28.6.10

Darwin no Brasil

Charles Darwin, vindo a bordo do brigue HSM Beagle em viagem de estudos ao redor do mundo não ficou muito tempo no Brasil. Teve, todavia, o suficiente para duas coisas; espantar-se com o esplendor da natureza tropical, completamente diversa da européia,e , tendo visto como os negros eram tratados, afirmar ainda mais o seu horror à escravidão.


Embarcando na aventura

Conforme ele confessa nos seus diários (intitulados de Journal of Researches, aparecido em 1839), a publicação dos feitos da longa viagem de cinco anos foi uma sugestão do capitão do navio Robert FitzRoy, um marinheiro inglês que desejava repetir os feitos do capitão Cook, o grande navegador do século XVIII que descobrira a Nova Zelândia e a costa leste da Austrália, em 1770.

Partiram de Devenport/Plymouth Sound, na Cornuália, Inglaterra, no dia 27 de dezembro de 1831 e somente retornaram no dia 2 de outubro de 1836, ancorando no porto de Falmouth. Neste tempo todo Darwin passou três anos e três meses em terra realizando suas desbravações e outros 18 meses no mar.

O material que coletou e as observações que registrou é que serviram como matéria prima para suas teorias expostas mais tarde no seu famoso ensaio ‘A Origem das Espécies’ publicado em 1859, 23 anos após ter encerrado a viagem de circunavegação.

A reprodução dos diários que se segue abrange apenas a parte inicial da aventura, a que narra a visita dele às ilhas da África Ocidental, seguida da travessia atlântica e da chegada a Salvador da Bahia e, em seguida, sua estada de quatro meses no Rio de Janeiro.

Prefácio de Charles Darwin

Expus no prefácio para a primeira edição desta obra, e na parte zoológica da “Viagem do Beagle”, que foi em conseqüência de um desejo expresso pelo Capitão FitzRoy, de ter algum cientista a bordo, acompanhado de uma oferta da parte dele de desfrutar de suas próprias acomodações, que ofereci meus serviços, os quais receberam, graças à gentileza do hidrógrafo, Capitão Beaufort, a sanção do Ministério da Marinha. Permita-se, pois, que eu possa expressar toda minha gratidão ao Capitão Fitz Roy, porque a ele devo a oportunidade de ter podido estudar a historia natural dos diferentes países que visitamos. Acrescentarei que, durante os cinco anos que passamos juntos, tive sempre em sua pessoa um amigo sincero e obsequioso. Também quero manifestar meu agradecimento aos oficiais do Beagle , que sempre me trataram com invariável cortesia durante nossa longa viagem.

Este volume contém, em forma de Diário, a história de nossa viagem e algumas breves observações acerca da história natural e da geologia, que, por seu caráter, me parecem ambas capazes de interessar ao público. Para esta nova edição condensei severamente algumas partes como corrigi outras, assim como adicionei determinados trechos a outras partes, sempre com o fim de tornar mais acessível a obra a todos os leitores.

Confio, porém, que os naturalistas recordarão que, se estiverem em busca de detalhes, será preciso que consultem as publicações maiores, que compreendem os resultados científicos da Expedição. A parte zoológica da Viagem do Beagle contém: um registro do professor Owen a respeito dos mamíferos fósseis; outro do sr. Waterhouse a respeito dos mamíferos vivos; outro do sr. Gould acerca das aves; outro do reverendo L. Jenyns acerca dos peixes, e outro do Sr. Bell sobre os répteis.

Acrescentei à descrição de cada espécie, algumas observações a respeito de seus costumes e o meio em que vivem. Estes trabalhos, dos quais sou devedor tanto no que diz respeito às enormes capacidades de seus distintos autores, quanto ao zelo desinteressado que mostraram, não poderiam ter sido empreendidos sem a liberalidade dos Lordes Comissários do Tesouro de Sua Majestade, os quais, por meio da representação do Excelentíssimo Chanceler de Exchequer, se dignaram a nos conceder a quantia de (1.000 libras esterlinas) para custear parte dos gastos requeridos para essa publicação. (...)

Ao longo desta obra, terei o prazer de indicar a grande ajuda que me foi prestada por outros naturalistas. Desejo, porém, que aqui se me permita prestar meus mais sinceros agradecimentos ao professor Henslow, pois foi ele que, quando eu estudava na Universidade de Cambridge, fez com que eu me apaixonasse pela história natural; foi ele que, durante minha ausência, encarregou-se das coleções que, de tempos em tempos, eu remitia a Inglaterra; foi ele que, com suas cartas, dirigiu minhas investigações, e quem, desde meu retorno, ofereceu-me toda assistência, sendo para mim o amigo mais afetuoso que se poderia desejar.


DOWN, BROMLEY, KENT, Junho de 1845.


COMEÇANDO A VIAGEM


Porto-Praia—Ribeira Grande—Poeira atmosférica com infusórios— Hábitos de um nudibrânquio e uma lula—Rochas de São Paulo, não-vulcânicas— Incrustações singulares—Insetos, os primeiros colonizadores das ilhas—Fernando Noronha—Bahia— Penhascos polidos—Costumes de um Baiacu—Confervae oceânico e infusórios marinos—Causas da cor do mar.


Depois de ser duas vezes rechaçado por terríveis tempestades de sudoeste, o barco de Sua Majestade Beagle, brigue de dez canhões, sob o comando do capitão Fitz Roy, da marinha real, zarpou de Devonport em 27 de dezembro de 1831.O objetivo da expedição era: completar o estudo das costas da Patagônia e da Terra do Fogo (estudo começado sob as ordens do Capitão King, de 1826 a 1830) — mapear as costas do Chile, do Peru e de algumas ilhas do Pacífico, e, por último, fazer uma série de tomadas cronométricas ao redor do mundo. Em 6 de janeiro chegamos a Tenerife, onde fomos impedidos de desembarcar, graças ao temor de que trouxéssemos o cólera. Na manhã seguinte vimos a alvorada atrás da linha irregular da ilha Grande Canária, iluminando subitamente o pico de Tenerife, enquanto a parte inferior da ilha permanecia ainda oculta por vapores ligeiros. Esta foi o primeiro de tantos dias deliciosos para nunca mais serem esquecidos. Em 16 de janeiro de 1832, ancoramos em Porto-Praia, em Santiago, a maior das ilhas do arquipélago de Cabo Verde.

Vistas do mar, as cercanias de Porto-Praia têm um aspecto desolador. As erupções vulcânicas do passado e o calor ardente de um sol tropical fizeram do solo, em quase todas as partes, impróprio para a acomodar qualquer tipo de vegetação. O território se eleva em sucessivas mesetas, cortadas por algumas colinas em forma de cones truncados; e uma cadeia irregular de montanhas grandiosas quase encobre a linha do horizonte.

A paisagem, contemplada através da atmosfera nebulosa peculiar deste clima, é de grande interesse; se é que, um homem que acaba de desembarcar e cruza pela primeira vez um bosque de coqueiros, pode ser juiz de outra coisa que não seja a felicidade que experimenta. A ilha seria considerada, em geral, como muito pouco interessante, mas para alguém acostumado apenas às paisagens inglesas o aspecto tão novo de uma terra completamente estéril possuía a grandeza que talvez uma vegetação mais luxuriante pudesse arruinar.

Uma simples folha verde somente com muita dificuldade poderia ser encontrada durante longas extensões de planícies formadas pela lava. Ainda assim, rebanhos de cabra, somados a umas poucas vacas, conseguiam sobreviver. Raramente chove por aqui, embora, durante um curto período do ano, as precipitações sejam torrenciais, e imediatamente após a chuva uma leve vegetação emerge de cada ranhura do terreno.

Esta vegetação logo definha; e é desse pasto formado de modo tão natural que os animais se alimentam. No momento, faz mais de um ano que não chove. Quando a ilha foi descoberta, os arredores mais próximos de Porto-Praia estavam cobertos de árvores*, cuja derrubada, praticada com tamanha negligência, causou aqui, assim como em Sta. Helena e em algumas das Ilhas Canárias, uma esterilidade quase que completa do solo. Os vales, amplos e profundos, muitos dos quais servem durante os poucos dias da estação de chuvas como rios, estão cobertos com moitas de arbustos desfolhados.

Poucos seres vivos habitam esses vales. A ave mais comum é o Martim-pescador (Dacelo Iagoensis), que tranqüilamente pousa sobre os galhos do mamoneiro, e dali se lança sobre gafanhotos e lagartixas. É uma ave de um colorido brilhante, mas não tão bonito quanto o das espécies européias: no seu modo de voar, nas suas maneiras e no que diz respeito ao local que habita, que é geralmente o vale mais seco, estabelece-se, também, uma enorme diferença.


Visitando ruínas


Certo dia, dois dos oficiais e eu seguimos até Ribeira Grande, povoado situado a uns poucos quilômetros a leste de Porto-Praia. Até chegarmos ao vale de São Martim, a região apresentava seu costumeiro aspecto de um marrom monótono; mas aqui, um pequeníssimo riacho produz margens vívidas com a mais luxuriante das vegetações. No período de uma hora, chegamos a Ribeira Grande e ficamos surpresos diante da visão das portentosas ruínas de um forte e de uma catedral. Esta pequena cidade, antes que seu porto secasse, tinha sido o lugar principal da ilha: agora era um povoado de aparência melancólica, ainda que bastante pitoresca. Tendo tomado como guia um padre negro e um intérprete espanhol que serviu na guerra peninsular, visitamos uma série de construções, das quais a antiga igreja formava o eixo principal. É aqui que foram enterrados os governadores e os capitães-general da ilha. Algumas das lápides traziam datas do século XVI**. Os ornamentos heráldicos eram as únicas coisas neste local retirado que nos faziam lembrar da Europa. A igreja ou capela formava um dos lados de um quadrilátero, no meio do qual crescia um enorme bananal. No outro lado, havia um hospital, contendo aproximadamente uma dúzia de internos de aparência desoladora.

Voltamos à Venda para jantar. Uma enorme multidão de homens, mulheres e crianças, todos mais negros que o pez, se une para nos examinar. Nosso guia e nosso intérprete, faceiros, riam de cada coisa que fazíamos, cada palavra que pronunciávamos. Antes de deixar o povoado, visitamos a catedral, que não nos pareceu tão rica como a igreja, embora se orgulhasse de possuir um pequeno órgão de sons nada harmoniosos. Demos alguns xelins ao sacerdote negro; e o espanhol, dando-lhe uns tapinhas na cabeça, disse-lhe, com muita candura, que considerava que a cor da pele era algo de pouca importância. Regressamos então, na velocidade máxima de nossos cavalos, a Porto-Praia.


Aves da Guiné


Outro dia, seguimos até a vila de São Domingo, localizado quase no centro da ilha. Enquanto cruzávamos uma pequena planície, avistamos algumas acácias atarracadas; os ventos alí¬sios, soprando continuamente na mesma direção, haviam dobrado de tal modo as árvores a partir das copas, que às vezes estas formavam um ângulo reto com o tronco. A direção dos galhos é exatamente NE. para N. e SO. para S.; estas curvaturas naturais devem indicar a direção dominante dos ventos. O rastro dos viajantes deixava tão poucas marcas neste solo árido que acabamos nos perdendo por ali, e, pensando ir a Santo Domingo, acabamos nos dirigindo a Fuentes. Só percebemos nosso erro ao chegarmos lá. No fim, acabamos por ficar muito satisfeitos com nosso equívoco. Fuentes é um bonito povoado, às margens de um pequeno riacho, e tudo ali parecia prosperar de modo correto, excetuando-se, de fato, o elemento mais importante: os habitantes. Vimos numerosas crianças negras, completamente desnudas e que pareciam muito miseráveis; carregando achas de lenhas quase do tamanho de seus corpos.

