atingir o “sentimento de natureza” era preciso ter sensibilidade e erudição. Pois a natureza, no contexto da Ilustração, passou a ser vista como um estímulo diante do qual os sujeitos reagem (o que a tornou passível de ser objeto de pesquisa cognitiva, portanto algo que poderia ser dominado). Apenas aqueles que possuíam muitos conhecimentos poderiam desfrutar da contemplação da natureza como algo revigorante à alma. Ou seja, esta admiração da natureza americana somente poderia ser realizada pelo homem europeu culto, o que conferia a este olhar um duplo distanciamento. Nesta ilustração de Spix e Martius, há um exemplo desta erudição, implícito nos trajes europeus dos observadores, que indicam que a observação da natureza era reservada aos eruditos, o que se soma, ainda, à posição de poder reservada a estes homens cultos materializada nas armas. Ainda, esta ilustração é emblemática para demonstrar o conflito entre a contemplação romântica e a necessidade de realizar registros científicos, como se lê na descrição dos autores: “Quando à tarde contemplamos uma dessas lagoas, que espetáculo estranho se apresentou aos nossos olhos! Centenas de róseos colheiros perfilavam-se reunidos ao longo da margem [...] e, quanto mais observávamos o raro panorama, em que as aves, com inata independência, representavam seu papel no espetáculo da natureza, tanto menos vontade sentíamos de perturbar, com mortíferos tiros, aquele cenário palpitante de vida” (Spix & Martius, 1981).
A auto-representação presente na ilustração também nos leva à indagação sobre a emergência de um “sujeito-em-trânsito”, que ao realizar uma viagem por distâncias físicas também estaria excursionando pelo seu próprio ser (Süssekind, 1990). Para a autora, seria apenas em poucos momentos que se identificaria este desarme do olhar científico, pois geralmente o aprendizado e a auto-reflexão pareciam não caber nos objetivos do viajante-naturalista do início do século XIX. Afinal este já inicia a viagem com “o trajeto formado, com sólidos conhecimentos de ciências naturais que apenas testa e amplia diante de novos espécimes e terras desconhecidas. O aprendizado aí não é, pois, exatamente de si mesmo, mas da própria capacidade de resistência e trabalho em condições por vezes bastantes adversas”.
Luciana Martins (2001), por outro lado, acredita que todo o processo de formulação de imagens sobre o Brasil do início do século XIX, através do olhar estrangeiro, estava imbuído num contexto em que o sujeito observador era tomado de surpresas e construía sua narrativa conforme ia construindo a si mesmo, através da experiência vivida. A autora acredita, portanto, na realização de um aprendizado e de uma construção constante do sujeito e da paisagem. Além disso, as imagens gestadas neste processo indicariam, para ela, “não uma geografia estática do passado, mas uma geografia imaginativa em formação, onde, no registro material das paisagens dos lugares, vislumbram-se, nebulosas, as paisagens das idéias” (Martins, 2001, p. 12). Realmente percebe-se, nos relatos, a matéria viva de que eram feitos, desenrolando-se durante o percurso, ou seja, concomitantemente com a própria experiência.
No entanto, são raros os trechos que poderiam apontar na direção deste sujeito reflexivo, cuja experiência é transformadora. Encontram-se, nos relatos, momentos de fragilidade, em que de repente o poderoso cientista, detentor do controle, se vê sem meios para apreender um cenário selvagem e desordenado, que ao invés de provocar encanto só suscita o medo. Tanto que para Spix e Martius a natureza poderia ser o inferno, em seu aspecto mais sombrio, como na serra de São Geraldo, em Minas Gerais: “...escura como o inferno de Dante fechava-se a mata, e cada vez mais estreita e íngreme, a vereda nos levou por labirínticos meandros, a profundos abismos, por onde correm águas tumultuosas de riachos, e, ora aqui, ora ali, jazem blocos de rocha solta. Ao horror, que esta solidão agreste infundia na alma, acrescentava-se ainda a aflitiva perspectiva de um ataque de animais ferozes ou de índios inimigos que a nossa imaginação figurava em pavorosos quadros, com os mais lúgubres pressentimentos” (Spix & Martius, 1981, vol. I, p. 220).
Os viajantes admitem sentir horror neste momento, mas nem por isso deixam, em outra situação, de inferiorizar indígenas do Rio Negro (como os da tribo catauaxis) pelo fato de serem “medrosos”. Para eles: “a imaginação assombrada dos rudes aborígenes da América cerca-os por todos os lados de máscaras e figuras pavorosas, de cujo influxo a sua mentalidade aterrorizada nunca se liberta; e em todos os seus atos têm medo e pavor como constantes companheiros. Também a sua língua conhece o termo terror.” (Spix & Martius, 1981, vol. III, p. 104). Diferentemente destes índios, Spix e Martius já haviam se “libertado” do influxo terrível do medo, constituindo-se em dominadores da natureza, raramente se fazendo assustar por seus perigos. Mas será que, tal qual Ulisses/Odisseu, que também vence a natureza, eles retornam à Europa, sua Ítaca, como sujeitos transformados? Talvez possa-se afirmar que, em parte, sim, mas tal transformação não chega em nenhum momento ao questionamento da superioridade européia, idéia da qual seria realmente muito difícil se libertar. O encontro entre mundos e a produção de sentidos de identidade e alteridade obedecem a relações complexas. Ao mesmo tempo em que parecem pertinentes incursões mais abrangentes sobre os processo de “transculturação”, conforme desenvolvido por Mary Louise Pratt (1999), é impossível negar a desigualdade simbólica que estava em jogo, em que os viajantes europeus, mesmo abrindo-se às novas sensações suscitadas pela experiência, não realizavam uma reflexão que transgredisse os modelos e ideais que cercavam seu imaginário na chegada aos trópicos.
A natureza e a construção do Brasil
As observações in loco realizadas por esses viajantes, com seu espírito cientificista, ajudaram a desmistificar a visão negativa da natureza americana, e brasileira, construindo, por sua vez, uma idéia de fecundidade e pureza, além da freqüente idéia de grandeza. A partir destes relatos, passa a ser inegável que as matas brasileiras continham uma enorme diversidade e conseqüente potencial para pesquisa. Pintando a natureza dos trópicos como “painel da máxima opulência”, estes e outros viajantes contribuem para a mudança da imagem que se fazia das terras abaixo da linha do Equador, chegando muitas vezes a afirmar a superioridade desta natureza em relação à européia. Saint-Hilaire (2000, p. 20), por exemplo, indicava que “para conhecer toda a beleza das florestas tropicais é preciso penetrar nesses retiros tão antigos como o mundo”, demonstrando que não compartilhava da idéia de que a natureza do Novo Mundo teria se formado posteriormente a do Velho Mundo. Spix e Martius (1981, vol. II, p.103), em dado momento, se declaram reconfortados pela beleza natural do Brasil, que proporcionava “tanta serenidade de alma, que nos sentimos ricamente compensados da falta do ambiente civilizado”. Ainda, o francês Ferdinand Denis, em seu Resumo da história literária do Brasil, de 1825, destacando a magnitude das belezas da América portuguesa afirma que “se os poetas dessas regiões fitarem a natureza, se se penetrarem da grandeza que ela oferece, dentro de poucos anos serão iguais a nós, talvez nossos mestres” (apud Lis, 2003, p. 624), admitindo a possibilidade, nada convencional, da colônia suplantar a metrópole em termos artísticos.
Para Sérgio Buarque de Holanda (1975, p. 13, 14), os inúmeros viajantes a aportarem no Rio de Janeiro teriam uma função considerável na criação de uma imagem de Brasil, uma vez que este olhar estrangeiro acaba por trazer ao habitante local um ponto de vista ignorado ou esquecido, reavivando um sentimento de pertencimento a um grande país. Em sua “Viagem pelo Brasil”, Spix e Martius relatam que, reunindo material rico e variado, de diversas localidades, sempre apresentavam ao povo seus resultados, comentando que estes eram “alvo de admiração da gente da cidade, que peregrinavam em multidão à nossa casa, para ver as riquezas de sua pátria, tão pouco conhecida deles próprios” (apud Lisboa, 1997, p. 115).
Mas as ameaças a esta fecundidade também foram vislumbradas por estes viajantes. Durante sua estada no país, Spix e Maritius (1981, vol. II, p. 102, 103) puderam verificar o estado em que se encontravam as matas nativas, chamando a atenção para o intenso desmatamento: “Na solidão da viagem [...], despertou o voto para que já, sem demora, se iniciem estas investigações na terra fecunda, antes que a mão destruidora e transformadora do homem tenha obstruído ou desviado o curso da natureza. Só por poucos séculos ainda disporá a ciência de completa liberdade de ação para este fim, e os subseqüentes investigadores não mais obterão os fatos na sua pureza, que já hoje, pela atividade civilizadora deste país em vigoroso progresso, está sendo transformada em muitos respeitos”. Neste apelo, a dupla de viajantes demonstra suas razões sobre a necessidade de se preservarem as matas nativas: elas seriam indispensáveis para a realização de pesquisas futuras sobre as plantas. Essa justificativa de preservação para a pesquisa não poderia ser mais condizente com a posição dos dois naturalistas bávaros, pois eram eles europeus interessados em viajar longas distâncias para encontrar a natureza em estado de pureza, seja para pesquisá-la, seja para desfrutar de suas belezas e tranqüilidades.
