Antropólogo fundamental, Jack Goody ataca a superioridade do Ocidente e diz que democracia e capitalismo já existiam no Oriente CAIO LIUDVIKCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA Muitos se perguntam se num futuro mais ou menos próximo o Ocidente perderá para a China a hegemonia mundial. Mas, para o britânico Jack Goody, um dos principais antropólogos vivos, a superioridade ocidental é em grande parte irreal também se olharmos para o passado.Trata-se, para ele, de uma ilusão sustentada num modo distorcido de ver a história -um "roubo" da história.É justamente esse o nome do denso e polêmico livro que o professor emérito da Universidade de Cambridge acaba de lançar na Inglaterra e que está saindo também no Brasil.Goody não deixa pedra sobre pedra ao criticar autores clássicos como Karl Marx, Max Weber, Norbert Elias, e ao mostrar que democracia, capitalismo, liberdade e até o amor estão longe de ser invenções especificamente ocidentais ou conquistas de um processo histórico supostamente exclusivo.Tal engano não é senão fruto do etnocentrismo que tenta justificar ou mesmo eternizar, no plano das idéias, uma dominação no nível dos fatos, construída pelos regimes coloniais e pela Revolução Industrial, diz Goody na entrevista abaixo.
FOLHA - O que o sr. quer dizer com "roubo da história"? JACK GOODY - Quero dizer que os europeus escreveram a história a partir de seu ponto de vista, que parte da vantagem e excepcionalidade do Ocidente e dá muito pouca atenção às realizações do resto, especialmente Ásia e Oriente Próximo.
FOLHA - Como este livro se articula com seus trabalhos anteriores? GOODY - Em vários trabalhos tentei mostrar como as sociedades letradas da Eurásia oriental e ocidental têm muito mais em comum do que a ciência social sugere. O Ocidente não foi "único", como se poderia pensar -não na maneira profunda como muitos estudiosos sugerem.
FOLHA - As ciências sociais estão ainda dominadas pelo etnocentrismo, mesmo depois do boom dos estudos culturais e da antropologia pós-moderna? GOODY - É verdade que a antropologia fez alguma coisa para modificar o etnocentrismo, mas ela se comprometeu com uma distinção entre sociedades tradicionais e modernas, a qual comete negligências e endossa uma visão ocidental e contemporânea da modernidade.
FOLHA - O sr. concorda com a interpretação de Claude Lévi-Strauss segundo a qual a história é um mito ocidental? GOODY - Não penso que toda história seja um mito ocidental. Outras sociedades examinaram seu passado, mas isso foi amplamente negligenciado pelo Ocidente, especialmente em sua explicação da modernização e do capitalismo.
FOLHA - A democracia não foi criada em Atenas, como se pensa? GOODY - Não. Atenas pode ter desenvolvido uma forma particular de democracia com a votação por escrito, mas a democracia existia em Cartago, em algumas cidades da Mesopotâmia, na Índia, na China e em muitas sociedades "tribais".
FOLHA - Por que Karl Marx e Max Weber têm teses erradas sobre as origens do capitalismo? GOODY - Porque o capitalismo estava muito mais disseminado -mesmo o industrial, embora tenha se desenvolvido mais com o uso da energia a vapor na Inglaterra. Mas ele foi um prolongamento da produção de algodão e seda na Índia e na China. Esses autores negligenciaram a contribuição da Ásia quando se referem ao seu modo de produção [Marx] e à ausência de ética protestante [Weber].
FOLHA - Por que o sr. também critica tão enfaticamente as obras de Norbert Elias e Fernand Braudel? GOODY - Elias me parece atribuir a civilização à Europa e negligenciar o resto. Braudel é muito mais aceitável, mas põe ênfase excessiva na contribuição européia à modernidade, o que parece ser um equívoco, tendo-se em vista o que está acontecendo na China e na Índia.
FOLHA - O sr. parece sugerir o abandono do conceito de capitalismo. Por quê? GOODY - Penso que esse termo é usado para sobrevalorizar a diferença entre a Europa (que o inventou) e a Ásia (que não pôde). Isso parece ser um conceito do século 19 que deveria ser usado com mais cuidado.
FOLHA - Medievalistas como Jacques le Goff tendem a distorcer o que foi a verdadeira Idade Média, quando combatem o estereótipo de "idade das trevas"? GOODY - Só houve um Renascimento na Europa justamente porque esse continente havia se submetido a uma "idade das trevas", que rejeitava as realizações greco-romanas na pintura (exceto a religiosa), escultura, teatro, exceto com propósitos religiosos. A ciência também sofreu um retrocesso e nos atrasamos com relação à Ásia de muitas maneiras, como [Joseph] Needham mostrou.
FOLHA - O sr. também afirma que o amor romântico esteve longe de ser uma invenção ocidental, como medievalistas apontam. Poder-se-ia então dizer que se trata de um sentimento universal, e não de uma construção histórica? GOODY - A maioria das sociedades têm o amor romântico, embora algumas lhe dêem maior importância do que outras. Ele é especialmente desenvolvido em culturas letradas.
FOLHA - Como essa nova visão da história que o sr. defende ajuda a pensar o significado e a tendência da atual globalização? GOODY - A Ásia sempre foi parte da cena "global". A China foi a maior potência exportadora no século 18. Nós voltamos agora a uma posição anterior aos desenvolvimentos industriais do século 19. A atual "globalização" significou a disseminação global sobretudo da cultura americana, em termos de filmes e música, mas a Ásia também deixa sua marca nesse aspecto. A comunicação não se dá de uma forma única, mas a eletrônica certamente lhe deu escala mundial, em termos de mídia.
FOLHA - Os Jogos Olímpicos de Pequim serão vistos no futuro como uma espécie de celebração da nova hegemonia mundial da China? GOODY - Eles não celebram a nova hegemonia mundial da China, mas assinalam o fim do predomínio europeu, que sua própria visão teleológica [da história] considera começar na Antigüidade grega.
O ROUBO DA HISTÓRIA Autor: Jack Goody Tradução: Luiz Sérgio D. Silva Editora: Contexto (0/xx/11/3832-5838) Quanto: R$ 49,90 (368 págs.)
Fonte:
Texto capturado no site: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3108200812.htm , dia 03 de Set. de 2008.