Avistamos, próximo a Fuentes, numerosos bandos de aves de Guiné — um número em torno de cinqüenta ou sessenta. Eram extremamente ariscas e não permitiam nenhum tipo de aproximação. Evitavam-nos, como se fossem perdizes num dia de setembro, fugiam de nós com as cabeças erguidas. E se nos púnhamos a persegui-las, imediatamente alçavam vôo.

A paisagem de São Domingos possui uma beleza totalmente inesperada, destoando por completo do caráter lúgubre do resto da ilha. A aldeia, localizada no fundo de um vale, acha-se cercada por altas e rugosas muralhas de lava estratificada. Os rochedos negros formam um notável contraste com o verde vivo de uma vegetação que costeia os bancos de um pequeno riacho de água cristalina. Era dia de festa e a cidadezinha fervilhava. No nosso retorno, alcançamos um grupo alegre, composto de cerca de vinte jovens negras, vestidas com excelente gosto. O linho branco de suas roupas caia muito bem sobre suas peles escuras. Usavam ainda como adorno turbantes e mantas de cores vistosas. Assim que nos aproximamos, elas subitamente deram meia-volta e, estendendo as mantas no caminho, começaram a cantar com grande vigor uma canção selvagem, marcando o ritmo com as mãos contra as pernas. Nós lhes demos algumas moedas, que foram recebidas com risadas estridentes, e as deixamos envolvidas entre a algaravia de sua canção.


Primeiras amostras


Certa manhã, o dia estava singularmente limpo. As montanhas ao longe se projetavam com fantástica nitidez contra uma densa massa de nuvens azul-escuras. A julgar pela aparência, e baseado em casos similares ocorridos na Inglaterra, supus que o ar estava saturado pela umidade. De fato, porém, dava-se justamente o contrário. O higrômetro acusou uma diferença de 29,6 graus entre a temperatura do ar e o ponto de orvalho. Essa diferença era de aproximadamente o dobro das observações feitas nas manhãs anteriores. A grau de secura incomum da atmosfera era acompanhando de uma série contínua de relâmpagos. Não é, todavia, incomum encontrar um caso de notável transparência do ar em tal estado de tempo?

A atmosfera geralmente é fosca e isto é causado pela queda de uma poeira fina e impalpável. Descobriu-se que tal poeira havia provocado um pequeno estrago nos instrumentos astronômicos. Na manhã anterior, ao ancorarmos em Porto Praia, coletei uma pequena amostra desse pó fino e de cor parda, que havia sido filtrada do vento pela gaze fixada no topo do mastro da embarcação. Mr. Lyell também me forneceu quatro amostras do pó que tinham sido coletadas de um vaso a poucas centenas de quilômetros ao norte dessas ilhas. O professor Ehnberg* acredita que este pó é constituído em grande parte de infusórios com proteção silícica e de tecidos silícicos de plantas. Em cinco pequenas amostras que lhe enviei, ele constatou nada menos que sessenta e sete diferentes formas orgânicas! Os infusórios, com a exceção de duas espécies marinhas, são todos habitantes de água doce. Encontrei nada menos que quinze diferentes registros de pó caído sobre embarcações em regiões afastadas do Atlântico. Em função da direção do vento, sempre que o fenômeno é observado, e levando-se em consideração que o pó sempre cai durante os meses do harmatão, vento conhecido por erguer nuvens de poeira até a alta atmosfera, podemos ter certeza de que todo esse pó vem da África.

É, contudo, fato bastante singular que o Professor Ehrenberg, embora profundo conhecedor das espécies de infusórios peculiares à África, não tenha encontrado nenhuma dessas espécies nas amostras que lhe remeti. Por outro lado, ele ali encontrou duas espécies que ele tinha como nativas da América do Sul. O pó cai em tamanha quantidade que chega a sujar tudo a bordo, irritando, inclusive, os olhos das pessoas. Sabe-se também de embarcações que tiveram que ancorar dado o grau de obscuridade da atmosfera.Este pó tem freqüentemente caído sobre navios a várias centenas, e até mesmo a mais de mil e seiscentos quilômetros da costa africana. Em alguns pontos, passa de dois mil quilômetros numa direção norte-sul. Surpreendeu-me encontrar no pó, colhido num vaso a trezentos quilômetros da terra firme, partículas de pedra medindo mais do que a milésima parte de 6,5cm quadrados vinte e cinco micra, misturada com substâncias mais finas. Depois disto, ninguém precisa se admirar com o poder de difusão dos esporos de plantas criptógamas, que são muito mais leves e menores.


Descrição geológica


A geologia desta ilha é a parte mais interessante de sua história natural. Logo que se entra no porto, vê-se uma faixa branca perfeitamente horizontal, estendendo-se ao longo de vários quilômetros de costa, a uma altura de cerca de quatorze metros do nível do mar. O exame deste estrato branco revela uma massa de matéria calcária contendo numerosas conchas, a maioria das quais, quando não todas, podendo ser encontradas como espécie viva nas costas vizinhas. Este estrato branco repousa sobre antigas rochas vulcânicas e está coberto por uma corrente de basalto, que deve ter penetrado no mar quando o leito do oceano era formado por este estrato branco cheia de conchas. É interessante observar as modificações produzidas pelo calor da lava sobrejacente na massa friável, convertendo-a, em alguns lugares, em pedra calcária cristalina e, em outros, em pedra compacta manchada. Onde o calcário foi detido pelos fragmentos de escoriação na superfície inferior da corrente, formaram-se grupos de fibras radiadas de grande beleza que se assemelham à aragonita. As camadas de lava se erguem em planos sucessivos de pequenos declives em direção ao interior, de onde devem ter sido expelidos primeiramente os dilúvios de pedra fundida. Dentro dos tempos históricos, nunca se manifestou, que eu saiba, em parte alguma de Sto. Jago, nenhum sinal de atividade vulcânica. Mesmo a forma de uma cratera só raramente pode ser descoberta no topo das muitas colinas de cinza vermelha: ainda assim, as correntes mais recentes podem ser discriminadas na costa, formando linhas de despenhadeiros menos altos, mas ultrapassando os oriundos de séries mais antigas: a altura dos despenhadeiros, deste modo, pode oferecer uma medida rudimentar da idade das correntes.


Moluscos e polvos


Durante a nossa permanência, observei os hábitos de alguns animais marinhos. É muito comum se avistar uma grande Aplísia. Este molusco tem cerca de doze centímetros de comprimento e possui uma cor de amarelo sujo, com veias púrpuras. De cada lado da superfície inferior, ou pé, existe uma larga membrana que parece algumas vezes agir como ventilador para dirigir uma corrente de água sobre as brânquias dorsais, ou pulmões. Alimenta-se de algas delicadas que crescem entre as pedras de água rasa e lamacenta. Encontrei em seu estômago vários seixos diminutos, como ocorre na moela dos pássaros. Este molusco, quando perturbado, segrega um fluído vermelho-púrpura muito fino, que tinge a água numa extensão de trinta centímetros ao seu redor. Além deste meio de defesa, possui ainda uma secreção acre sobre toda a superfície do corpo, que causa uma sensação de ferroada aguda semelhante à da fisália, ou à da caravela-portuguesa.


Estive muito interessado, em várias ocasiões, nos hábitos de um Octopus, ou polvo. Embora comuns nas poças deixadas pela retração da maré, estes animais não se deixavam apanhar com facilidade. Com o auxílio de seus longos tentáculos e de suas ventosas, conseguiam se esgueirar pelas fendas mais estreitas. Uma vez ali fixados, é necessária uma força enorme para retirá-los. Ás vezes, porém, rápidos como uma flecha, lançavam-se para a outra extremidade da poça, soltando, ao mesmo tempo, uma tinta castanho-escuro que turvava a água por completo. Estes animais conseguem ainda passar despercebidos pela extraordinária e camaleônica propriedade de mudar de cor. Parecem variar de tonalidade de acordo com a natureza do ambiente em que se encontram: quando em água profunda, assumem uma tonalidade pardo-purpúrea; em água rasa, tornam-se amarelo-esverdeados. A cor, examinada mais atentamente, revelava-se de um cinza-chumbo, salpicada por minúsculos pontos amarelos brilhantes. Estes pontos apareciam e desapareciam alternadamente sobre o fundo cinzento, cuja intensidade era igualmente instável.


Essas mudanças se operavam de tal forma que, sobre o corpo do animal, passavam continuamente nuvens que iam do vermelho-violeta ao castanho-escuro*. Qualquer parte do corpo a que se aplicasse um pequeno choque galvânico se tornava quase negra: um efeito similar, mas em menor grau, produzia-se ao lhe arranhar a pele com uma agulha. Estas nuvens coloridas, ou manchas como também podem ser chamadas, segundo se acredita, são produzidas pela expansão e contração alternadas de minúsculas vesículas contendo uma variedade de fluidos coloridos.

Um octopus


Este polvo deu mostra de suas propriedades camaleônicas tanto quando se movia na água como quando estacionava no fundo. Muito me divertiram os vários esforços que um deles empregou para fugir às minhas vistas ao perceber que eu o estava espiando. Depois de permanecer imóvel durante certo tempo, avançou cautelosamente cinco ou dez centímetros, como um gato que perseguisse um rato, às vezes mudando de cor. Assim prosseguiu até que, tendo alcançado uma parte mais funda, zarpou veloz, deixando atrás de si um rastro de tinta preta que escondia a entrada do buraco em que havia se metido.

Enquanto andava à procura de animais marinhos, com minha cabeça a meio metro acima das pedras da praia, fui, mais de uma vez, saudado por um jato de água, seguido de um ruído que se fazia ouvir, lembrando um roçar surdo. A princípio, eu não podia imaginar o que era. Mais tarde, porém, verifiquei que eram os polvos que, embora escondidos em buracos, inúmeras vezes eram por mim descobertos. Que eles possuem a propriedade de produzir jatos de água não há dúvida, e me pareceu que, poderiam fazer ótima pontaria dirigindo o tubo ou sifão pela parte inferior do corpo. Por causa da dificuldade que têm de sustentar suas cabeças, não podem se locomover desembaraçadamente quando colocados no chão. Observei que um polvo que eu guardava em minha cabine era ligeiramente fosforescente no escuro.

Cruzando o Atlântico

ROCHEDOS DE S. PAULO — Ao atravessarmos o Atlântico, na manhã de 16 de fevereiro, aproamos para o vento, aproximando-nos da ilha de São Paulo. Este agrupamento de rochedos está situado entre a latitude 0°58' norte e longitude 29° 15' oeste. A distância que os separa do continente americano é de mil quilômetros, e da ilha Fernando de Noronha, seiscentos e cinqüenta. O ponto mais elevado está somente a quinze metros acima do nível do mar, e todo o perímetro não chega a mil e duzentos metros. Esta pequena ponta se ergue abruptamente das profundezas do oceano. Sua constituição mineralógica não é simples; em algumas partes, o rochedo apresenta uma natureza quartzosa; em outras, feldspática, incluindo finos veios de serpentina. É fato de se admirar que, inúmeras ilhotas, distantes de qualquer continente, nos oceanos Pacífico, Índico e Atlântico, com exceção das Seychelles e desta pequena ponta de rochedo, são, creio, compostas por coral ou matéria proveniente de erupções. A natureza vulcânica destas ilhas oceânicas é evidentemente uma extensão dessa lei, e efeito dessas mesmas causas, quer mecânicas ou químicas, das quais resulta que a vasta maioria dos vulcões ainda em atividade esteja situada junto ao litoral ou às ilhas no meio do mar.