Luccock (1975, p. 24) também chama a atenção para “as mudanças sofridas por esses matos [nos arredores do Rio de Janeiro] que até há (sic) pouco subsistiram”, o que seria lamentável, para o viajante inglês, se não fosse a lembrança “de que eles assim contribuíram com sua parte para as necessidades do homem, fornecendo à cidade que lhes fica ao pé o valioso artigo do combustível e sendo ainda empregados no fabrico tanto do necessário como de muitos luxos da vida”. Percebe-se que a postura destes viajantes diferia, uma vez que em nenhum momento Luccock cita a importância dos bosques virgens para realização de pesquisas, ainda que acreditasse que houvesse um efeito benéfico “dos cenários belos sobre a mente humana” (Luccock, p. 24). É justamente para a destruição da floresta da Tijuca, notada por Luccock, que Félix Emille de Taunay, membro da missão artística francesa direciona seus pincéis e registra o desmatamento da mata atlântica (figura 4), contrastando a magnitude da mata (local também da umidade) com a parte desmatada (local seco, em que ainda há fumaça). Mesmo não tendo redigido relatos, Taunay não deixou de construir imagens que muito diziam a respeito da natureza brasileira. Saint-Hilaire também chama a atenção para os métodos agrícolas destrutivos propagados na América portuguesa. Segundo ele, “com exceção da Província do Rio Grande do Sul, da de Missões e da província Cisplatina, não se fez uso, no Brasil meridional, nem do arado, nem de fertilizantes: todo o sistema de agricultura brasileira é baseado na destruição de florestas, e onde não há matas não existe lavouras” (2000, p. 90). Saint-Hilaire discorre também, diversas vezes, sobre a necessidade de melhor aproveitar a terra e os recursos naturais disponíveis no território luso-americano. Fazendo um levantamento das plantas utilizadas pelos indígenas para fins medicinais e para a confecção de roupas e instrumentos, ele atesta que havia uma riqueza desconhecida do governo português, que deveria ser melhor estudada [14] .
É curioso que nos relatos de John Mawe, entretanto, se distingue um olhar nada romântico e muito dirigido ao progresso humano. Mesmo preocupado em analisar a formação geológica dos lugares que visitiva (possivelmente para identificar jazidas minerais), este mineralogista inglês estava sempre atento à presença de obras humanas e de “civilização”. Quando caminhava em meio à “solidão” das matas, anotou: “nada observamos digno de menção” (Mawe, 1978, p. 93), deixando transparecer que não possuía anseios naturalistas. Descrevendo uma fazenda no caminho entre a cidade do Rio de Janeiro e Cantagalo, o viajante destaca que “o lugar desfruta[va] de uma ótima situação e pod[er]ia, sob administração hábil e industriosa, tranformar-se em paraíso” (Mawe, p. 92). Ou seja, no entendimento de Mawe, o “paraíso” só poderia ser atingido através do trabalho humano, não sendo, como para Spix e Martius, algo que se pudesse identificar na natureza em seu estado puro.
Seu relato se distancia da maioria dos outros realizados por viajantes, principalmente dos naturalistas, no que diz respeito à exaltação da natureza. Mas, no que diz respeito à observação da sociedade, ele se assemelha à visão de Saint-Hilaire, que critica o mal uso que se fazia da natureza e a postura de recusa ao progresso. Ambos compartilhavam também a visão dos fisiocratas de que a mineração era um mal à sociedade, sendo a agricultura a verdadeira atividade a que deveria se dedicar o país. (Mawe, 1978, p. 103; Saint-Hilaire, 2000, p. 46)
Em sua totalidade, as descrições de viajantes naturalistas se remetiam, de alguma forma, aos habitantes do Brasil de maneira negativa, seja zombando de costumes da Corte, seja criticando a falta de iniciativa de colonos, seja desclassificando os “batuques bárbaros” dos negros escravizados, ou julgando a inferioridade indígena. Para Spix e Martius (1981, vol. III, p. 133), os indígenas das tribos cariris e sabujas eram “indolentes, preguiçosos e visionários, indiferentes a qualquer estímulo, a não ser as mais baixas paixões, e revelam na expressão mesquinha do rosto este estado de decadência moral. Mais propensos a adotar os defeitos do que as virtudes dos europeus, seus vizinhos, preferem passar o dia inteiro caçando...”. Já para Saint-Hilaire (2000, p. 33), os Coroados (da região de Ubá) eram “indiferentes, tristes, apáticos; [...] e suas atitudes lembram"[15] .
Esta disparidade na construção de imagens sobre a natureza e civilização no Brasil é acentuada mais ainda a partir da incorporação seletiva que será feita destes relatos. Se, para além das flores, os viajantes muitas vezes criticavam alguns aspectos da sociedade luso-americana, na utilização dos textos e imagens produzidos ressaltar-se-á somente a imagem estática da natureza triunfante. Para Flora Süssekind (1990, p. 123) na construção da literatura ficcional no Brasil dos anos 1830 e 1840, selecionavam-se elementos capazes de “rascunhar origens étnicas e identidades nacionais mesmo onde se vêem ruínas de aldeias e divisões políticas e sociais. Pautados não apenas na ciência da observação, mas da exclusão. E exclusão não só de um modo de olhar reflexivo, descartado em prol ora do encantamento, ora de armadura naturalístico-paisagística, mas também, na figuração territorializada do Império, de qualquer ênfase nas divisões provinciais”.
Na dificuldade de vislumbrar uma saída para a difícil equação da nação em um país “sem passado”, imerso em contradições tão fortes, a incorporação desses relatos se deu pelo caminho que levava às exaltações da natureza, fosse ela edênica ou útil. Se na literatura se privilegiou mais o primeiro aspecto, nos projetos políticos para o Brasil em formação exaltou-se o segundo, defendendo a grandeza e indivisibilidade do território, com suas potencialidades naturais, na forma de recursos. Com idéias que remetem a Saint-Hilaire e John Mawe, José Bonifácio de Andrada e Silva [16] , constrói o seu projeto para o Brasil independente pautado na revisão das práticas agrícolas, na melhor exploração dos recursos naturais, na rígida manutenção da unidade territorial [17] e na necessária (ainda que gradual) abolição da escravatura. Para ele, a questão social, que teve grande peso em suas considerações, seria resolvida por um “amálgama de raças” a ser conseguido no futuro, através da miscigenação. Se as promessas da natureza pródiga reservavam ao Brasil um futuro grandioso, a resolução de questões sociais também passaria por um porvir e pela condenação do passado colonial, relegando a população a mero instrumento da construção territorial do país.
Notas
[1] Se é partir de 1808 que viajantes estrangeiros começam a chegar, é necessário lembrar que os viajantes franceses somente aportam no Brasil a partir de 1816, visto que até então França e Portugal haviam cortado relações diplomáticas, durante conflito sobre a demarcação de fronteiras entre a Amazônia e a Guiana francesa.
[2] A inglesa Maria Graham comenta em seu diário o caráter “destituído de curiosidade” de seus colegas ingleses, visto que estes só se interessavam por assuntos econômicos, “com exclusão de todos os assuntos públicos que não tenham referência direta com o comércio particular”. “Nenhum sabia o nome das plantas que cercam a própria porta; nenhum conhecia a terra a dez léguas além do Salvador...”, queixava-se, demonstrando uma valorização do conhecimento naturalista. (apud Souza, V. S., 1995, p. 181). Todavia, tanto John Luccock quanto John Mawe conheceram muitos lugares além da cidade do Rio de Janeiro, mas realmente os anseios naturalistas não estavam entre as suas preocupações.
[3] Na verdade, levavam o mérito sozinhos, pois qualquer viagem da época requisitava acompanhantes para carregar bagagens, conduzir os animais e indicar caminhos.
[4] O viajante francês, a partir do Rio de Janeiro, percorreu as Minas Gerais, o Espírito Santo, o Rio Doce, as nascentes do Rio São Francisco e Jequitinhonha, Goiás, Cuiabá, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
[5] Dela faziam parte os pintores Jean-Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay e seu filho Felix Emille Taunay, os escultores Auguste Marie Taunay, Marc e Zéphirin Ferrez e o arquiteto Grandjean de Montigny.
[6] Os membros da Expedição eram: Mikan, doutor em Medicina e botânico; Pohl, mineralogista e botânico; Natterer, assistente de Zoologia; Schott, real e imperial jardineiro; Raddi, naturalista da Toscana; Spix e Martius, “Reais naturalistas bávaros”; Ender, pintor de paisagens; Buchberger, desenhista de plantas.
[7] Lembre-se que é a partir de 1822 que as capitanias passam a ser denominadas províncias, o que explica o fato de os livros de Saint-Hilaire, publicados posteriormente a 1822, já levarem em seu título o termo “província”.
[8] Discurso proferido em 1757 (apud Mendonça, M. C. 1953, p.73)
[9] Cartas Régias de 16.08.1810 e de 04.12.1816. Ordena a providencia de abertura de vias de comunicação por água e por terra. Coleção de Leis do Brasil. Vol. 1810-1811 e 1816-1819. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1891. (apud Lyra, M. L. V, 1992).
[10] O grande naturalista Alexandre Von Humboldt nasceu na Prússia em 1759, no berço de uma família aristocrática. Teve como seu tutor J. H. Campe, um seguidor das idéias de Rousseau – fato decisivo que influenciaria as idéias de Humboldt mais tarde e no que diz respeito à observação direta da natureza e de suas excursões a campo. (MORAES, A. C, 2002).
[11] Em 1799, Humboldt e seu parceiro Aimé Bonpland partem com destino à América. Passam pelas Canárias, por Havana e pela Costa da Venezuela e fazendo então sua famosa viagem pela Amazônia. Depois visitam Cuba e México retornando a Havana posteriormente e migrando em direção a Filadélfia, passando um tempo nos Estados Unidos e finalizando, assim, sua viagem. Em 1804 Humboldt inicia sua produção geográfica, assim como a elaboração de relatos de viagem e de obras que virão a seguir.