Da distância, os rochedos de São Paulo são de uma cor branca e brilhante. Isto se deve por um lado aos excrementos de uma vasta multidão de gaivotas, e, por outro, a uma camada dura e polida de uma substância com um lustre perolado, que está intimamente ligada à superfície dos rochedos. Esta camada, quando examinada com uma lente, revela em sua consistência numerosas camadas muito finas, sobrepostas, cada qual tendo cerca de dois milímetros e meio. Muita matéria animal está ali contida, e sua origem, sem dúvida, deve-se à ação da chuva ou à ação das ondas sobre o esterco das aves.

Ilhas de Ascensão e Abrolhos

Sob pequenas massas de guano, encontrei em Ascensão e nos Abrolhos certos corpos com ramificações estalactíticas, formados, aparentemente, da mesma maneira que a tênue película sobre esses rochedos. Tal era a semelhança entre o aspecto geral destes corpos ramificados e o de certos nulliporae (uma família das plantas marinhas calcárias) que, quando mais tarde eu examinava apressadamente minha coleção, não percebi a diferença. As extremidades globulares das ramificações são de uma textura que se assemelha à da pérola, como o esmalte dentário, mas com tal grau de dureza que poderiam riscar o vidro.


Poderei mencionar aqui que, numa parte da costa de Ascensão, onde se encontram vastas acumulações de areia coberta de conchas, a água do mar deposita sobre os rochedos cobertos pela maré uma incrustação, , que faz lembrar certas plantas criptógamas (Marchantiae) que se vêem ocasionalmente sobre as paredes úmidas, conforme a gravura sobre madeira aqui reproduzida. A superfície da fronde possui um brilho magnífico. As partes formadas em plena exposição à luz são de cor preta, enquanto as que se formaram à sombra são apenas cinzentas. Mostrei espécimes desta incrustação a vários geólogos e todos foram da opinião de que eram de origem vulcânica ou ígnea!


Em sua dureza e translucidez — em seu polimento, igual ao das mais belas conchas de Oliva — no mau cheiro que exalava, e na perda de cor sob a ação do maçarico, revelava uma íntima semelhança com as espécies de conchas vivas. Além disso, como se sabe, nas conchas as partes habitualmente cobertas pelo manto do animal são mais pálidas que as porções completamente expostas à luz, tal como sucede no caso desta incrustação. Quando nos lembramos de que o cálcio, seja na forma de fosfato ou de carbonato, entra na composição das partes duras de todos os animais vivos — como os ossos e as conchas — é fato* fisiológico interessante se encontrarem substâncias mais duras que o esmalte dentário, e superfícies coloridas e lustrosas como as das conchas frescas, que, por processos inorgânicos, foram reconstituídas de matéria orgânica morta — imitando ironicamente, inclusive, formas vegetais rudimentares.


Mergulhões e andorinhas

Encontramos nos rochedos de São Paulo somente dois tipos de aves — mergulhões e andorinhas-do-mar. Ambos se mostraram mansos e estúpidos, e estavam tão pouco acostumados a visitantes, que eu poderia ter abatido quantos quisesse com meu martelo geológico. A fêmea do mergulhão depositava os ovos sobre a rocha nua, mas a andorinha-do-mar construía um ninho muito simples com algas. Ao lado de muitos desses ninhos, podia se ver um pequeno peixe voador, ali deixado pelo macho, eu suponho, para sua companheira. Era muito divertido observar a rapidez com que um caranguejo grande e ativo (Graspus), morador das fendas dos rochedos, roubava o peixe do lado do ninho, logo que espantávamos as aves. Sir W. Symonds, uma das poucas pessoas que aqui desembarcaram, disse-me ter visto esses caranguejos chegar mesmo a arrastar do ninho os filhotes e os devorar.

Nem uma simples planta, nem um líquen sequer, cresce nesta ilhota. Ainda assim, isso não impede que seja habitada por vários insetos e aranhas. A lista que segue, creio, completa a fauna terrestre: uma mosca (Olfersia) vivendo às custas do mergulhão e um carrapato que deve tez vindo aqui como parasita das aves; uma pequena mariposa parda, pertencente a um gênero que se alimenta de penas; um besouro (Quedius) e um piolho, que vive em meio ao esterco; finalmente, numerosas aranhas que, segundo me parece, são predadoras destes pequenos seguidores das aves marinhas. Dar a descrição, já tão repetida, da majestosa palmeira e de outras plantas tropicais tão nobres, seguida pela descrição das aves, e, por fim, dos homens, tomando posse das ilhas de coral, logo que estas se formaram, no Pacífico, não será, talvez, o modo correto de proceder. Receio que isto destruirá a poesia desta história, mas será preciso admitir que os primeiros habitantes de uma terra oceânica recém-formada serão aranhas, insetos e parasitas coprófagos.

O menor rochedo nos mares tropicais que der base para o crescimento de inúmeras variedades de algas e animais compostos servirá igualmente de suporte ao desenvolvimento de grande número de peixes. Os tubarões e os marinheiros nos botes mantinham um combate constante para decidir quem levaria vantagem sobre a posse dos peixes apanhados no anzol. Ouvi dizer que um rochedo perto das Bermudas, muitas quilômetros mar adentro e a uma profundidade considerável, deveu sua descoberta à circunstância de ter sido notada a presença de peixes em suas imediações.


Nas águas do Brasil

FERNANDO DE NORONHA, 20 de fevereiro — Tanto quanto me foi possível observar durante as poucas horas em que permanecemos neste lugar, a constituição da ilha é vulcânica, mas provavelmente não de data recente. O que há de mais notável em seu caráter é uma colina de forma cônica que se eleva à cerca de trezentos e dez metros de altura, cujo cume é excessivamente escarpado, projetando-se, num dos lados, para fora da base. A rocha é monolítica e se divide em colunas irregulares. Ao se olhar uma dessas massas isoladas, tem-se a princípio a impressão de que ela teria sido lançada bruscamente para cima num estado semifluido. Em Santa. Helena, no entanto, constatei que alguns pináculos de constituição e aspecto quase idênticos haviam sido formados pela intromissão de rocha fundida em estratos maleáveis que, por esta razão, teriam servido de moldes para esses gigantescos obeliscos. Toda a ilha está coberta de arvoredos; mas, devido ao clima seco, a vegetação não se mostra luxuriante. A meio caminho da montanha, grandes colunas de massa rochosa, à sombra de loureiros e ornadas de lindas flores rosadas — de árvores sem folhas —, davam à paisagem do entorno um efeito muito encantador.

NA BAHIA

BAHIA. OU SÃO SALVADOR. BRASIL, 29 de fevereiro — ¬O dia transcorreu deliciosamente. Delícia, no entanto, é termo insuficiente para dar conta das emoções sentidas por um naturalista que, pela primeira vez, se viu a sós com a natureza no seio de uma floresta brasileira. A elegância da relva, a novidade das plantas parasitas, a beleza das flores, o verde vivo das ramagens e, acima de tudo, a exuberância da vegetação em geral me encheram de admiração. A mais paradoxal das misturas entre som e silêncio reina à sombra das árvores. Tão intenso é o zumbido dos insetos que pode perfeitamente ser ouvido de um navio ancorado a centenas de metros da praia. Apesar disso, no recesso íntimo das matas parece reinar um silêncio universal.


Para uma pessoa apaixonada pela história natural, um dia como este traz consigo uma sensação de prazer tão profunda que se tem a impressão de que jamais se poderá sentir algo assim outra vez. Depois de vagar por algumas horas, decidi voltar ao local de desembarque; antes de alcançá-lo, contudo, fui surpreendido por uma tempestade tropical. Procurei me abrigar debaixo de uma árvore, cuja copa cerrada seria impermeável à chuva comum da Inglaterra. Aqui, porém, após alguns minutos, descia pelo enorme tronco uma pequena torrente. É à violência desta chuva que devemos atribuir a verdura do solo nas matas mais densas, pois, se as pancadas fossem como nos climas mais frios, a maior parte da água seria absorvida ou evaporaria antes que chegasse ao chão. Não tentarei fazer agora a descrição do cenário desta gloriosa baía, porque, em nossa viagem de regresso, voltaremos a ancorar aqui, havendo então ocasião mais propícia para dar conta disso.


Ao longo de toda a costa brasileira, numa extensão de 3200 quilômetros, e certamente sobre uma considerável superfície do litoral, onde quer que se encontre uma rocha sólida, esta será de formação granítica. A circunstância de que esta enorme área seja constituída por materiais que a maioria dos geólogos acredita ter se cristalizado quando submetidos ao calor sob pressão, dá espaço para muitas e curiosas reflexões. Teria este efeito sido produzido nas profundezas do oceano? Ou seria o caso de um estrato primitivo que cobrisse toda a região e tivesse sido posteriormente removido? Pode-se acreditar que algum tipo de força, atuando durante quase uma eternidade, seria capaz de desnudar o granito por tantos milhares de léguas quadradas?


Lembrando Humboldt


Num local não muito distante da cidade, onde um riacho deságua no mar, observei um fato relacionado com um assunto discutido por Humboldt*. Nas cataratas dos grandes rios Orinoco, Nilo e Congo, as rochas sieníticas são cobertas de uma substância negra que lhes dá a aparência de um polimento feito com plumbagina. A camada é extremamente fina. Segundo a análise de Berzelius, ela está constituída de óxidos de manganês e ferro. No Orinoco, esta ocorrência se verifica sobre os rochedos periodicamente lavados pelas inundações, e somente nas localidades em que a correnteza é muito rápida, ou, como costumam dizer os índios: “As rochas são negras onde a água é branca”. Nestes rochedos a camada costuma ser de um marrom vivo ao invés de negra e parece composta somente de matéria ferruginosa. Espécimes portáteis não fornecem a idéia exata do que são essas pedras de polimento pardo que cintilam aos raios solares.


Elas ocorrem exclusivamente nos limites das ondas; e, visto que este riacho serpenteia vagarosamente, é na violência da rebentação que deveremos procurar o agente de polimento, representado nos grandes rios pela força das cataratas. De mesmo modo, a enchente e a vazante das águas provavelmente substituem as inundações periódicas, produzindo assim os mesmos efeitos em circunstâncias análogas, embora aparentemente diversas. A origem destas camadas de óxido metálico, contudo, que parecem cimentadas sobre as rochas, não é compreendida. Não creio que se possa atribuir uma razão para o fato da espessura permanecer constante.

Peixe-esfera


Certo dia, diverti-me ao observar os hábitos do Diodon antennatus, que foi apanhado enquanto nadava próximo à praia. Este peixe, com sua pele flácida, possui, como sabido, a singular capacidade de distender o corpo numa forma quase esférica. Após ter sido tirado da água por alguns momentos e depois mergulhado novamente, uma considerável quantidade de água e de ar é absorvida pela boca, o mesmo acontecendo provavelmente pelos orifícios branquiais. O processo se efetua de dois modos: o ar é aspirado e, em seguida, forçado a penetrar na cavidade do corpo, de onde não pode retornar em função de uma contração muscular que é externamente visível. A água, porém, penetra numa corrente branda pela boca que é mantida aberta e imóvel. Isto indica, portanto. que o ato se baseia na sucção. A pele do abdome é muito mais flácida do que a do dorso. Desta forma, durante a inflação, a superfície inferior se distende muitíssimo mais do que a superior.


O peixe, por conseqüência, flutua com as costas voltadas para baixo. Cuvier duvida que o Diodon nessa posição possa nadar. Todavia, o animal pode se mover não só em linha reta como também se voltar de um lado para o outro. Este último movimento é efetuado exclusivamente pela ação das barbatanas peitorais, a cauda colapsada e inativa. Em função do corpo boiar com tanto ar no interior, as aberturas branquiais se mantêm fora d’água, mas um fluxo aspirado pela constantemente as atravessa.


O peixe, tendo permanecido algum tempo distendido, expele o ar e a água com grande violência pelas aberturas branquiais e pela boca. Pode soltar, também, apenas parte da água, o que leva a crer que o fluido é aspirado com o fim de regular a gravidade específica do animal. Este Diodon dispõe de vários recursos de defesa. Além de possuir uma severa mordida, é capaz de expelir um jato d’água a certa distância, fazendo ao mesmo tempo um ruído curioso pelo movimento das mandíbulas. Com a inflação do corpo, as papilas, que recobrem sua pele, tornam-se eretas e pontudas.


A circunstância mais notável, no entanto, é que, quando tocada, a pele do ventre segrega uma matéria fibrosa de linda cor vermelho-carmim, que mancha o marfim e o papel de modo tão persistente que seu brilho permanece até os dia atuais: sou um tanto ignorante quanto à natureza e utilidade desta secreção. Ouvi do Dr. Allan de Forres que ele freqüentemente encontrava um Diodon flutuando, distendido e vivo, no estômago do tubarão; e que soubera de vários casos em que o animal tinha aberto uma passagem para si, não só através das paredes gástricas como também das tramas musculares, matando, desta forma, o monstro que o havia engolido. Quem poderia imaginar que um peixe pequeno e flácido fosse capaz de destruir um colossal e selvagem tubarão?

De novo no Mar


18 de março. - Partimos da Bahia. Alguns dias mais tarde, não muito distante das ilhas dos Abrolhos, tive minha atenção atraída por uma coloração vermelho-pardacenta que se notava no mar. Toda a superfície da água, conforme se via através de uma lente de pequeno aumento, parecia como que coberta de minúsculos fragmentos de feno, com as extremidades franjadas. São diminutas confervae cilíndricas, em colônias de vinte a sessenta indivíduos. O sr. Berkeley informou que são da mesma espécie (Trichodesmium erythraeum) encontrada em grandes áreas do Mar Vermelho, ocorrência que inclusive nomeia o próprio mar*. Seu número deve ser infinito: o navio atravessou vários bandos, um dos quais media cerca de nove metros de largura e, a julgar pela cor barrenta da água, pelo menos quatro quilômetros de comprimento. Em quase toda longa viagem longa que se faça, estas confervae são presença registrada. Parecem ser especialmente comuns nas águas próximas à Austrália. Ao largo do Cabo Leeuwin, encontrei uma espécie semelhante, porém menor e aparentemente de uma espécie diferente. O Capitão Cook, na sua terceira viagem, registra que os marinheiros lhe deram o nome de serragem-do-mar.


Perto do Atol de Keeling, no Oceano Indico, observei massas de confervae muito pequenas, medindo alguns milímetros quadrados e consistindo de filamentos cilíndricos longos e excessivamente finos, quase invisíveis a olho nu, misturadas com outros corpúsculos maiores apresentando extremidades finamente cônicas. A gravura mostra dois indivíduos juntos. Eles variam em comprimento entre um milímetro e um milímetro e meio, atingindo mesmo dois milímetros; e em diâmetro entre quinze e vinte centésimos de milímetro. Próximo de uma extremidade da parte cilíndrica, um septo verde, formado de substâncias granulosas, mais grossas no centro, pode geralmente ser visto. Isto, creio, é o fundo de uma delicadíssima bolsa incolor, composta de matéria polpuda, que forra o invólucro por dentro, sem que, no entanto, se estenda às pontas extremas e cônicas. Em alguns espécimes examinados, o lugar ocupado pelo septo apresentava minúsculas mas perfeitas esferas de substância granulosa pardacenta. Pude também observar o curioso processo pelo qual se produzem.

Subitamente, a matéria polpuda do interior se agrupa e se alinha, algumas das quais partindo de um centro comum. Em seguida, com um movimento irregular e rápido, a fim de se contrair, transformava-se, depois de um segundo, numa perfeita esfera que ia ocupar a posição do septo em uma das extremidades do invólucro agora completamente oco. A formação da esfera granulosa se acelerava sob qualquer dano acidental. Posso acrescentar que freqüentemente um par destes corpos se unia, como representado acima, cone justaposto a cone, na extremidade em que ocorre o septo.

As várias cores do mar


Acrescentarei aqui algumas outras observações sobre a descoloração do mar devido a causas orgânicas. Na costa do Chile, poucos quilômetros a norte de Concepción, o Beagle passou, um dia, por grandes zonas de água lamacenta, exatamente parecida com a água de um rio inundado. Em outra ocasião, um grau ao sul de Valparaíso e a oitenta quilômetros da costa, este aspecto se dava de maneira ainda mais clara. Num copo de vidro essa água apresentava um matiz vermelho pálido; e, examinada sob o microscópio, viam-se pulular animálculos minúsculos, muitos dos quais freqüentemente explodiam. Sua forma é oval, contraídos na parte central por um anel formado de cílios curvos vibráteis.

Era, entretanto, muito difícil de examiná-los cuidadosamente, uma vez que, no instante em que cessava o movimento, ou mesmo ao atravessarem o campo ocular seus corpos explodiam. Às vezes, as duas extremidades explodiam ao mesmo tempo; outras vezes, uma só, projetando-se, então, uma substância granulosa, áspera e pardacenta. Um instante antes de explodir, o animal se expandia a quase o dobro de seu tamanho normal. A explosão ocorria dentro de quinze segundos depois de cessado o rápido movimento de progressão. Em alguns casos, a explosão era, durante curto intervalo, precedida de um movimento de rotação em torno do eixo mais longo.


Deste modo pereciam, em dois minutos, quantos indivíduos se vissem isolados numa gota de água. Os animais se locomoviam com o ápice estreito voltado para frente, por meio dos cílios vibráteis e, em geral, deslocando-se rápida e subitamente. São excessivamente minúsculos e inteiramente invisíveis a olho nu, não ocupando mais que o espaço de 25 milésimos de milímetro quadrado. Seu número é infinito, pois na gota mais reduzida que consegui colher sempre havia uma grande quantidade deles. Noutro dia, atravessamos dois lugares no mar em que a água se via assim turvada, sendo que um deles deveria cobrir uma área de vários quilômetros quadrados.


Que número incalculável desses animais microscópicos! A cor da água, vista de longe, lembrava um rio que tivesse transbordado em algum distrito de barro vermelho; mas, à sombra lateral do navio, escureciam-se como chocolate. A linha em que a água vermelha e azul se juntavam estava claramente definida. Havia alguns dias que o tempo se mantinha calmo, e o oceano, num grau fora de comum, abundava de criaturas vivas*.


No mar em torno da Terra do Fogo, e não longe da costa, observei algumas faixas estreitas de água de um vermelho brilhante, produzidas por numerosos crustáceos que de alguma forma lembravam camarões gigantes. Os caçadores de focas os chamam de comida-de-baleia. Se as baleias se alimentam desses animais, não sei dizer; mas andorinhas-do-mar, cormorões e imensos grupos de focas gigantescas que se arrastam aos milhares em alguns lugares da costa têm como principal meio de subsistência esses caranguejos nadadores. Os marinheiros invariavelmente atribuem aos ovos de peixe a descoloração da água. Descobri, no entanto, que somente em uma das ocasiões era essa a causa.


A uma distância de vários quilômetros do Arquipélago de Galápagos, o navio cruzou três faixas de água amarelo- escuro, com aspecto lamacento, medindo alguns quilômetros de comprimento. Essas faixas, contudo, tinham apenas poucos metros de largura. A linha de separação da água comum era muito nítida, ainda que sinuosa. A cor era resultante de pequenas bolas gelatinosas, de cerca de cinco milímetros de diâmetro, contendo um grande número de minúsculos óvulos esféricos: estes eram de dois tipos distintos, cada qual tendo um tipo de matiz avermelhado e uma forma diferente do outro. Não posso fazer nenhuma conjetura sobre a que duas espécies de animais esses óvulos pertenciam.


Afirma o Capitão Colnett que a sua presença é muito comum entre as Ilhas Galápagos e que a direção que tomam as faixas é a mesma das correntes marítimas. No caso que acabei de descrever, contudo, a linha tinha sido dada pelo vento. O único outro aparecimento que tenho a mencionar é a de uma fina película oleosa refletindo cores irisadas na superfície da água. Pude ver na costa do Brasil uma considerável extensão do oceano coberta desta maneira. Os marinheiros a atribuem à decomposição de alguma carcaça da baleia, que provavelmente esteja à tona em lugar não muito distante. Não mencionarei aqui as diminutas partículas gelatinosas, a serem referidas mais tarde, freqüentemente dispersas sobre a superfície da água, pois elas não são suficientemente abundantes para provocar qualquer alteração de cor.

Indagações

Há duas circunstâncias nos comentários acima que parecem notáveis: em primeiro lugar, de que maneira os vários corpúsculos que formam faixas com margens tão nítidas se mantêm juntas? No caso dos caranguejos nadadores, seus movimentos se davam com a mesma uniformidade de um regimento de soldados. Isto, contudo, não pode acontecer de maneira voluntária com os óvulos ou as confervae, nem provavelmente entre os infusórios. Em segundo lugar, que causa pode produzir o comprimento e a estreiteza das faixas? Há tanta semelhança entre essa aparência e a que se nota em toda grande torrente, onde a correnteza faz desenrolar em longas cintas a espuma colhida nos redemoinhos, que devo atribuir o efeito a uma ação idêntica de correntes, sejam elas aéreas ou marítimas. Sob essa suposição, somos forçados a crer que os vários corpúsculos organizados são gerados em certos lugares favoráveis, e então removidos pela ação do vento ou da água. Confesso, entretanto, que há grande dificuldade em imaginar um local qualquer que pudesse ser o berço dos milhões de milhões de animálculos e confervae; pois, de onde teriam procedido os germes encontrados em tais pontos? — os corpúsculos paternos foram espalhados pelo vento e pelas ondas sobre um oceano imenso. Em nenhuma outra hipótese, porém, eu poderia compreender o seu agrupamento linear. Posso acrescentar que Scoresby observa que esta água esverdeada, abundante em animais pelágicos, é invariavelmente encontrada em certas partes do Mar Ártico.

NO RIO DE JANEIRO

Rio de Janeiro — Excursão ao norte de Cabo Frio — Grande evaporação — Escravidão — Baía de Botafogo - Planariae terrestre — Nuvens sobre o Corcovado — Temporal - Rãs musicais — Insetos fosforescentes — Poder de salto do Elatro — Névoa azul — Estalido produzido por uma borboleta — Entomologia — Formigas — Vespa matando uma aranha — Aranha parasita - Artifícios de uma Epeira — Aranha gregária — Aranha de teia assimétrica.

4 de abril a 5 de julho de 1832. — Alguns dias depois da nossa chegada, travei conhecimento com um inglês que estava indo visitar sua propriedade situada ao norte de Cabo Frio, a mais de cento e sessenta quilômetros de distância da capital. Convidou-me para acompanhá-lo e eu prontamente aceitei sua gentil oferta.

8 de abril. — A nossa caravana consistia de sete pessoas. O primeiro estágio do percurso foi muito interessante. O dia estava excessivamente quente, e ao passarmos pelos bosques nada se movia, com exceção de algumas borboletas grandes e brilhantes que preguiçosamente esvoaçavam de um lado para outro. A vista que se revelava por detrás das colinas de Praia Grande era deslumbrante, as cores eram intensas, prevalecendo um tom azul escuro; as águas tranqüilas da baía disputavam com o céu em esplendor.