[12] “...o que concede verdadeiro valor a objetos tão numerosos, o que distingue o viajante cientista do simples coletor, são as observações preciosas que ele fez nos próprios sítios, para fazer avançar o estudo das famílias naturais, a geografia das plantas e dos animais, o conhecimento das variedades de solo e o estado de seu cultivo”. Trecho de discurso de Kury, 2001)
[13] “Durante o período de sentinela, que costumávamos alternar com nossos tropeiros, tivemos a ocasião de gozar do esplendor das noites estreladas tropicais a cada dia durante a satisfação que a riqueza da região em variadas plantas nos proporcionou, regozijamo-nos dessas horas solitárias de contemplação e recordação” (Spix & Martius, 1981, vol. II,113).
[14] “Poder-se-iam retirar do reino vegetal riquezas não menos importantes que as fornecidas pelo reino inorgânico. Os lavradores empregam em suas doenças uma multidão de plantas medicinais, e várias delas, mais bem conhecidas, poderão, sem dúvida, tornar-se de grande utilidade”. “[O governo português] despreza inteiramente uma multidão de plantas indígenas cujas fibras flexíveis podem ser tão utilmente empregadas no fabrico de cordoalhas e tecidos...” (Saint-Hilaire, 2000, p. 91 e 61, respectivamente)
[15] Saint-Hilaire, comparado a Spix e Martius, tinha uma visão muito mais positiva dos indígenas, mas diversas vezes deixa transparecer que a falta de civilização seria um embaraço ao progresso do país.
[16] O rol de influências que compõem o pensamento de Bonifácio é muito mais extenso do que restrito às idéias dos viajantes estrangeiros e não se trata aqui de fazer uma ligação automática entre essas idéias. O papel de Domenico Vandelli na formulação de suas idéias já é bastante conhecido. Entretanto, sabe-se, em relação a Saint-Hilaire por exemplo, que em 1820, Bonifácio homenageou o botânico por seu espírito esclarecido, antes mesmo da publicação de seus escritos, o que demonstra que o “patriarca da Independência” deveria conhecer já as idéias do renomado viajante (Potelet, J. 1993).
[17] “E que país é este, senhores, para uma nova civilização e para um novo assento das ciências! Que terra para um vasto e grande império!”... “[Um território] banhado pelas ondas do Atlântico, com um sem número de rios caudais”, “riquíssimo nos três reinos da natureza”... José Bonifácio (apud Pádua, J. A. 2004, p. 143).
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© Copyright Flora Medeiros Lahuerta, 2006
© Copyright Scripta Nova, 2006
Ficha bibliográfica:
MEDEIROS LAHUERTA, F. Viajantes e a construção de uma idéia de Brasil no ocaso da colonização (1808-1822). Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2006, vol. X, núm. 218 (64).[ISSN: 1138-9788]
A natureza dessacralizada que surge com o triunfo do Iluminismo é um espaço aberto para pesquisas de todo o tipo, que a dissequem, expliquem, diferenciem, classifiquem. E é neste contexto que a natureza americana passa a ser investigada com outros olhos: ela não necessariamente é melhor, mas nada indica a sua inferioridade; ao contrario, a diversidade da vegetação, a vivacidade das cores, a pluralidade de formas leva a um deslumbramento diferente do fantasioso: esta natureza, além de bela, é dotada de riqueza e potencial. Os modelos europeus têm que se render ao trópico, sem deixar de controlá-lo, no entanto.
Há uma pluralidade de discursos e de propósitos quando analisamos os relatos de viajantes que estiveram no Brasil no início do século XIX. Nos detivemos, neste artigo, mais no pensamento dos viajantes naturalistas, principalmente em Auguste de Saint-Hilaire e em Johann von Spix e Carl von Martius, mas também de Johann Emmanuel Pohl, por mais de um motivo. Primeiramente, por ser o olhar dos viajantes naturalistas o que mais se aproxima ao do geógrafo que logo mais ganharia espaço acadêmico. Para Luciana Martins (2001, p. 42), o olhar dos naturalistas se caracterizaria pela abrangência do conjunto de elementos naturais, “na tentativa de decifrar a história da terra e, por conseguinte, do homem”, reportando-se, assim, aos horizontes longínquos. Diferente seria o olhar dos marinheiros, votados para a costa, e o dos artistas, voltados para as atmosferas locais e o jogo de luzes. Deve-se frisar, entretanto, que a própria distinção entre arte e ciência não fazia tanto sentido, e era comum um botânico ou zoólogo, por exemplo, realizar belos exemplos de pintura considerados como arte.
Para completar, também investigamos os comentários de John Luccock e John Mawe, ambos ingleses, o primeiro um comerciante e viajante renomado, o segundo um mineralogista de estreitas relações com a Corte portuguesa. Estes relatos são importantes na medida em que fornecem um contraponto ao olhar naturalista. Além disso, tanto os escritos destes como os dos primeiros viajantes citados foram muito lidos e incorporados pela produção literária e intelectual posterior, desde o Instituto Histórico e Geográfico até publicações recentes.
Com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, em 1838, diversos relatos seriam publicados (ou republicados) e, ainda, através desta instituição, Martius publicaria, em 1844, o texto “Como escrever a História do Brasil”. Até hoje utilizados como fonte primária de estudos, estes relatos contêm uma enorme riqueza de detalhes e podem gerar interpretações diversas sobre os mais variados assuntos. Por isso, também, mais uma vez se fez necessário um recorte, pelo qual analisou-se principalmente as contribuições destes viajantes para a construção de uma imagem da “natureza esplêndida” que o território brasileiro conteria, em detrimento de realizações históricas e culturais significantes. Idéia muito forte no imaginário brasileiro, a de um país “abençoado por Deus” onde os “bosques têm mais vida”.
Ao estudarmos as viagens do século XIX e como essas visões formaram uma imagem de Brasil, no âmbito da construção do Estado emancipado e de um imaginário nacional, também estamos entrando num movimento de busca das origens do próprio pensamento geográfico, pois nestas descrições se encontra a gênese de várias diretrizes que nortearão a produção geográfica do século XIX, e mesmo depois. Ainda, há de se ressaltar que a geografia, por muito tempo, foi associada ao estudo do presente, sem dirigir grandes atenções às geografias passadas. Quando o fazia, por vezes realizava a apreensão de formas estáticas do passado, não conseguindo captar a historicidade intrínseca à realidade (Abreu, 2000). Desse modo, o estudo de geografias históricas se faz necessário para resgatar o movimento presente na construção do espaço e das ideologias geográficas (Moraes, 1988). Essa ligação se mostra muito pertinente hoje, pois ao lidar com essas categorias que se remetem ora ao fluido, ora ao estático, ora às idéias e ações, ora às materialidades, o pensamento também tem que atravessar constantemente a ponte entre a rigidez da conceituação e a fluidez da realidade sobre a qual se debruça.
A metrópole nos trópicos
“Paira sobre o trópico a clareza da luz civilizatória de Apolo; na sombra densa da Mata Atlântica, de pés firmes no chão, senta-se sua irmã gêmea, Ártemis, para alimentar os homens com suas mamas múltiplas e cheias de leite”. Gustavo Rocha-Peixoto. Reflexos das Luzes na Terra do Sol.
As invasões napoleônicas terão distintos efeitos sobre as colônias das metrópoles ibéricas. Se na América Hispânica a crise sobre a legitimidade dinástica contribuiu para a irrupção de organizações autônomas, manifestas, por exemplo, nas proclamações de “cabildo aberto” como ocorreu em Buenos Aires, na América portuguesa a vinda da Corte para o Rio de Janeiro, em 1808, propicia um desenrolar de uma história muito peculiar, em que a independência se fez sob a égide da monarquia e com a manutenção da escravidão, após a transformação da “periferia” em “centro”, com a presença da metrópole nos trópicos.
A partir desta nova configuração, algumas decisões não poderiam deixar de ser tomadas, frente a uma conjuntura delicada (após os acontecimentos do final do século XVIII, como a Conjuração mineira em 1789) e à crescente presença inglesa nos negócios portugueses. Assim, pouco tempo depois da atracação da frota que trouxe a família real e os membros da Corte, assinou-se a Carta Régia que declarava a abertura dos portos “às nações amigas”. Isso implicava numa abertura econômica, mas também cultural, visto que a América portuguesa até então permanecia fechada aos olhares estrangeiros (destaque-se que ingleses circulavam mais livremente antes mesmo desta data), suscitando indescritíveis elucubrações sobre o que esconderia tão vasto território.
Sérgio Buarque de Holanda descreve este momento como um “novo descobrimento do Brasil”: “A não ser no Quinhentos e, até certo ponto, no Seiscentos, nunca o nosso país parecera tão atraente aos geógrafos, aos naturalistas, aos economistas, aos simples viajantes, como naqueles anos que imediatamente se seguem à instalação da Corte portuguesa no Rio e à abertura dos portos ao comércio internacional. O fato acha em si mesmo sua explicação. A contar de 1808 ficam enfim suspensas as barreiras que, ainda pouco antes, motivaram o célebre episódio daquela ordem régia mandando atalhar a entrada em terras da Coroa de Portugal de ‘certo Barão de Humboldt, natural de Berlim’, por parecer suspeita a sua expedição e sumamente prejudicial aos interesses políticos do Reino. De modo que a curiosidade tão longamente sofreada pode agora expandir-se sem estorvo, e não poucas vezes, com o solícito amparo das autoridades”. (Holanda, 1975, p. 12).
Segundo Elizabeth Mendes, os viajantes que aportaram no país entre 1808 e 1822 [1] podiam ser classificados como: naturalistas, assim como Auguste de Saint-Hilaire, Edward Pohl e Johann von Spix e Carl von Martius; artistas, como Jean Debret e os membros da missão artística francesa; militares, como os prussianos Leithold e Raugo; alguns especialistas contratados pela Coroa para um serviço específico, como o mineralogista Eschwege; e ainda os viajantes renomados, membros de uma burguesia comercial inglesa e francesa, como John Luccock, Koster e Tollenare, geralmente interessados em verificar assuntos de importância econômica. As descrições políticas foram contempladas mais por estes últimos, que geralmente se mantinham apenas nas cidades [2] ; o estudo da natureza coube, no entanto, como é de se prever, aos viajantes naturalistas, que se propuseram a adentrar o interior do Brasil em busca do conhecimento de novas espécies.
Muitos desses viajantes realizavam sozinhos a sua empreitada [3] , como Saint-Hilaire, que percorreu o centro-sul do Brasil [4] de 1816 a 1822. Ainda, Luccock e Mawe também eram viajantes solitários. O primeiro percorreu o Rio de Janeiro e as províncias setentrionais do Brasil em duas viagens, uma em 1813 e outra em 1818. Já Mawe entrou em terras brasileiras pelo sul, indo, de 1809 a 1811, de Santa Catarina até o Rio de Janeiro e Minas Gerais, quando obteve permissão real para conhecer as veladas minas de diamantes do Arraial do Tejuco. Mas era comum na época o envio de missões, como a missão artística francesa (1816), chefiada por Joaquim Lebreton, contratada pela Coroa portuguesa para retratar os membros da Corte e fundar a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, transformada, em 1826, na Imperial Academia e Escola de Belas-Artes [5] ; e a expedição científica enviada por Francisco II, Imperador da Áustria, para compor a comitiva nupcial da futura princesa Leopoldina, por onde vieram Spix, Martius e Pohl [6] . Entretanto, devido a um atraso de outros membros da expedição, Spix e Martius iniciaram a viagem sozinhos, percorrendo, de 1817 a 1820, imensas distâncias, indo do Rio de Janeiro à Amazônia, passando por São Paulo, Minas Gerais, pelo Rio São Francisco e pelas capitanias de Porto Seguro, Bahia, Pernambuco, Piauí, Maranhão, Pará e Rio Negro.
Entre os viajantes estudados, Spix e Martius foram os que percorreram a maior parte de capitanias, o que talvez tenha lhes dado a segurança de denominar a publicação dos relatos de Viagem ao Brasil. Era comum, entre os outros viajantes, frisar, já no título da obra publicada, que se estava tratando de uma parte do Brasil, como em Saint-Hilaire, que dedicou cada volume a uma província, ou conjunto de províncias [7] . Em Pohl, que percorreu, entre 1817 e 1821, as capitanias de Goiás, São Paulo e Bahia, o título “Viagem ao interior do Brasil”, indicava que não havia permanecido somente no litoral, mas sim que havia se embrenhado pelo interior do país em construção. Mesmo remetendo-se somente a porções de tão vasto território, que era o luso-americano, estes relatos eram utilizados como partes de um todo inquestionável, uma vez que é uma imagem de Brasil como totalidade que se visa construir a partir da independência.
É justamente no contexto do início do século XIX que tomam forma diversas transformações políticas e materiais que visam à integração das dispersas regiões coloniais em nome da manutenção da integridade territorial do que era a colônia portuguesa na América. Para Maria Odila Dias, com a vinda da Corte para a América portuguesa ocorreria um processo denominado interiorização da metrópole, que ocasionaria uma ruptura interna nos setores políticos do velho reino e, ao mesmo tempo, um estreitamento de interesses portugueses com os das grandes famílias rurais (interesses voltados para a produção, mas nem sempre separados das atividades de comercio e transportes), frente à perda do papel de intermediário que Portugal tinha no comércio colonial.
Pela primeira vez, “configuravam-se nos trópicos portugueses preocupações próprias de uma colônia de povoamento e não apenas de exploração ou feitoria comercial, pois que no Rio teriam que viver e, para sobreviver, explorar os ‘enormes recursos naturais’ e as potencialidades do império nascente, tendo em vista o fomento do bem-estar da própria população local” (Dias, 1972, p. 82). A partir de então, diretrizes como povoamento, fomento à agricultura e constituição de uma rede de comunicações, passam a fazer parte da política da Coroa, construindo-se um aparato material que tinha como centro a cidade do Rio de Janeiro, capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em 1815.
Frente à civilidade trazida pela sociedade de Corte, é necessário se implementarem melhoramentos nas cidades e nos “cidadãos”, principalmente no Rio de Janeiro, a morada da família real e então capital do Império português. Isso se deu por três vias principais: o ordenamento do espaço, de forma a deixar claras as hierarquias do poder e coibir maus comportamentos, além de embelezar as aparências; o policiamento dos habitantes da cidade, principalmente frente ao aumento do número de homens livres que “vagueavam”; e a divulgação, através da Imprensa Régia e dos manuais de civilidade, assim como pela (pouquíssimo abrangente) educação, dos bons modos e comportamentos (Pechman, 2002)
É também no Rio de Janeiro que se localiza a sede política que deveria centralizar todo o território. Pode-se dizer que até então havia uma política contraditória na atividade colonizadora entre a dispersão, de forma a evitar a união de interesses entre as capitanias, e a aproximação, a partir da constatação, desde o século XVIII, pelo Marquês de Pombal, que era necessário unir esforços para combater inimigos comuns: “Todas as colônias portuguesas são de Sua Magestade, e todos os que as governam são vassalos seus. E nessa inteligência tanta obrigação tem o RJ de socorrer a qualquer das capitanias do Brasil, como cada uma delas de se socorrerem mutuamente (...) logo que qualquer das ditas capitanias for atacada, ou ameaçada de o ser; sendo certas que nesta recíproca união de poder, consiste essencialmente a maior força de um Estado, e a falta dela, toda fraqueza dele” [8] .
Após a vinda da Corte, ainda que se agisse com cautela, a implementação de novos caminhos [9] passa a ser um exemplo da necessidade de prover as outras capitanias de comunicação com a nova capital, já que havia a quase inexistência de ligação entre as capitanias ou regiões da colônia portuguesa da América, apontada por diversos viajantes (Lyra, 1992). “Com a localização do eixo dinâmico da ação centralizadora do Estado absolutista português no Rio de Janeiro, criou-se um ponto de convergência, isto é, um centro de união, não apenas entre as várias partes do território chamado Brasil, como entre este e o reino de Portugal na Europa...” (Lyra, p. 129). Essa mudança na geografia colonial implicaria um rompimento com a política dispersiva e uma busca pela unidade brasileira, que se tornaria uma grande causa a ser defendida no processo de construção de uma nação independente.
A bagagem dos viajantes europeus: empirismo e romantismo
“Sendo o espaço um ‘fato’ da natureza, a conquista e organização racional do espaço se tornou parte integrante do projeto modernizador. A diferença, desta vez, era que o espaço e o tempo tinham de ser organizados não para refletir a glória de Deus, mas para celebrar e facilitar a libertação do ‘Homem’ como indivíduo livre e ativo, dotado de consciência e vontade. Foi a essa imagem que surgiria uma nova paisagem”. David Harvey. A condição pós-moderna.
É no século XVIII, o “século das luzes”, que se gesta uma nova concepção de ciência, que vem acompanhada do racionalismo cada vez mais latente. Segundo Jean Starobinski (1987, p. 115), é a partir desse momento que o espaço passa a ser visto como neutro, em que a ausência de Deus destituía os lugares de seu sacramento, abrindo o campo para a instauração do “espaço da técnica”. A partir do que já haviam anunciado Descartes e Bacon, o século XVIII lança as bases sistemáticas da exploração científica da natureza.
Este processo torna os homens cada vez mais proprietários: das terras, dos objetos, do mundo cada vez mais esquadrinhado e parcelado. A vontade de conhecer a natureza e de dominá-la vem também com a necessidade de guardar algum registro dela: a coleção (por exemplo de herbários, algo muito comum no século XVIII) indica um aspecto dessa vontade, que é, entretanto, paradoxal, uma vez que a incompletude é necessária para a perpetuação contínua do acúmulo de peças, estas tornadas verdadeiros capitais simbólicos (CICERCHIA, 2005, p. 26). È neste processo de apropriação que a imagem vai desempenhar um papel considerável, principalmente através das pinturas (Starobinski, 1987, p. 125).
As expedições para o Novo Mundo se inserem nesse movimento de ânsia pela apropriação de novos lugares. Desde meados do século XVIII, a Europa se lança a um “redescobrimento” do mundo, mas agora com intuitos muito distintos, que se remetem principalmente a uma apropriação científica da natureza “selvagem” dos trópicos. Através da figura dos viajantes, organizados ou não a partir de expedições cientificas, um mundo pitoresco é revelado aos europeus.
Todo esse processo de apropriação tem uma direção bem clara: da Europa partem os viajantes, imbuídos de um conhecimento que lhes conferia status, para a América, onde iriam observar o continente “Novo”, com habitantes que – já que novos... – eram também exóticos e “inferiores”, ainda intocados pela civilização. Na maioria dos autores e filósofos iluministas nota-se um eurocentrismo, em maior ou menor grau, e uma grande influência do pensamento hegeliano, para o qual a natureza e os habitantes em estado selvagem careciam do espírito que movia o Velho Mundo, ou seja, o de realizações históricas.
Hegel, por exemplo, via na ausência de uma história de legados humanos a prova de inferioridade dos habitantes americanos. Nota-se nessa idéia a preocupação em provar a superioridade da civilização européia em relação às demais, a qual irá permear os trabalhos de pensadores como Montesquieu – ao desenvolver sua teoria climática, que tentava constatar a inferioridade dos homens dos trópicos – e de Thomas Hobbes, ao dizer que o estado de natureza era a barbárie, e que as leis eram necessárias para conter o medo e a desordem que reinam no mundo selvagem.
Segundo o conde Buffon, que publica o livro História Natural, geral e particular em 1749, o continente americano em seu estado bruto era hostil ao homem, com suas paisagens pantanosas, inundadas e fétidas, sendo seus habitantes selvagens, “primos” dos animais, marcados pela insensibilidade e pela imaturidade (dando como exemplo a falta de barba). Cornelius De Pauw, seu seguidor, inspira-se numa imagem bíblica para afirmar a inferioridade do continente americano, evocando a decadência após a expulsão do Éden e a destruição diluviana – o que explicaria a impossibilidade de haver leis da sociedade e educação no Novo Mundo. Para De Pauw até os animais que nele habitavam eram de pequeno porte e inferiores. O interessante é constatar que nenhum desses pensadores esteve em continente americano para comprovar suas hipóteses. (Lisboa, 1997; Cicerchia, 2005).