Depois de termos atravessado algumas áreas de terra cultivada, embrenhamo-nos em uma floresta, cujos recantos eram de inexcedível grandiosidade. Ao meio-dia, chegamos a Itacaia. Esta pequena aldeia estava situada numa planície e no entorno da casa principal se viam as cabanas dos negros. A forma e a posição dessas cabanas me fizeram lembrar das gravuras que vi de habitações hotentotes na África do Sul. Como a lua nascesse cedo, resolvemos partir na mesma tarde, a fim de alcançarmos nosso lugar de pernoite, junto à Lagoa Maricá. Como escurecia, passamos sob uma das íngremes colinas de granito maciço, tão comuns neste país. É lugar é notório pelo fato de ter sido, durante muito tempo, o quilombo de alguns escravos fugidos que, cultivando um pequeno terreno próximo à vertente, conseguiram produzir o necessário para o próprio sustento. Acabaram sendo descobertos e reconduzidos dali por uma escolta de soldados. Uma velha escrava, no entanto, preferindo a morte à vida miserável que vivia, lançou-se do alto do morro, indo se despedaçar contra as pedras da base. Para uma matrona romana, este gesto seria chamado de nobre amor à liberdade. Para uma pobre negra, porém, este ato não passava de uma obstinação simples e brutal. Continuamos cavalgando por várias horas. Nos primeiros quilômetros a estrada era intrincada e passava por uma região desolada de lagunas e pântanos. À luz mortiça do luar, o cenário se fazia ainda mais desolador. Alguns vaga-lumes cruzavam o ar perto de nós, e a nosso ouvido chegava o gemido da narceja, que fugia à nossa passagem. As ondas que se quebravam nas praias ao longe cortavam o silêncio da noite com seu marulhar surdo e monótono.

Freqüentando a Venda

Um octopus
9 de abril. — Antes do nascer do sol, deixamos o local miserável em que passamos a noite. A estrada passava ao longo de uma planície estreita e arenosa que se estendia entre o mar e as lagunas salgadas interiores. Um grande número de belas aves ribeirinhas, como as garças e os grous, e as plantas suculentas que assumiam formas fantásticas davam ao cenário um interesse que de outra forma não possuiria.. As poucas árvores atrofiadas que se viam, estavam cobertas de plantas parasitas, entre as quais se podiam admirar a beleza e deliciosa fragrância de algumas orquídeas. À medida que o sol se erguia, o dia se tornou intoleravelmente quente, e a areia branca, refletindo a luz e o calor, causou-nos um mal-estar intenso. Fizemos a refeição em Mandetiba, com o termômetro marcando 28°C à sombra. Daí, viam-se morros distantes, cobertos de arvoredo, que se espelhavam nas águas tranqüilas de uma extensa lagoa, algo que nos reconfortou.


Como a Venda em que ficamos era ótima e me produziu uma reminiscência agradável, ainda que vaga, de um excelente almoço farei a seguir, a fim de provar minha gratidão, a sua descrição, como típica no gênero. Essas casas geralmente são espaçosas, construídas com postes verticais entrelaçados de ramos que são depois rebocados. Raramente possuem soalho; janelas com vidraças, nunca. São, entretanto, geralmente. muito bem cobertas. Como via de regra, a parte da frente é toda aberta, formando uma espécie de alpendre, em cujo interior se colocam mesas e bancos. Os dormitórios são contíguos de cada lado, e neles os hóspedes podem dormir, com o conforto que lhes for possível, sobre uma plataforma de madeira e um magro colchão de capim. A Venda ficava no quintal em que os cavalos eram alimentados. Costumávamos, ao chegar, desarrear os animais e lhes dar sua ração de milho*. Em seguida, curvando-nos reverentemente, pedíamos ao senhor que nos fizesse a gentileza de nos dar qualquer coisa para comer: “O que quiserem, senhores!”, era sua resposta habitual. Nas primeiras vezes, dei em vão graças à Providência por nos haver guiado à presença de tão amável pessoa. Prosseguindo o diálogo, porém, o caso invariavelmente assumia o mesmo aspecto deplorável.


— Pode fazer o favor de nos servir peixe?

— Oh, não, senhor.

— Sopa?.

— Não, senhor.

— Algum pão?

— Não, senhor.

— Carne seca?

— Oh! Não, senhor!

Se tivéssemos sorte, esperando umas duas horas poderíamos conseguir frangos, arroz e farinha. Não raro tivemos que abater pessoalmente a pedradas as galinhas que nos iam servir para o almoço. Quando, extenuados de cansaço e de fome, dávamos timidamente a entender que ficaríamos satisfeitos de ver a mesa posta, a resposta pomposa usual (se bem que verdadeira), ainda que desagradável em demasia, era: “Ficará pronto quando estiver pronto”. Se ousássemos insistir mais, acabaria por nos mandar seguir viagem por nossa impertinência. Os anfitriões possuíam péssimas maneiras e eram muitíssimo descorteses. Suas casas e suas roupas freqüentemente eram imundas e mal cheirosas. A carência por talheres também era total, e tenho certeza que não se encontraria na Inglaterra nenhuma cabana ou casebre assim destituídos dos mais simples confortos.


Em Campos Novos, contudo, passamos suntuosamente, tendo ao almoço arroz, frango, bolachas, vinho e licor. Pela manhã, serviam-nos peixe com café, e à tarde, café simples. Tudo isso, incluindo boa ração para os cavalos, custou-nos somente dois xelins e meio por pessoa. Ainda assim, quando perguntamos ao dono do estabelecimento se acaso sabia alguma coisa sobre o relho que um membro da nossa comitiva havia perdido, respondeu com brutalidade: “Como é que eu vou saber? Por que não guardaram direito suas coisas? É capaz que os cachorros tenham comido.”


Deixando Mandetiba, seguimos novamente através uma intrincada e erma região de lagoas. Em algumas havia conchas de água doce: em outras, de água salgada. Entre as conchas de água salgada, encontrei grande profusão de Limnaea numa das lagoas que, segundo me afirmaram os habitantes, o mar invadia uma vez por ano, e, às vezes, até com maior freqüência, de modo que a água se tornava bastante salgada. Não tenho dúvida de que se poderiam observar muitos fatos interessantes sobre animais de água doce e salgada nesta cadeia de lagunas que margeia a costa do Brasil. M. Gay* declarou haver encontrado nas imediações do Rio, conchas marinhas do gênero solen e mytilus e conchas de água doce ampullariae vivendo juntas em água salobra. Observei também, freqüentemente, numa laguna próxima ao Jardim Botânico, onde a água é apenas menos salgada que no mar, uma espécie de hydrophilus, muito semelhante a um coleóptero comumente encontrado nos fossos da Inglaterra. Na referida laguna, a única concha encontrada pertencia a um gênero habitual dos estuários.

Entrando na floresta

Deixando por algum tempo a costa, novamente penetramos na floresta. As árvores que se viam eram de grande altura e bastante notáveis pela brancura do tronco, quando comparadas às da Europa. Vejo pelo meu caderno de notas que as “maravilhosas parasitas com belíssimas flores” invariavelmente me chamavam a atenção como o aspecto culminante da grandiosidade destas paisagens. Prosseguindo, atravessamos extensas pastagens que sofriam grande dano graças à presença de enormes formigueiros cônicos atingindo uma altura de três metros e meio.

Estes formigueiros davam à planície a aparência exata dos vulcões de barro em Jorullo, como figurados por Humboldt. Quando chegamos ao Engenho já era noite, depois de termos andado dez horas a cavalo. Durante toda a jornada, nunca cessei de me admirar da grande resistência dos cavalos, tendo notado que estes animais parecem se recuperar muito mais depressa de um acidente do que os nossos da Inglaterra. Os morcegos são muitas vezes a causa de grande transtorno, pois mordem os cavalos na junta do pescoço. A lesão geralmente não se dá devido à perda de sangue mas sim à inflamação que depois se produz pelo atrito da sela. A veracidade deste fato foi há pouco posta em dúvida na Inglaterra, de modo que me considerei afortunado por presenciar um (Desmodus d' orbignyi, Wat.) no momento em que se achava sugando um dos cavalos. Certa noite, em nosso acampamento próximo de Coquimbo, no Chile, o meu criado, notando que um dos cavalos parecia inquieto, foi ver o que acontecia. Imaginando perceber qualquer coisa sobre o animal, avançou sorrateiramente a mão e agarrou o morcego. Na manhã seguinte, o lugar da mordida estava bem visível por causa de uma ligeira inchação sanguinolenta. Três dias depois, montamos o cavalo sem nenhum efeito danoso.

Numa propriedade escravista


13 de abril. — Depois de três dias de viagem, chegamos a Socêgo, propriedade do Senhor Manuel Figuireda, parente de um membro da nossa comitiva. A casa era simples, e, embora tivesse a forma de um celeiro, estava bem de acordo com o clima. Na sala havia sofás e cadeiras douradas que faziam um enorme contraste com o teto de sapé, com as paredes caiadas e com as janelas sem vidraça. A casa, os armazéns, o estábulo e a oficina para os negros, que tinham aprendido a fazer vários trabalhos, compreendiam um quadrilátero mal formado em cujo centro se via uma grande pilha de café a secar. Estas construções estavam localizadas sobre uma pequena colina que dominava os terrenos cultivados e se encontrava cercada por todos os lados pela ramagem verde escuro de uma luxuriante floresta.


O café é o principal produto desta parte do país. Cada pé deve produzir anualmente a média de um quilo, mas muitos são os que chegam a dar quatro quilos. A mandioca também é intensamente cultivada. Esta é uma planta cujas partes são todas úteis: as folhas e o talo servem de alimento aos cavalos; as raízes, depois de moídas em polpa, secadas e cozidas, formam a farinha que constitui o principal artigo de subsistência no Brasil. É fato curioso e bem conhecido que o suco desta planta tão nutritiva é um poderoso veneno. Há alguns anos morreu nesta Fazenda uma vaca, em conseqüência de o haver bebido. O Senhor Figuireda me disse que no ano anterior ele havia plantado uma saca de feijão e três de arroz, tendo colhido do primeiro oitenta e do segundo trezentas e vinte.


Os pastos mantêm um belo plantel de gado, e as matas encerram tanta caça que em cada um dos três últimos dias foi morto um veado. Essa abundância de alimento provou ser um almoço e tanto, e se as mesas não gemeram, os hóspedes, por sua vez, certamente o fizeram. Afinal, esperava-se que cada pessoa comesse de todos os pratos trazidos. Certo dia, tendo eu me programado para que nenhum prato deixasse de se provado, eis que vejo, consternado, aparecer ainda, em toda a sua substancial realidade, um suculento peru recheado e um porco assado. Nas horas de refeição, havia um criado cuja única função era enxotar da sala alguns cães, bem como um grupo de crianças negras que se aproveitavam de todas as oportunidades para entrar. Pudesse ser banida a idéia da escravidão e haveria neste modo simples e patriarcal de viver um quê de fascinação: um retiro perfeito, independente do resto do mundo.

No instante em que se avista a chegada de qualquer estranho, um grande sino se põe a tocar e, em geral, ouvem-se salvas de pequenos canhões. A notícia é dada, deste modo, às pedras e às matas, mas a mais ninguém. Saí uma manhã, uma hora antes do alvorecer, a fim de admirar a solene quietude do cenário. Por fim, o silêncio se desfez com o hino matinal que, entoado por todos os trabalhadores negros, encheu o ar. Assim geralmente dão começo à sua lida. Em fazendas como esta, não duvido de que os escravos tenham uma vida feliz e contente. Nos sábados e domingos trabalham para si próprios, e, neste clima fértil, dois dias de trabalho são suficientes para garantir o sustento de um homem e de sua família durante uma semana.

Enfrentando um cipoal


14 de abril. — Deixando Socêgo, dirigimo-nos a outra propriedade, no Rio Macaé, o último pedaço de chão cultivado nesta direção. A propriedade contava quatro quilômetros de comprimento, mas o dono tinha se esquecido quanto media de largura. Somente uma pequena parte tinha sido roçada. Cada acre, contudo, era capaz de produzir todas as riquezas de uma terra tropical. Levando em conta a enorme superfície do Brasil, a proporção de terras cultivadas é insignificante se tomamos as extensões abandonadas ao estado de natureza selvagem: numa era futura, que população imensa este país não sustentará!


Durante o segundo dia da nossa jornada, encontramos a estrada tão fechada que foi preciso mandar um homem à frente de facão, a fim de abrir passagem no cipoal. A floresta abundava de lindos objetos. Dignos de admiração eram as samambaias arborescentes que, embora pequenas, ostentavam nas curvas elegantes de sua fronde uma folhagem verde e brilhante. Ao entardecer choveu muito, e senti bastante frio, apesar do termômetro marcar 18°C. Logo que parou de chover, foi curioso observar a extraordinária evaporação que começou a ocorrer sobre toda extensão da floresta. As colinas, a uma altura de trinta metros desapareciam sob uma densa neblina branca que se erguia como colunas de fumaça saindo das partes mais cerradas da mata, especialmente dos vales. Observei o mesmo fenômeno em várias ocasiões, e suponho que seja devido à grande superfície de folhagem, previamente aquecida pelos raios solares.

Cena terrível

Durante a minha permanência nesta propriedade, por pouco não fui testemunha-ocular de um desses atos de atrocidade que somente podem tomar lugar num país de escravos. Por questões de processo jurídico, o proprietário esteve prestes a tirar da companhia dos escravos todas as mulheres e crianças para vendê-as em separado nos leilões do Rio. O interesse, e não um genuíno sentimento de compaixão, foi o que impediu a perpetração deste ato. De fato, não creio mesmo que à mente do proprietário tivesse sequer ocorrido a idéia da covardia que seria separar trinta famílias, que há tantos anos viviam unidas.


Posso assegurar, no entanto, que, em matéria de humanidade e de boa índole, este cavalheiro está acima da média dos homens. Não há limites, pode-se dizer, à cegueira do interesse e do egoísmo. Menciono aqui a seguinte anedota que se passou comigo e que me impressionou muito mais intensamente de que qualquer história de crueldade que eu pudesse ter ouvido.


Certo dia, tomei uma balsa em companhia de um negro que era singularmente estúpido. Para ser compreendido, passei a falar alto e a gesticular por meio de sinais. Em algum momento, devo ter passado a mão tão perto demais de seu rosto. Ele, suponho, julgando que eu talvez estivesse irado e fosse acertá-lo, deixou os braços penderem, a fisionomia transfigurada pelo terror, os olhos semicerrados. Jamais poderei esquecer as sensações que em mim brotaram, mescla de surpresa, repulsa e vergonha por ver um homem tão grande e poderoso amedrontado demais para se esquivar sequer da pretensa bofetada que ele achava que iria receber no rosto. Este homem havia sido treinado para se acomodar a uma degradação mais aviltante que qualquer escravidão que pudesse ser imposta ao mais indefeso dos animais.

Na estrada de volta

18 de abril. — Ao retornar, passamos dois dias em Socê¬go. Ocupei-me em coletar insetos na floresta. A maioria das árvores, conquanto elevadas, não tinha circunferência superior a noventa centímetros ou a um metro. Há, é claro, algumas de dimensões muito maiores. O Senhor Manuel se encontrava, na ocasião, construindo uma canoa de 21 metros, com um tronco de enorme grossura, que antes medira 33 metros de comprimento. O contraste das palmeiras crescendo entre espécies dotadas de ramos comuns nunca deixa de dar à paisagem um caráter intertropical. Aqui as florestas são ornamentadas por palmeiras* — uma das mais belas de sua família. Com um caule tão fino que se poderia abarcar com as mãos, balança sua graciosa ramagem a doze ou quinze metros do solo. As trepadeiras lenhosas, por sua vez cobertas por outras trepadeiras, eram de grosso calibre: algumas, que medi, de cerca de sessenta centímetros de circunferência.


Jardim Botânico


Muitas das árvores mais velhas tinham uma aparência curiosa devido a tranças de liana que lhe pendiam dos galhos como se fossem molhos de feno. Se os olhos se voltassem do mundo de folhagens acima para o chão, seriam logo atraídos para a extraordinária elegância das folhas das samambaias e das mimosae. As últimas, em certos lugares, cobriam a superfície com um tapete de vegetação de poucos centímetros de altura. Cruzando estes densos canteiros de mimosae, deixa-se atrás de si um largo rastro que se faz notar pela mudança de coloração produzida pelo descaimento de seus sensíveis pecíolos. É fácil de se especificar os objetos de admiração individual nestas cenas grandiosas, mas não é possível transmitir uma idéia adequada do que sejam as sensações de maravilha, surpresa e devoção que enchem e elevam a mente.


De novo no Rio de Janeiro


19 de abril. — Deixando Socêgo, passamos os dois primeiros dias voltando pelo caminho andado. Foi tarefa das mais maçantes, visto que a estrada, em grande parte, seguia por uma planície de areia quente e brilhante, não longe da costa. Notei que o casco do cavalo rangia ao pisar na areia fina. No terceiro dia, tomamos uma direção diferente e passamos por um vilarejo alegre chamado Madre de Deus. Esta é uma das principais estradas do Brasil, entretanto se encontra em tão mau estado que nenhum veículo de rodas, a não ser o ruidoso carro de bois, pode transitar por ela. Em todo o nosso percurso, nunca atravessamos uma ponte sequer que fosse de pedra, e as feitas de madeira, que freqüentemente encontrávamos, estavam em condições tão precárias que precisávamos dar a volta a fim de evitá-las. Não se pode ter certeza de nenhuma distância. Em muitos pontos da estrada, em lugar de um marco milhar se vê uma cruz, indicando um local onde se derramou sangue humano. No entardecer do dia 23, chegamos ao Rio encerrando assim nossa pequena e agradável excursão.


*******************


Durante todo o resto de minha permanência no Rio, residi em uma quinta na Baía de Botafogo. Era impossível se desejar coisa mais deliciosa do que passar assim algumas semanas num país tão magnífico. Na Inglaterra. qualquer pessoa apaixonada pela história natural sempre tem nos passeios alguma coisa que lhe atraia a atenção: mas aqui, na fertilidade de um clima como este, são tantos os atrativos que não se pode nem mesmo dar um passo sem lamentar a perda de uma novidade qualquer.

Novas espécies


As poucas observações que fui capaz de fazer versaram quase que exclusivamente sobre animais invertebrados. A existência de uma divisão do gênero Planaria, habitante da terra seca. muito me interessou. Estes animais têm uma estrutura tão simples que Cuvier os fez figurar entre os vermes intestinais, embora nunca tenham sido encontrados no corpo de outros animais. Numerosas espécies habitam tanto a água doce quanto a salgada, mas estas de que falo são encontrada mesmo nas partes mais secas da floresta, embaixo de troncos podres, dos quais, creio eu, elas se alimentam.


Na forma geral, parecem-se com pequenas lesmas, porém são muito mais estreitas, e, além disso, várias representantes da espécie possuem riscas longitudinais de cores muito lindas. A estrutura é muito simples: próximo ao centro da superfície ventral existem duas pequenas fissuras transversais. Da fissura anterior pode se projetar uma boca excessivamente excitável em forma de funil, que retêm sua vitalidade algum tempo depois da morte completa do animal, provocada pela água salgada ou por outra causa qualquer.
Encontrei nada menos do que doze espécies diferentes de Planariae terrestres em diferentes partes do hemisfério sul*. Algumas espécies que obtive na Terra de Van Dieman se conservaram vivas durante quase dois meses, alimentando-se de madeira podre. Tendo seccionado transversalmente um dos animais, em duas partes iguais, observei, após um período de quinze dias, que as duas metades se apresentavam com a forma de dois animais perfeitos.


Eu tinha, no entanto, dividido o corpo de maneira que uma das metades contivesse os dois orifícios ventrais, nenhum restando para a outra. Vinte e cinco dias depois desta operação, mal se poderia distinguir entre a metade mais perfeita (que havia se desenvolvido) e qualquer outro indivíduo da espécie. A outra metade havia aumentado muito de tamanho. Podia-se distinguir, próximo a extremidade posterior, um espaço em claro na massa parenquimatosa, no qual se podia perceber a formação de uma boca rudimentar em forma de taça. Na superfície ventral, porém, nenhuma fissura correspondente se abrira. Se a intensificação do calor, ao nos aproximarmos do Equador, não tivesse destruído todos os indivíduos, não tenho dúvida de que esse último detalhe de estrutura teria sido completado.


Por muito conhecida que seja esta experiência, é sempre muito interessante acompanhar a formação gradual de cada órgão essencial, a partir da mera extremidade de outro animal. É extremamente difícil de preservar estas Planariae. Logo que a cessação da vida permite a ação das leis comuns de transformação, o corpo do animal se torna mole e fluido, com uma rapidez como nunca vi igual.


A importância da faca


A primeira vez que visitei a floresta onde estas Plenariae foram encontradas, foi em companhia de um velho padre português, que me levou para caçar consigo. O esporte consistia em soltar na moita alguns cães e fazer fogo contra qualquer animal que dali surgisse. Acompanhava-nos o filho de um fazendeiro vizinho — bom exemplar de jovem nativo brasileiro. Ele vestia camisa e calças velhas, rasgadas, e vinha com a cabeça descoberta. Carregava uma espingarda antiquada e facão. O hábito de carregar uma faca é universal. E é quase um bem necessário ao se entrar no mato, por causa do cipó. A freqüente ocorrência de assassinatos pode, em parte, ser atribuída a isso.


Os brasileiros são tão destros na faca que são capazes de atirá-la com ótima pontaria a alguma distância, e com força suficiente para causar um ferimento mortal. Vi diversos meninos que praticavam a arte como meio de diversão, e, pela habilidade com que acertavam o alvo, um pau vertical, muito prometiam em caso de empreendimentos mais sérios.


O meu companheiro, no dia anterior, tinha matado dois grandes macacos barbudos. Esses animais possuem rabos com capacidade de apreensão, na extremidade dos quais podem, mesmo após a morte, suportar todo o peso de seus corpos. Um dos símios tinha ficado pendurado desta maneira no alto de um galho, e foi necessário se derrubar a árvore para apanhá-lo. Isso foi logo feito, árvore e macaco vindo abaixo estrepitosamente. O resultado do nosso dia de caçada foi, além do macaco, muitos papagaios verdes e uns poucos tucanos. Tive, no entanto, vantagem em ficar conhecendo o padre português, pois em outra ocasião me deu de presente de um belo exemplar do gato Yagouaroundi.

A beleza da baia do Botafogo

Todos já ouviram falar da beleza do cenário da Baía de Botafogo. A casa em que me encontrava hospedado estava situada bem debaixo da famosa montanha do Corcovado. Tinha-se afirmado, com muita verdade, que os morros cônicos e abruptos são os característicos da formação a que Hum¬boldt chamou de granito-gneiss. Nada mais admirável do que o efeito dessas colossais massas redondas de rocha nua emergindo do seio da mais luxuriante vegetação. Muitas vezes, eu me entretinha olhando as nuvens, que, rolando sobre o mar, vinham formar um manto logo abaixo do ponto mais elevado do Corcovado.