A partir do pensamento de Jean Jacques Rousseau, formula-se toda uma concepção que sugere justamente o contrário do que diziam os autores anteriores: seria o próprio homem civilizado ocidental inferior ao homem em seu estado natural. Inserido num debate sobre as benesses ou não do progresso, Rousseau teve importante posição ao refutar a idéia de progresso desenfreado e da superioridade européia (Rousseau, 1988-89). Imbuídos pelo mesmo espírito de recusa ao progresso – que mostrava suas transformações com a Revolução Industrial – Goethe, Schiller e o movimento romântico Sturm und Drang se voltavam contra as interpretações racionalistas e pregavam um escapismo urbano, com um retorno à natureza pautado na intuição. Esta era enxergada como organismo vivo, que poderia ser percebido pelos cinco sentidos, entre os quais o da visão seria o mais privilegiado, não em razão da observação taxonômica, mas, segundo Goethe, “por ser o que melhor conseguia satisfazer as exigências plásticas do poeta, o seu amor à riqueza e à metamorfose de formas da natureza” (apud Lisboa, 1997, p. 73)
A importância do empirismo para a ciência é indiscutível, e é no século XVIII que este método de pesquisa se torna quase que “obrigatório”. Se a Geografia, como clamam muitos, nasceu com Humboldt, não é à toa que o olhar e o trabalho de campo representaram uma das dimensões fundamentais desta ciência o que inclusive gerou muitas críticas futuras ao caráter meramente descritivo deste saber.
Permeia também os trabalhos dos naturalistas a idéia de que a natureza encontrava-se desordenada, cabendo ao homem ilustrado o seu enquadramento, levando ao impulso nominalista. A taxonomia do sueco Carl Linné, ou Lineu, uma grande referência para qualquer trabalho científico, exemplificava esse ímpeto, que também se propunha universalista, ao ser abrangente suficientemente para classificar mesmo espécies ainda desconhecidas. De acordo com Valéria Souza, “estabelecer classes e categorias tornava-se um impulso generalizado nos meios científicos da Europa, pois se acreditava que nomeando se conhecia o objeto. Nomear tornava-se uma forma de apropriação” (Souza, 1995, p. 177).
Esse tipo de apropriação da natureza através da classificação tornava o desconhecido familiar. Para tanto, a pesquisa científica embasava-se na observação do mundo real, algo que requeria anotações e registros, muitas vezes em forma de pinturas, que acompanha quase todos os relatos de viajantes. Justamente por isso, a pintura vivencia uma relação entre arte e ciência, ao transitar entre a necessidade de registro exato e a criação artística e estética. Para Nicolau Sevcenko (1995, p. 57), “a arte da paisagem nasceu na zona de fronteira entre essas duas forças opostas”. Ou seja, “...qualquer que seja seu feitio ou condição, esse ícone [a arte da paisagem] ao mesmo tempo ratifica o rigor da observação direta, ‘científica’, do artista e proporciona a dimensão evasiva da imagem, sua remissão ao imaginário mítico, seu valor exótico”.
Imbuído dessas influências, o pensamento de Alexandre Von Humboldt [10] teve desdobramentos fundamentais que subverteram a imagem negativa que se fazia da natureza americana [11] . Enxergando nesta natureza um campo riquíssimo e inesgotável para a pesquisa naturalista, Humboldt frisa a importância da observação empírica como método de investigação científica. Sua obra seria referência para todos os viajantes que estiveram no Brasil a partir da abertura dos portos. O pensador alemão conseguiu unir as diferentes influências teóricas de sua época, conjugando missão cientifica com viagem sentimental (o viajante teria que estar receptivo ao “prazer” que a mente sensível recebe da contemplação imediata da natureza). Assim, a natureza dos trópicos seria, para Humboldt, numa definição típica do romantismo, um refúgio às “almas angustiadas” (apud Lisboa, 1997, p. 157), posição assumidamente contrária às assertivas de Buffon, De Pauw e do abade Raynal, que sempre levavam a crer que “a decadência tropical definiria a América” (Lis, 2003, p. 615).
Humboldt foi o pensador que melhor conseguiu unir as diferentes correntes às suas pesquisas na América. É evidente a influencia do romantismo alemão, principalmente no que diz respeito a sua concepção de natureza, unitária e quase supra-real, dotada de uma finalidade. Dizia ele que “a natureza considerada por meio da razão, isto é, submetida em seu conjunto ao trabalho do pensamento, é a unidade na diversidade dos fenômenos, a harmonia entre as coisas criadas, que diferem segundo as formas, a própria constituição e as forças que as animam; é um todo animado por um sopro de vida” (apud Moraes, 2002, p. 93). Sua postura perante a natureza era quase religiosa de contemplação e adoração.
Ao mesmo tempo, Humboldt também sofre forte influencia do empirismo e do pensamento iluminista, afinal ele é, de certo modo, um herdeiro do enciclopedismo e seguidor do racionalismo e da experiência cientifica rigorosa. Sua postura era radicalmente anticlerical e antidogmática, defendendo o ideário da ilustração. Somadas à influência do iluminismo e do romantismo alemão, podem ser encontradas citações de autores clássicos em suas, obras como Aristóteles, Platão e Pitágoras. Além disso, a classificação, propagada por Lineu, empenhava um grande papel nos estudos científicos da época, sendo um importante referencial nos trabalhos do cientista.
Em Humboldt, todavia, a incorporação das idéias Lineu será apenas no âmbito de seu método classificatório, pois quanto à historicidade da natureza, a concepção humboldtiana era contrária a de Lineu e Buffon. Seu método comparativo trazia um movimento, e o fazia perceber que a conexão dos fenômenos não advinha do sistema taxonômico. Essas considerações podem ser tidas como o gérmen da teoria evolucionista, ao admitirem a existência de dinamismo na natureza. Ainda, a idéia do empirismo humboldtiano era associada à comparação, combinação e formulação de hipóteses por indução, reservando um espaço para a intuição frente ao mundo exterior. (Capel, 1983).
Segundo Jean Starobinski (1987, p. 220), no século XVIII, o século das luzes, da claridade, onde a razão quer se expandir, crescerá no homem a vontade de identificar o visível, mas também de ultrapassá-lo: “a visão é o mais expansivo de todos os nossos sentidos: ela nos transporta ao longe, num momento de conquista. E é o próprio sucesso da razão que faz que com que logo o universo sensível não o seja suficiente. A claridade é buscada para além das aparências; os objetivos se situam bem antes do instante sensível. Querer é prever, é ver aquilo que ainda não é, através daquilo que é. Quando triunfa o estilo da vontade, as coisas se tornam um meio e não são mais amadas por elas mesmas”.
A “esplêndida natureza”: percursos e relatos sobre o Brasil
“Cartesius é derrotado pelo calor, pela absoluta inviabilidade tropical de se trancar num quarto. A paisagem super-poderosa dita seu contra discurso, deixando-o atônito, perplexo, frustrado e absolutamente confuso”. Paulo Leminski. O Catatau.
Em seu truncado livro “O Catatau”, um verdadeiro desafio lingüístico ao leitor, o poeta Paulo Leminski brinca com a idéia da impossibilidade de adaptação da lógica cartesiana aos trópicos, através da viagem do personagem Ricardo Cartesius pela Pernambuco de Maurício de Nassau, e de suas frustradas tentativas de, seguindo o filósofo Renée Descartes, se trancar num quarto escuro para se entregar à reflexão. Vencido pelo calor, era obrigado a sair e confrontar a realidade do mundo, para ele inexplicável.
Na virada do século XVIII para o XIX, cada vez mais se critica a postura científica dita de “gabinete”, para valorizar a experiência empírica e o registro dos fatos in loco. Esta postura, na verdade, vinha sendo construída ao longo do século XVIII, em cujo início já se dizia, na Espanha, que não se devia “decir más que lo que ha visto por sí mismo” (Capel, 1985). Mas é na virada para o século XIX que ela parece se afirmar como diretriz absoluta, fazendo com que famosos cientistas “de gabinete” tenham que justificar a importância igualmente significativa do trabalho de reflexão sobre dados coletados por outrem (Kury 2001). Saint-Hilaire, por exemplo, correspondia a este “novo perfil do viajante-naturalista idealizado no meio científico parisiense: pesquisa in loco, especialização, capacidade de produzir informações balizadas, publicação dos resultados” (Kury, 2001), sendo elogiado por Humboldt pelas “observações preciosas que ele fez nos próprios sítios” [12] .
Para estes cientistas e naturalistas, porém, o ímpeto em ver o mundo e desvendar seus segredos vinha acompanhado pela crença em que tudo era passível de classificação, ordenamento e compreensão. Afinal, a concepção de espaço que se gesta a partir de Kant é “aquela que nos permite dar ordem à externalidade, identificando cada coisa em seu lugar” (Santos, 2000, p. 185). De acordo com Iara Lis (2003, p. 604), “a história natural tornava a natureza todo um domínio empírico cognoscível, descritível e ordenável em sua totalidade, retirando-a de uma noção caótica que a marcaria in loco”. Logo, para estes viajantes que aportavam no Brasil no início do século XIX, a paisagem provavelmente não causaria um sentimento de “confusão”, pois seria compreendida a partir dos modelos de ordenamento europeus.
Todo o tipo de tentativa de incorporar o novo cenário e traduzi-lo em uma linguagem compreensível aos europeus era utilizado no estudo da natureza: coleta de diversas amostras, dissecação de espécies, desenhos morfológicos, pinturas da paisagem, medições, descrições, classificações. No Brasil, visto como terra fecunda para os interesses naturalistas, com suas numerosas espécies desconhecidas a serem classificadas, os viajantes se valeram em muito da produção de imagens (desenhos e pinturas) para realizar suas observações, o que pode ser notado em diversos relatos, sempre acompanhados de recursos visuais. A presença de fichas de classificação pode ser verificada na obra de diversos viajantes, como por exemplo, em Johann von Spix e Carl von Martius (1981), em que cada detalhe da morfologia da planta é registrado minuciosamente, ressaltando o papel do desenho cientifico exato e nada fantasioso, onde não há espaço para vôos de criatividade.No entanto, essa perspectiva de incorporação do desconhecido não significa a ausência de sensações de “perplexidade” diante da natureza americana. Afinal o grande naturalista Alexander von Humboldt, e seu método romântico de fazer ciência natural, exerciam influência sobre a maioria destes viajantes que aportaram no Brasil, ansiosos para se espantarem e se deixarem levar pela contemplação da beleza dos trópicos. Parece ser comum à grande maioria destes viajantes a visão extremamente idílica da baia do Rio de Janeiro, porto de entrada para “tão imenso território”. Spix e Martius, logo depois de aportarem na cidade, se declaram estar num “jardim paradisíaco de exuberância e magnificência” (1981, vol. I, p. 43).
Até mesmo John Luccock, sempre atento aos assuntos econômicos e políticos, não pôde deixar de se reportar às belezas naturais da cidade. O viajante inglês admitia que, apesar de seus esforços para não se comover com o efeito de “novidade” ou “contraste” que a natureza tropical causava nos estrangeiros, era “loucamente apaixonado pelo lugar [a baía da Guanabara], não invejando os sentimentos dos homens que são capazes de contemplar o mais resplandecente dos sorrisos da natureza, sem com ele sorrir sempre” (Luccock, 1975, p. 24).
Johann Emanuel Pohl vai ainda mais além: descreve a baía de Guanabara como “pujante e grandiosa” e reserva ao Rio de Janeiro a alcunha de “Olho do Brasil”. E completa: “se algum ponto do Novo Mundo merece, por sua situação e condições naturais, tornar-se um dia teatro de grandes acontecimentos, um foco de civilização, e cultura, um empório do comércio mundial, é, ao meu ver, o Rio de Janeiro. [...] De bom grado a fantasia paira sobre o futuro de tão sedutor país, que tem um presente pouco desenvolvido e, por assim dizer, não tem passado” (1976, p. 38). Esta frase é emblemática de um posicionamento presente em quase todos os viajantes-naturalistas das primeiras décadas do século XIX. Trata-se do elogio ao “cenário natural” do Brasil, em detrimento de sua “civilização”, que ainda teria que ser construída. Já nestes discursos, identifica-se o Brasil que se formava com a idéia de uma enorme potencialidade, contida em tão rica natureza, formulando-se a imagem de um país cujo futuro conteria grandes êxitos (seria aqui que poderíamos identificar a origem da máxima, hoje já um pouco desgastada, “Brasil: o país do futuro”?)
Como já dito, a visão dos naturalistas é possuidora de um olhar que mais se aproxima ao olhar geográfico nascente, ou seja, aquele voltado para a escala da paisagem, que previa uma descrição que se propunha totalizadora, indo dos comportamentos sociais, ao uso da terra, passando pela atenta descrição e diferenciação de tribos indígenas, entrando no âmbito da classificação botânica, mas sem dissociá-la de seu conjunto paisagístico. É inegável, entretanto, que apesar de se proporem abrangentes, estes relatos se voltavam mais à descrição da “natureza brasílica”, visto que este “era um dos assuntos preferidos desses viajantes, em sua exuberância, grandeza e diversidade” (Lis, 2003, p. 617). Neste ponto, novamente uma passagem de Pohl é elucidativa. Depois de fazer uma descrição um tanto desinteressada sobre os costumes sociais na cidade do Rio de Janeiro, o austríaco retoma o entusiasmo quando volta-se à descrição do mundo natural: “passo agora, dessas descrições da vida no Rio, para a esplêndida Natureza e conduzo o leitor ao ar livre, onde tudo reverdeja e cresce viçosamente” (Pohl, 1976, p. 47).
Este intuito correspondia às expectativas do leitor europeu “sedentário” de entrar em contato com o “exótico” e “pitoresco”, e de retornar ao idílico, já que o cenário urbano europeu era aquele que se deixava tomar pela recente Revolução Industrial. Desse modo, pode-se afirmar que “havia um imperativo em explicitar uma paisagem própria ao Brasil entre esses viajantes do início do XIX, que dá, para nossa contemporaneidade, a impressão de que ampliaram o retrato do Brasil, formulando maximamente em sua totalidade tão ambicionada, sobretudo ao conformarem um amplo quadro da natureza em sua completude e unidade, suscitando um efeito sensível agradável no espectador” (Lis, 2003, p. 624).
Seguindo a idéia de Humboldt, a descrição minuciosa de espécies levada a cabo pelos viajantes, também exigia a contextualização das plantas no seu “entorno”, valorizando o recorte da paisagem (enquanto apreensão possível do visível) como recurso explicativo e estético. Esta “superlativa valoração da vegetação tropical como motivo pictórico e as minuciosas e eruditas observações acerca dos diversos tipos de plantas que podem conviver num mesmo ambiente introduziram à criação de uma nova linguagem artística para o registro da natureza de ultramar” (Diener & Costa, 2002). Na figura 2, pintura feita por Carl von Martius, em complementação à figura 1, há o exemplo da “mudança de escala” do registro naturalista, em que duas espécies vegetais, que dão título à pintura, são agora retratadas em meio a seu habitat natural, em harmonia com as outras espécies, num exemplo típico da diversidade botânica das matas tropicais. Também discorrendo sobre esta diversidade, Saint-Hilaire atesta que, na floresta tropical dos arredores do Rio de Janeiro, “nada faz lembrar a fatigante monotonia dos nossos bosques de carvalhos e pinheiros; [pois] cada árvore ostenta, por assim dizer, um porte que lhe é próprio; cada qual tem sua folhagem, que freqüentemente difere do matiz da das árvores vizinhas” (Saint-Hilaire, 2000, p. 20). Estas pinturas de paisagem possibilitavam também a aplicação de técnicas de luz e sombra em que o “sentimento de natureza” (Naturgefühl) herdado dos românticos era passado ao espectador. Isso somava-se aos trechos mais literários dos relatos, como aquele em que Spix e Martius alegavam que tudo agia “com magia toda especial na alma do homem sentimental renascido pelo espetáculo do delicioso país” (Spix & Martius, 1981, vol.I, p. 80). O aspecto da contemplação também é presente nos relatos (e é curioso notar diversos trechos poéticos sobre a mata à noite, envolta pelo luar e pelo céu estrelado, dando a impressão de que neste período do dia os viajantes se permitiam com mais afinco o “desarme” do olhar de cientista [13] ). Estes viajantes procuravam, no decorrer de seu percurso, estar abertos à influência poética que a natureza exerceria na alma do “homem sentimental”. Saint-Hilaire (2000, p. 53), durante sua estadia afirmava que: “tudo que rodeia o viajante se associa para produzir em seu espírito uma impressão deliciosa”.
No entanto, é necessário notar que para conseguir atingir o “sentimento de natureza” era preciso ter sensibilidade e erudição. Pois a natureza, no contexto da Ilustração, passou a ser vista como um estímulo diante do qual os sujeitos reagem (o que a tornou passível de ser objeto de pesquisa cognitiva, portanto algo que poderia ser dominado). Apenas aqueles que possuíam muitos conhecimentos poderiam desfrutar da contemplação da natureza como algo revigorante à alma. Ou seja, esta admiração da natureza americana somente poderia ser realizada pelo homem europeu culto, o que conferia a este olhar um duplo distanciamento. Nesta ilustração de Spix e Martius, há um exemplo desta erudição, implícito nos trajes europeus dos observadores, que indicam que a observação da natureza era reservada aos eruditos, o que se soma, ainda, à posição de poder reservada a estes homens cultos materializada nas armas. Ainda, esta ilustração é emblemática para demonstrar o conflito entre a contemplação romântica e a necessidade de realizar registros científicos, como se lê na descrição dos autores: “Quando à tarde contemplamos uma dessas lagoas, que espetáculo estranho se apresentou aos nossos olhos! Centenas de róseos colheiros perfilavam-se reunidos ao longo da margem [...] e, quanto mais observávamos o raro panorama, em que as aves, com inata independência, representavam seu papel no espetáculo da natureza, tanto menos vontade sentíamos de perturbar, com mortíferos tiros, aquele cenário palpitante de vida” (Spix & Martius, 1981).
A auto-representação presente na ilustração também nos leva à indagação sobre a emergência de um “sujeito-em-trânsito”, que ao realizar uma viagem por distâncias físicas também estaria excursionando pelo seu próprio ser (Süssekind, 1990). Para a autora, seria apenas em poucos momentos que se identificaria este desarme do olhar científico, pois geralmente o aprendizado e a auto-reflexão pareciam não caber nos objetivos do viajante-naturalista do início do século XIX. Afinal este já inicia a viagem com “o trajeto formado, com sólidos conhecimentos de ciências naturais que apenas testa e amplia diante de novos espécimes e terras desconhecidas. O aprendizado aí não é, pois, exatamente de si mesmo, mas da própria capacidade de resistência e trabalho em condições por vezes bastantes adversas”.