Como muitas outras, esta montanha, quando parcialmente velada, parecia se erguer a uma altura muito superior à sua real, que é de 700 metros. O sr. Daniell, em seus ensaios meteorológicos, observou que uma nuvem às vezes parece se fixar no cume de uma montanha, ainda que o vento continue a soprar sobre ela. O mesmo fenômeno se produz aqui, mas com aspecto um pouco diferente. Via-se claramente, neste caso, a nuvem rodear o cume e passar por ele rapidamente, sem que sofresse nenhum aumento ou diminuição de volume. O sol estava se pondo, e uma brisa suave do sul, cobrindo esse lado da rocha, vinha se mistura às correntes de ar mais frio das camadas superiores, dando oportunidade a que se condensasse o vapor. Contudo, à medida que as nuvens passavam pela encosta, e sofriam a influência da atmosfera quente do declive ao norte, as leves formações tornavam imediatamente a se dissolver.


O clima durante os meses de maio e junho, ou no começo do inverno, era delicioso. A temperatura média, recolhida às nove horas da manhã e da noite, ficava em torno dos 22°C. Freqüentemente chovia com abundância, embora logo os ventos secos do sul restituíssem o prazer dos passeios. Certa manhã, num período de seis horas, caíram quatro centímetros de chuva. Assim que esta tempestade passou por cima das florestas ao redor do Corcovado, as gotas da chuva, caindo sobre um número incalculável de folhas, produziam um ruído bastante peculiar, que se fazia ouvir a quatrocentos metros de distância. Após um dia de calor, era muito agradável sentar-se tranqüilamente no jardim e ver a tarde cair. A natureza, nestes climas, escolhe para seu coro animais mais modestos que na Europa. Uma rã, do gênero Hyla, senta-se sobre a relva à beira d’água e projeta o seu alegre coaxar. Quando várias estão reunidas, ouve-se, então, uma harmonia composta por diferentes notas. Encontrei muita dificuldade em apanhar um espécime dessa rã. 0s animais do gênero Hyla têm pequenas ventosas na ponta dos dedos. O exemplar que apanhei podia subir por uma parede de vidro quando posta absolutamente na perpendicular. Inúmeras cicidae e grilos produzem, ao mesmo tempo, um estridular ininterrupto, que, amainado pela distância, não é de todo desagradável. Todas as noites, depois de escurecer, começava o grande concerto, e freqüentemente eu me sentava para ouvi-lo, até que minha atenção fosse atraída por algum inseto curioso que passasse.

O piscar dos vaga-lumes

Nessas horas, vêem-se os vaga-lumes piscarem suas luzes aqui e acolá. Em uma noite escura, a luz pode ser vista a cerca de duzentos passos de distância. É digno de nota que, em todas as diferentes espécies de insetos luminosos, eláteros brilhantes e animais marinhos (como crustáceos, medusas, ne¬reidas e coralinas dos gêneros Clytia e Pyrosoma) que observei, a luz tem sido de uma cor verde muito acentuada. Todos os insetos luminosos que apanhei aqui pertencem à família Lampyridae (na qual se acham incluídos os vaga-lumes que se vêem na Inglaterra), e o maior número de espécimes são de Lampyris occidentalis*.


Verifiquei que os insetos emitiam seu maior brilho quando eram irritados: nos intervalos, os anéis abdominais ficavam escuros. O brilho era quase simultâneo nos dois anéis, mas a princípio apenas perceptível no anel anterior. A substância luminosa era fluida e muito pegajosa, e, nos lugares onde a pele havia sido tirada, continuavam pequenos pontos a brilhar com ligeira cintilância, ao passo que as partes intactas permaneciam obscuras. Decapitado o inseto, os anéis se mantinham com brilho ininterrupto, mas não tão intenso como antes: a excitação local com uma agulha sempre intensificava a vivacidade da luz.


Numa das experiências, os anéis retiveram sua propriedade luminosa durante quase vinte e quatro horas depois da morte do inseto. Destes fatos, parece provável que o animal tem apenas o poder de ocultar ou extinguir a luz durante curtos intervalos, e que, fora disso, a emissão de luz é involuntária. No cascalho úmido e lamacento dos caminhos pavimentados, encontrei um grande número de larvas deste lampyris: elas em muito se assemelhavam às fêmeas dos vaga-lumes ingleses. Estas larvas possuíam apenas fraco poder luminoso e, neste aspecto, eram muito diferentes dos insetos adultos. Aparentavam, ao mais leve contato, o estado de morte, deixando de brilhar. Nenhuma excitação conseguia fazer reaparecer a luminosidade.

Guardei por algum tempo várias larvas vivas: suas caudas eram um órgão bastante singular, pois elas agem por meio de um dispositivo adequado, como ventosa ou órgão de fixação, ao mesmo tempo em que funciona como reservatório de saliva ou líquido semelhante. Dei-lhes repetidas vezes carne crua, e sempre pude notar que, de momento em momento, a extremidade da cauda procurava a boca do animal, deixando uma gotícula de fluido sobre a carne no instante em que esta ia ser consumida. A cauda, apesar desse movimento tão freqüentemente praticado, parece não poder se dirigir à boca diretamente, uma vez que o pescoço acabava sendo invariavelmente tocado em primeiro lugar, aparentemente como um modo de localizar a abertura.

Quando estávamos na Bahia, um elátero ou besouro (Pyrophorus luminosus, IIlig) parecia ser o mais comum dos insetos luminosos. A luz neste caso se tornava mais intensa com a excitação do animal. Distraí-me, durante um dia, estudando o poder de saltar deste inseto, propriedade que, segundo me parece, não foi ainda convenientemente descrita**. O elátero, quando se achava de costas, preparando-se para o salto, recolhia a cabeça e o tórax de modo que a espinha peitoral sobressaía e tocava a borda de sua bainha. Na seqüência desse movimento para trás, a espinha se curvava como uma mola, sob a ação dos músculos, e o inseto tomava apoio com a extremidade da cabeça e dos élitros. A cessação brusca dessa tensão fazia com que a cabeça e o tórax se projetassem para cima, e a reação do choque da base dos élitros contra a área de sustentação, lançava o inseto num salto de três ou cinco centímetros. As saliências torácicas e a bainha da espinha contribuíam para manter o equilíbrio do corpo durante o salto. Nas descrições que tenho lido, nunca se chamou suficientemente a atenção para a elasticidade da espinha: um salto tão súbito não poderia ser o resultado de simples contração muscular, sem auxílio de algum dispositivo mecânico.


Visitando o Jardim Botânico

Em várias ocasiões, desfrutei de algumas excursões muito agradáveis ainda que curtas pelas vizinhanças. Visitei, certo dia, o Jardim Botânico, onde cresciam muitas plantas famosas pela grande utilidade de suas propriedades. As folhas da cânfora, da pimenta, da canela e do cravo desprendiam um aroma muito delicioso; e a fruta-pão, a jaca e a manga disputavam entre si pela magnificência de suas folhagens. A paisagem dos arredores da Bahia quase que podia ser caracterizada pela predominância destas duas últimas árvores. Antes de tê-las visto, eu não fazia a menor idéia de que houvesse árvores capazes de projetar no solo uma sombra tão preta. As duas estão para a vegetação sempre-verde destes climas na mesma proporção em que, na Inglaterra, os loureiros e os azevinhos estão para o verde mais pálido das árvores decíduas. Pode-se observar que, nos trópicos, as casas estão sempre rodeadas das formas mais belas de vegetação, somando-se a isso o fato de que muitas delas são ao mesmo tempo as mais úteis ao homem. Quem pode duvidar de que essas virtudes se achem reunidas na bananeira, no coqueiro, nas muitas variedades de palmeiras, na laranjeira e na árvore da fruta-pão?


Atmosfera translúcida


Durant este dia, tive meus pensamentos particularmente atraídos para uma observação de Humboldt, o qual alude freqüentemente ao “fino vapor que, sem afetar a transparência do ar, torna suas tonalidades mais harmoniosas e que abranda seus efeitos”. Isto é coisa que nunca observei em zonas temperadas. A atmosfera, vista através de um espaço de setecentos metros ou mais, apresentava-se perfeitamente translúcida, mas de uma distância maior, todas as cores se misturavam, formando a mais linda névoa que se coloria de um pardo-francês pálido, matizado com traços de azul. A condição da atmosfera entre a manhã e o meio-dia — quando o efeito era mais visível —, pouca mudança tinha sofrido, exceto no que diz respeito à falta de umidade. No intervalo, a diferença entre o ponto de orvalho e a temperatura subiu de 4 a 9 graus.

Em outra ocasião, parti cedo e andei até a montanha da Gávea. O ar estava deliciosamente fresco e fragrante, e as gotas de orvalho ainda brilhavam sobre as grandes liliáceas que cobriam com sua sombra a água clara dos riachos. Sentado sobre um bloco de granito, era deliciosos observar o vôo de vários insetos e pássaros. Os beija-flores parecem gostar imensamente destes recantos sombrios e isolados. Sempre que eu via uma dessas criaturinhas zumbindo em torno de uma flor, com suas asas quase invisíveis pela velocidade com que as movem, lembrava-me da mariposa esfinge, cujos hábitos e movimentos são, em muitos aspectos, realmente semelhantes.


Do alto da Gávea


Seguindo por uma vereda, penetrei no interior de uma nobre floresta, e, de uma altura de cento e cinqüenta a duzentos metros, pude contemplar um dos soberbos panoramas tão comuns ao redor de todo o Rio. Vista desta altura, a paisagem adquire seu brilho mais colorido. Cada forma, cada sombra ultrapassa de modo tão magnificente tudo o que um europeu jamais possa ter visto em sua terra natal, que este não sabe como expressar suas sensações. O efeito geral com freqüência me trazia à mente o cenário vistoso das óperas ou dos grandes teatros. Nunca voltei dessas expedições de mãos vazias. Encontrei neste dia um curioso espécime de fungo chamado Hy¬menophallus. Muitas pessoas conhecem o Phallus inglês, que, no outono, empesta o ar com um cheiro detestável. No entanto, como sabem os entomologistas, esse cheiro é para alguns de nossos besouros uma fragrância adorável. Este também era o caso aqui, pois, enquanto eu levava o fungo na mão, um Strongylus, atraído pelo odor, veio pousar sobre ele.


Vemos aqui, em dois países distantes, uma relação semelhante entre plantas e insetos da mesma família, se bem que as espécies de ambos sejam diferentes. Quando o homem é o agente da introdução de uma nova espécie num país, esta relação muitas vezes se rompe: como exemplo disto, posso mencionar as folhas do repolho e da alface que, na Inglaterra, servem de alimento a uma infinidade de lesmas e lagartas, ao passo que aqui permanecem intactas.


Coletando insetos


Durante a nossa permanência no Brasil, desenvolvi uma grande coleção de insetos. Algumas observações de importância em seu caráter comparativo poderão interessar aos entomologistas ingleses. Os grandes e brilhantes Lepidóptera demonstram muito mais claramente a zona que habitam do que qualquer outra raça de animal. Refiro-me somente às borboletas, pois as mariposas, ao contrário do que se poderia esperar do viço da vegetação, aparecem em número muito mais reduzido do que em nossas regiões temperadas. Fiquei muito surpreso com os hábitos da Papilio feronia. Esta borboleta não é incomum, e freqüenta geralmente as laranjeiras. Ainda que costume voar alto, não raro pousa nos troncos das árvores.

Nessas ocasiões, a cabeça fica voltada para baixo, e as asas, ao invés de se colarem verticalmente, como comumente acontece, estendem-se abertas num plano horizontal. Esta foi a única borboleta que vi servir-se das pernas para se locomover. Não estando eu prevenido dessa particularidade, o inseto, mais de uma vez, quando cautelosamente me aproximei com meu fórceps, esquivou-se para o lado assim que o instrumento estava para se fechar, escapando.