Luciana Martins (2001), por outro lado, acredita que todo o processo de formulação de imagens sobre o Brasil do início do século XIX, através do olhar estrangeiro, estava imbuído num contexto em que o sujeito observador era tomado de surpresas e construía sua narrativa conforme ia construindo a si mesmo, através da experiência vivida. A autora acredita, portanto, na realização de um aprendizado e de uma construção constante do sujeito e da paisagem. Além disso, as imagens gestadas neste processo indicariam, para ela, “não uma geografia estática do passado, mas uma geografia imaginativa em formação, onde, no registro material das paisagens dos lugares, vislumbram-se, nebulosas, as paisagens das idéias” (Martins, 2001, p. 12). Realmente percebe-se, nos relatos, a matéria viva de que eram feitos, desenrolando-se durante o percurso, ou seja, concomitantemente com a própria experiência.
No entanto, são raros os trechos que poderiam apontar na direção deste sujeito reflexivo, cuja experiência é transformadora. Encontram-se, nos relatos, momentos de fragilidade, em que de repente o poderoso cientista, detentor do controle, se vê sem meios para apreender um cenário selvagem e desordenado, que ao invés de provocar encanto só suscita o medo. Tanto que para Spix e Martius a natureza poderia ser o inferno, em seu aspecto mais sombrio, como na serra de São Geraldo, em Minas Gerais: “...escura como o inferno de Dante fechava-se a mata, e cada vez mais estreita e íngreme, a vereda nos levou por labirínticos meandros, a profundos abismos, por onde correm águas tumultuosas de riachos, e, ora aqui, ora ali, jazem blocos de rocha solta. Ao horror, que esta solidão agreste infundia na alma, acrescentava-se ainda a aflitiva perspectiva de um ataque de animais ferozes ou de índios inimigos que a nossa imaginação figurava em pavorosos quadros, com os mais lúgubres pressentimentos” (Spix & Martius, 1981, vol. I, p. 220).
Os viajantes admitem sentir horror neste momento, mas nem por isso deixam, em outra situação, de inferiorizar indígenas do Rio Negro (como os da tribo catauaxis) pelo fato de serem “medrosos”. Para eles: “a imaginação assombrada dos rudes aborígenes da América cerca-os por todos os lados de máscaras e figuras pavorosas, de cujo influxo a sua mentalidade aterrorizada nunca se liberta; e em todos os seus atos têm medo e pavor como constantes companheiros. Também a sua língua conhece o termo terror.” (Spix & Martius, 1981, vol. III, p. 104). Diferentemente destes índios, Spix e Martius já haviam se “libertado” do influxo terrível do medo, constituindo-se em dominadores da natureza, raramente se fazendo assustar por seus perigos. Mas será que, tal qual Ulisses/Odisseu, que também vence a natureza, eles retornam à Europa, sua Ítaca, como sujeitos transformados? Talvez possa-se afirmar que, em parte, sim, mas tal transformação não chega em nenhum momento ao questionamento da superioridade européia, idéia da qual seria realmente muito difícil se libertar. O encontro entre mundos e a produção de sentidos de identidade e alteridade obedecem a relações complexas. Ao mesmo tempo em que parecem pertinentes incursões mais abrangentes sobre os processo de “transculturação”, conforme desenvolvido por Mary Louise Pratt (1999), é impossível negar a desigualdade simbólica que estava em jogo, em que os viajantes europeus, mesmo abrindo-se às novas sensações suscitadas pela experiência, não realizavam uma reflexão que transgredisse os modelos e ideais que cercavam seu imaginário na chegada aos trópicos.
A natureza e a construção do Brasil
As observações in loco realizadas por esses viajantes, com seu espírito cientificista, ajudaram a desmistificar a visão negativa da natureza americana, e brasileira, construindo, por sua vez, uma idéia de fecundidade e pureza, além da freqüente idéia de grandeza. A partir destes relatos, passa a ser inegável que as matas brasileiras continham uma enorme diversidade e conseqüente potencial para pesquisa. Pintando a natureza dos trópicos como “painel da máxima opulência”, estes e outros viajantes contribuem para a mudança da imagem que se fazia das terras abaixo da linha do Equador, chegando muitas vezes a afirmar a superioridade desta natureza em relação à européia. Saint-Hilaire (2000, p. 20), por exemplo, indicava que “para conhecer toda a beleza das florestas tropicais é preciso penetrar nesses retiros tão antigos como o mundo”, demonstrando que não compartilhava da idéia de que a natureza do Novo Mundo teria se formado posteriormente a do Velho Mundo. Spix e Martius (1981, vol. II, p.103), em dado momento, se declaram reconfortados pela beleza natural do Brasil, que proporcionava “tanta serenidade de alma, que nos sentimos ricamente compensados da falta do ambiente civilizado”. Ainda, o francês Ferdinand Denis, em seu Resumo da história literária do Brasil, de 1825, destacando a magnitude das belezas da América portuguesa afirma que “se os poetas dessas regiões fitarem a natureza, se se penetrarem da grandeza que ela oferece, dentro de poucos anos serão iguais a nós, talvez nossos mestres” (apud Lis, 2003, p. 624), admitindo a possibilidade, nada convencional, da colônia suplantar a metrópole em termos artísticos.
Para Sérgio Buarque de Holanda (1975, p. 13, 14), os inúmeros viajantes a aportarem no Rio de Janeiro teriam uma função considerável na criação de uma imagem de Brasil, uma vez que este olhar estrangeiro acaba por trazer ao habitante local um ponto de vista ignorado ou esquecido, reavivando um sentimento de pertencimento a um grande país. Em sua “Viagem pelo Brasil”, Spix e Martius relatam que, reunindo material rico e variado, de diversas localidades, sempre apresentavam ao povo seus resultados, comentando que estes eram “alvo de admiração da gente da cidade, que peregrinavam em multidão à nossa casa, para ver as riquezas de sua pátria, tão pouco conhecida deles próprios” (apud Lisboa, 1997, p. 115).
Mas as ameaças a esta fecundidade também foram vislumbradas por estes viajantes. Durante sua estada no país, Spix e Maritius (1981, vol. II, p. 102, 103) puderam verificar o estado em que se encontravam as matas nativas, chamando a atenção para o intenso desmatamento: “Na solidão da viagem [...], despertou o voto para que já, sem demora, se iniciem estas investigações na terra fecunda, antes que a mão destruidora e transformadora do homem tenha obstruído ou desviado o curso da natureza. Só por poucos séculos ainda disporá a ciência de completa liberdade de ação para este fim, e os subseqüentes investigadores não mais obterão os fatos na sua pureza, que já hoje, pela atividade civilizadora deste país em vigoroso progresso, está sendo transformada em muitos respeitos”. Neste apelo, a dupla de viajantes demonstra suas razões sobre a necessidade de se preservarem as matas nativas: elas seriam indispensáveis para a realização de pesquisas futuras sobre as plantas. Essa justificativa de preservação para a pesquisa não poderia ser mais condizente com a posição dos dois naturalistas bávaros, pois eram eles europeus interessados em viajar longas distâncias para encontrar a natureza em estado de pureza, seja para pesquisá-la, seja para desfrutar de suas belezas e tranqüilidades.
Luccock (1975, p. 24) também chama a atenção para “as mudanças sofridas por esses matos [nos arredores do Rio de Janeiro] que até há (sic) pouco subsistiram”, o que seria lamentável, para o viajante inglês, se não fosse a lembrança “de que eles assim contribuíram com sua parte para as necessidades do homem, fornecendo à cidade que lhes fica ao pé o valioso artigo do combustível e sendo ainda empregados no fabrico tanto do necessário como de muitos luxos da vida”. Percebe-se que a postura destes viajantes diferia, uma vez que em nenhum momento Luccock cita a importância dos bosques virgens para realização de pesquisas, ainda que acreditasse que houvesse um efeito benéfico “dos cenários belos sobre a mente humana” (Luccock, p. 24). É justamente para a destruição da floresta da Tijuca, notada por Luccock, que Félix Emille de Taunay, membro da missão artística francesa direciona seus pincéis e registra o desmatamento da mata atlântica (figura 4), contrastando a magnitude da mata (local também da umidade) com a parte desmatada (local seco, em que ainda há fumaça). Mesmo não tendo redigido relatos, Taunay não deixou de construir imagens que muito diziam a respeito da natureza brasileira. Saint-Hilaire também chama a atenção para os métodos agrícolas destrutivos propagados na América portuguesa. Segundo ele, “com exceção da Província do Rio Grande do Sul, da de Missões e da província Cisplatina, não se fez uso, no Brasil meridional, nem do arado, nem de fertilizantes: todo o sistema de agricultura brasileira é baseado na destruição de florestas, e onde não há matas não existe lavouras” (2000, p. 90). Saint-Hilaire discorre também, diversas vezes, sobre a necessidade de melhor aproveitar a terra e os recursos naturais disponíveis no território luso-americano. Fazendo um levantamento das plantas utilizadas pelos indígenas para fins medicinais e para a confecção de roupas e instrumentos, ele atesta que havia uma riqueza desconhecida do governo português, que deveria ser melhor estudada [14] .
É curioso que nos relatos de John Mawe, entretanto, se distingue um olhar nada romântico e muito dirigido ao progresso humano. Mesmo preocupado em analisar a formação geológica dos lugares que visitiva (possivelmente para identificar jazidas minerais), este mineralogista inglês estava sempre atento à presença de obras humanas e de “civilização”. Quando caminhava em meio à “solidão” das matas, anotou: “nada observamos digno de menção” (Mawe, 1978, p. 93), deixando transparecer que não possuía anseios naturalistas. Descrevendo uma fazenda no caminho entre a cidade do Rio de Janeiro e Cantagalo, o viajante destaca que “o lugar desfruta[va] de uma ótima situação e pod[er]ia, sob administração hábil e industriosa, tranformar-se em paraíso” (Mawe, p. 92). Ou seja, no entendimento de Mawe, o “paraíso” só poderia ser atingido através do trabalho humano, não sendo, como para Spix e Martius, algo que se pudesse identificar na natureza em seu estado puro.