Um fato ainda mais singular, contudo, é o poder sonoro que essas espécies possuem*. Diversas vezes quando um par, provavelmente macho e fêmea perseguindo um ao outro, descrevia um vôo irregular e passava a poucos metros de mim, eu podia ouvir de modo distinto um estalido, similar àquele produzido por uma roda dentada passando sob um fecho de mola. O barulho era continuado em intervalos curtos e se podia distingui-lo a uma distância de dezoito metros: tenho certeza de que não há erro nesta observação.


Algumas frustrações


Fiquei desapontado com os aspectos gerais das Coleópteras. O número de besouros, diminutos e obscuramente coloridos, era extremamente grande**. Os gabinetes na Europa podem, por enquanto, orgulharem-se de possuir apenas as maiores espécies dos climas tropicais. A visão que aqui se tem é suficiente para perturbar a mente de um entomologista que volte os olhos para as dimensões de um catálogo completo no futuro. Os besouros carnívoros, ou Carabidae, apareciam pouquíssimas vezes na região dos trópicos: isto é algo ainda mais digno de nota quando comparado à abundância de carnívoros quadrúpedes nestes países quentes.

Deparei-me duplamente com esta realidade ao entrar no Brasil e quando observei muitas formas elegantes e ativas de Harpalidae reaparecendo nas planícies temperadas de La Plata. Estas numerosas aranhas e Hymenoptera rapaces ocupavam o lugar dos besouros carnívoros? Os necrófagos e as Brachelytra são bastante incomuns; por outro lado, as Rhyncophora e Chrysomelidae, as quais dependem em sua totalidade do reino vegetal para sua subsistência, apresentam-se em números impressionantes. Não me referirei aqui ao número de diferentes espécies, mas sim aos insetos individuais, pois é nisto que reside o caráter mais impactante do caráter da entomologia em países diferentes.

A ordem das Orthoptera e Hemíptera são particularmente numerosas; assim como também sucede com a divisão das Hymenoptera. As abelhas talvez sejam uma exceção. Uma pessoa, ao entrar pela primeira vez numa floresta tropical, é surpreendida com a diligência do trabalho das formigas: caminhos muito bem traçados se espalham em todas as direções, nos quais um exército de forrageadores incansáveis pode ser visto, alguns avançando e outros retornando, sobrecarregados pelo peso das folhas verdes, muito maiores que seus próprios corpos.


A batalha das formigas


Uma variedade de formiga, pequena e preta, por vezes migra em uma quantidade incontável de indivíduos. Certo dia, na Bahia, minha atenção estava voltada para a observação de inúmeras aranhas, baratas, outros insetos, e alguns lagartos, movendo-se rápidos e na maior das agitações através de uma pequena faixa de terra exposta. Um pouco mais atrás, cada talo e cada folha eram escurecidos por uma pequena formiga. O enxame, tendo cruzado o solo desnudado, dividiu-se e desceu por um velho muro. Agindo por meio deste estratagema, muitos insetos se viam completamente cercados, e os esforços que estas pobres criaturas faziam para escapar da morte certa eram espetaculares.

Quando as formigas chegavam a uma estrada, mudavam sua trajetória, e numa fila estreita reascendiam pelo muro. Colocando-se uma pequena pedra de modo a interceptar uma das linhas, o corpo completo de formigas a atacava e, imediatamente, desistia. Logo em seguida, outro corpo se lançava à carga e, diante do novo fracasso, esta linha de marcha era completamente abandonada. Se tivesse desviado seu percurso em alguns centímetros, a linha poderia ter evitado a pedra, evitando toda esta confusão, que na certa não ocorreria se o obstáculo estivesse originalmente ali. No entanto, uma vez que tinham sido atacadas, as pequenas guerreiras, dotadas de um coração de leão, desdenhavam da idéia de desistir.

Nos arredores do Rio, existem em grande número certos insetos parecidos com vespas que fazem uma célula de barro onde abrigam suas larvas, no teto das varandas. Estas células são preenchidas por aranhas e lagartas semimortas, que receberam uma picada que, antes de lhes tirar de todo a vida, deixam-nas paralisadas, a espera de que os ovos das vespas eclodam e de que as novas larvas possam se alimentar dessa massa horrenda e impotente. Esta visão das vítimas moribundas foi descrita com entusiasmo por um naturalista* como algo curioso e prazenteiro de se ver!


Vespas e aranhas


Pude, certo dia, com muito interesse, ser testemunha do duelo mortal entre um Pepsis e uma grande aranha do gênero Lycosa. A vespa se lançou contra sua vítima num ataque súbito, e então saiu voando. A aranha evidentemente ficou ferida, pois, tentando fugir, acabou rolando por um pequeno declive, mas ainda capaz de se arrastar ao interior de um espesso tufo de relva. A vespa logo voltou, e pareceu se surpreender ao não encontrar imediatamente a vítima. Partiu, então, no encalço de sua presa, tal cão de caça no faro de uma raposa, fazendo lances semicirculares e curtos, e mantendo, durante todo o tempo, as asas e as antenas a vibrar. Por mais bem escondida que a aranha estivesse, foi, no entanto, logo descoberta; a vespa, com visível receio ainda das garras da adversária, e depois de muito manobrar, conseguiu lhe desferir mais duas picadas sobre a região inferior do tórax. Afinal, examinando cautelosamente com as antenas o corpo imóvel da infeliz aranha, começou a lhe arrastar o corpo. Aqui, porém, detive tanto o agressor quanto a vítima**.

Comparando-se com o da Inglaterra, o número de aranhas aqui, em proporção ao número de outros insetos é muito maior; talvez mesmo maior do que o número de qualquer outra divisão de animais articulados. A variedade das espécies entre as aranhas saltadoras parece quase infinita. O gênero, ou melhor, a família da Epeira é aqui caracterizado por muitas singularidades de forma, com algumas espécies apresentando conchas pontuadas semelhantes ao couro, enquanto que outras são dotadas de tíbias volumosas e espinhosas.

Em todos os caminhos da floresta se vêem barreiras de teias, construídas com um fio amarelo e robusto de uma espécie pertencente à mesma divisão da Epeira clavipes de Fabricius, que, no dizer de Sloane, fabricava, nas Índias Ocidentais, teias de tamanha resistência que poderiam captar até mesmo pássaros. Em todas estas teias vivem como parasitas aranhas de um tipo pequeno e bonito, com pernas dianteiras muito alongadas, pertencentes a um gênero ainda não descrito. Suponho que, por serem muito pequeninas, essas parasitas passem despercebidas pela grande Epeira, e que, graças a isso, possam tranqüilamente fazer presa sobre os insetos insignificantes que se prendem aos fios e que, não fosse por elas, seriam desperdiçados.

Quando assustadas, essas pequenas aranhas se fingem de mortas, estirando as pernas anteriores, ou se deixam cair subitamente da teia. Uma grande Epeira da mesma divisão que a Epeira tuberculata e cônica é extremamente comum, especialmente nos lugares secos,. A teia, geralmente construída entre as folhas largas do agave comum, é, às vezes, reforçada na porção central por duas ou mesmo quatro fitas em ziguezague, que ligam dois raios contíguos. Quando cai na teia algum inseto grande como uma vespa ou gafanhoto, a aranha, com um movimento destro, faz com que a presa se revolva muito rapidamente, e, ao mesmo tempo em que vai produzindo uma faixa de fios, envolve-a num casulo semelhante ao do bicho da seda.

A aranha então examina a vítima impotente, dá-lhe a picada fatal na região posterior do tórax e depois se para esperar pacientemente que o veneno faça efeito. A virulência desse veneno pode ser julgada pelo fato de que, passado meio minuto, abri o casulo e ali encontrei uma grande vespa inteiramente sem vida. Esta Epeira sempre se coloca no centro da teia, com a cabeça voltada para baixo. Quando perturbada, reage de diversas maneiras, de acordo com as circunstâncias do momento: se houver algum mato abaixo da teia, ela subitamente se deixa cair. Pude verificar com clareza que o animal como que se preparado para o ato, gera certa quantidade de fio no seu estado estacionário. Se embaixo da teia houver chão limpo, a Epeira raramente se deixa cair, mas, neste caso se desloca rapidamente, atravessando uma passagem central de um lado para o outro.

Quando se insiste em incomodá-la, a aranha executa uma manobra extremamente curiosa. Pousada no centro da teia, que se acha fixada em ramos elásticos, sacode-a violentamente, imprimindo-lhe um movimento vibratório de tal rapidez que o contorno do próprio corpo se torna quase indistinto.
É sabido que a maior parte das aranhas britânicas, quando lhes cai na teia um inseto volumoso, esforça-se por cortar os fios e liberar a vitima, a fim de evitar que suas redes sejam destruídas. Tive, entretanto, ocasião de observar, em uma estufa em Shropshire, a fêmea de uma grande vespa se enlear nas malhas irregulares de uma aranha de tamanho diminuto. Esta, porém, em vez de cortar os fios, aplicou-se ativamente em prender ainda mais sua presa, especialmente pelas asas.

Em vão a vespa procurou, a princípio, em repetidas tentativas, alcançar com seu ferrão a pequena antagonista. Vendo a pobre vespa lutar inutilmente por mais de uma hora, retirei-a penalizado e a matei. Logo que a repus na teia, a aranha não se demorou em atacá-la. Uma hora mais tarde, muito me admirei de vê-la com a boca introduzida no orifício de onde saía o ferrão da vespa quando viva. Espantei a aranha duas ou três vezes, mas, nas vinte e quatro horas seguintes, sempre a encontrei sugando o mesmo sitio. O suco da presa, que possuía um volume muitas vezes superior ao seu, provocou-lhe uma considerável distensão corpórea.


Teias de aranha


Poderia me referir aqui à descoberta, que fiz perto de St. Fé Bajada, de muitas aranhas negras volumosas, tendo no dorso sinais da cor rubi, possuidoras de hábitos gregários. As teias eram tecidas em posição vertical, como invariavelmente ocorre com o gênero Epeira, e afastadas umas das outras por um espaço de cerca de meio metro, mas todas unidas por certos fios comuns de grande extensão, que punham em comunicação as partes da comunidade por completo. Deste modo, o topo de muitos arbustos aparecia rodeado de teias entrelaçadas. Azara* descreveu uma aranha gregária do Paraguai, que Walckenaer acredita ser uma Theridion, mas que provavelmente é uma Epeira, e talvez, inclusive, da mesma espécie que a minha.

Não posso me lembrar, contudo, de nenhum ninho central do tamanho de um chapéu em que, como diz Azara, os ovos fossem depositados durante o outono, época em que as aranhas morriam. Como todas as aranhas que vi eram do mesmo tamanho, elas deviam ter mais ou menos a mesma idade. Estes hábitos gregários, num gênero tão típico como a Epeira, representam uma importante singularidade entre insetos tão sanguinários e solitários a ponto de se atacarem reciprocamente.

Num vale de grande altitude na Cordilheira, próximo a Mendoza, encontrei outra aranha, cuja teia era também de construção bastante original. Fios robustos se irradiavam em plano vertical de um centro comum, onde estacionava o inseto. Apenas dois raios, porém, eram ligados por um tecido simétrico, de modo que a teia, em vez de ser circular, como normalmente é o caso, consistia de um segmento em forma de cunha. Todas as teias eram construídas de modo idêntico.


Conclusão


Findo este relato, Darwin voltou a embarcar no HSM Beagle e rumou em direção ao rio da Prata. A próxima parada foi em Maldonado, no Uruguai.


Fonte ; Diário de Viagem de Darwin, editora LP&M, de Porto Alegre, tradução de Pedro Gonzaga.