Seu relato se distancia da maioria dos outros realizados por viajantes, principalmente dos naturalistas, no que diz respeito à exaltação da natureza. Mas, no que diz respeito à observação da sociedade, ele se assemelha à visão de Saint-Hilaire, que critica o mal uso que se fazia da natureza e a postura de recusa ao progresso. Ambos compartilhavam também a visão dos fisiocratas de que a mineração era um mal à sociedade, sendo a agricultura a verdadeira atividade a que deveria se dedicar o país. (Mawe, 1978, p. 103; Saint-Hilaire, 2000, p. 46)
Em sua totalidade, as descrições de viajantes naturalistas se remetiam, de alguma forma, aos habitantes do Brasil de maneira negativa, seja zombando de costumes da Corte, seja criticando a falta de iniciativa de colonos, seja desclassificando os “batuques bárbaros” dos negros escravizados, ou julgando a inferioridade indígena. Para Spix e Martius (1981, vol. III, p. 133), os indígenas das tribos cariris e sabujas eram “indolentes, preguiçosos e visionários, indiferentes a qualquer estímulo, a não ser as mais baixas paixões, e revelam na expressão mesquinha do rosto este estado de decadência moral. Mais propensos a adotar os defeitos do que as virtudes dos europeus, seus vizinhos, preferem passar o dia inteiro caçando...”. Já para Saint-Hilaire (2000, p. 33), os Coroados (da região de Ubá) eram “indiferentes, tristes, apáticos; [...] e suas atitudes lembram"[15] .
Esta disparidade na construção de imagens sobre a natureza e civilização no Brasil é acentuada mais ainda a partir da incorporação seletiva que será feita destes relatos. Se, para além das flores, os viajantes muitas vezes criticavam alguns aspectos da sociedade luso-americana, na utilização dos textos e imagens produzidos ressaltar-se-á somente a imagem estática da natureza triunfante. Para Flora Süssekind (1990, p. 123) na construção da literatura ficcional no Brasil dos anos 1830 e 1840, selecionavam-se elementos capazes de “rascunhar origens étnicas e identidades nacionais mesmo onde se vêem ruínas de aldeias e divisões políticas e sociais. Pautados não apenas na ciência da observação, mas da exclusão. E exclusão não só de um modo de olhar reflexivo, descartado em prol ora do encantamento, ora de armadura naturalístico-paisagística, mas também, na figuração territorializada do Império, de qualquer ênfase nas divisões provinciais”.
Na dificuldade de vislumbrar uma saída para a difícil equação da nação em um país “sem passado”, imerso em contradições tão fortes, a incorporação desses relatos se deu pelo caminho que levava às exaltações da natureza, fosse ela edênica ou útil. Se na literatura se privilegiou mais o primeiro aspecto, nos projetos políticos para o Brasil em formação exaltou-se o segundo, defendendo a grandeza e indivisibilidade do território, com suas potencialidades naturais, na forma de recursos. Com idéias que remetem a Saint-Hilaire e John Mawe, José Bonifácio de Andrada e Silva [16] , constrói o seu projeto para o Brasil independente pautado na revisão das práticas agrícolas, na melhor exploração dos recursos naturais, na rígida manutenção da unidade territorial [17] e na necessária (ainda que gradual) abolição da escravatura. Para ele, a questão social, que teve grande peso em suas considerações, seria resolvida por um “amálgama de raças” a ser conseguido no futuro, através da miscigenação. Se as promessas da natureza pródiga reservavam ao Brasil um futuro grandioso, a resolução de questões sociais também passaria por um porvir e pela condenação do passado colonial, relegando a população a mero instrumento da construção territorial do país.
Notas
[1] Se é partir de 1808 que viajantes estrangeiros começam a chegar, é necessário lembrar que os viajantes franceses somente aportam no Brasil a partir de 1816, visto que até então França e Portugal haviam cortado relações diplomáticas, durante conflito sobre a demarcação de fronteiras entre a Amazônia e a Guiana francesa.
[2] A inglesa Maria Graham comenta em seu diário o caráter “destituído de curiosidade” de seus colegas ingleses, visto que estes só se interessavam por assuntos econômicos, “com exclusão de todos os assuntos públicos que não tenham referência direta com o comércio particular”. “Nenhum sabia o nome das plantas que cercam a própria porta; nenhum conhecia a terra a dez léguas além do Salvador...”, queixava-se, demonstrando uma valorização do conhecimento naturalista. (apud Souza, V. S., 1995, p. 181). Todavia, tanto John Luccock quanto John Mawe conheceram muitos lugares além da cidade do Rio de Janeiro, mas realmente os anseios naturalistas não estavam entre as suas preocupações.
[3] Na verdade, levavam o mérito sozinhos, pois qualquer viagem da época requisitava acompanhantes para carregar bagagens, conduzir os animais e indicar caminhos.
[4] O viajante francês, a partir do Rio de Janeiro, percorreu as Minas Gerais, o Espírito Santo, o Rio Doce, as nascentes do Rio São Francisco e Jequitinhonha, Goiás, Cuiabá, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
[5] Dela faziam parte os pintores Jean-Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay e seu filho Felix Emille Taunay, os escultores Auguste Marie Taunay, Marc e Zéphirin Ferrez e o arquiteto Grandjean de Montigny.
[6] Os membros da Expedição eram: Mikan, doutor em Medicina e botânico; Pohl, mineralogista e botânico; Natterer, assistente de Zoologia; Schott, real e imperial jardineiro; Raddi, naturalista da Toscana; Spix e Martius, “Reais naturalistas bávaros”; Ender, pintor de paisagens; Buchberger, desenhista de plantas.
[7] Lembre-se que é a partir de 1822 que as capitanias passam a ser denominadas províncias, o que explica o fato de os livros de Saint-Hilaire, publicados posteriormente a 1822, já levarem em seu título o termo “província”.
[8] Discurso proferido em 1757 (apud Mendonça, M. C. 1953, p.73)
[9] Cartas Régias de 16.08.1810 e de 04.12.1816. Ordena a providencia de abertura de vias de comunicação por água e por terra. Coleção de Leis do Brasil. Vol. 1810-1811 e 1816-1819. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1891. (apud Lyra, M. L. V, 1992).
[10] O grande naturalista Alexandre Von Humboldt nasceu na Prússia em 1759, no berço de uma família aristocrática. Teve como seu tutor J. H. Campe, um seguidor das idéias de Rousseau – fato decisivo que influenciaria as idéias de Humboldt mais tarde e no que diz respeito à observação direta da natureza e de suas excursões a campo. (MORAES, A. C, 2002).
[11] Em 1799, Humboldt e seu parceiro Aimé Bonpland partem com destino à América. Passam pelas Canárias, por Havana e pela Costa da Venezuela e fazendo então sua famosa viagem pela Amazônia. Depois visitam Cuba e México retornando a Havana posteriormente e migrando em direção a Filadélfia, passando um tempo nos Estados Unidos e finalizando, assim, sua viagem. Em 1804 Humboldt inicia sua produção geográfica, assim como a elaboração de relatos de viagem e de obras que virão a seguir.
[12] “...o que concede verdadeiro valor a objetos tão numerosos, o que distingue o viajante cientista do simples coletor, são as observações preciosas que ele fez nos próprios sítios, para fazer avançar o estudo das famílias naturais, a geografia das plantas e dos animais, o conhecimento das variedades de solo e o estado de seu cultivo”. Trecho de discurso de Kury, 2001)
[13] “Durante o período de sentinela, que costumávamos alternar com nossos tropeiros, tivemos a ocasião de gozar do esplendor das noites estreladas tropicais a cada dia durante a satisfação que a riqueza da região em variadas plantas nos proporcionou, regozijamo-nos dessas horas solitárias de contemplação e recordação” (Spix & Martius, 1981, vol. II,113).
[14] “Poder-se-iam retirar do reino vegetal riquezas não menos importantes que as fornecidas pelo reino inorgânico. Os lavradores empregam em suas doenças uma multidão de plantas medicinais, e várias delas, mais bem conhecidas, poderão, sem dúvida, tornar-se de grande utilidade”. “[O governo português] despreza inteiramente uma multidão de plantas indígenas cujas fibras flexíveis podem ser tão utilmente empregadas no fabrico de cordoalhas e tecidos...” (Saint-Hilaire, 2000, p. 91 e 61, respectivamente)
[15] Saint-Hilaire, comparado a Spix e Martius, tinha uma visão muito mais positiva dos indígenas, mas diversas vezes deixa transparecer que a falta de civilização seria um embaraço ao progresso do país.
[16] O rol de influências que compõem o pensamento de Bonifácio é muito mais extenso do que restrito às idéias dos viajantes estrangeiros e não se trata aqui de fazer uma ligação automática entre essas idéias. O papel de Domenico Vandelli na formulação de suas idéias já é bastante conhecido. Entretanto, sabe-se, em relação a Saint-Hilaire por exemplo, que em 1820, Bonifácio homenageou o botânico por seu espírito esclarecido, antes mesmo da publicação de seus escritos, o que demonstra que o “patriarca da Independência” deveria conhecer já as idéias do renomado viajante (Potelet, J. 1993).
[17] “E que país é este, senhores, para uma nova civilização e para um novo assento das ciências! Que terra para um vasto e grande império!”... “[Um território] banhado pelas ondas do Atlântico, com um sem número de rios caudais”, “riquíssimo nos três reinos da natureza”... José Bonifácio (apud Pádua, J. A. 2004, p. 143).
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© Copyright Flora Medeiros Lahuerta, 2006
© Copyright Scripta Nova, 2006
Ficha bibliográfica:
MEDEIROS LAHUERTA, F. Viajantes e a construção de uma idéia de Brasil no ocaso da colonização (1808-1822). Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2006, vol. X, núm. 218 (64).
Fonte: REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98 Vol. X, núm. 218 (64), 1 de agosto de 2006.
Disponivel: http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-218-64.htm
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