16.12.13

Nero Claudius Cæsar Augustus Germanicus




Nero Claudius Cæsar Augustus Germanicus


Os brilhantes primeiros anos de reinado

Completava Agripina seu quadragésimo ano. Até então, consagrara toda a sua existência a um único objetivo: assegurar, através de todas as vicissitudes, o trono a seu filho Nero. Co-regente de Claudio, tornava-se, depois de havê-lo suprimido, a verdadeira senhora de Roma. Optima mater(a melhor mãe): era assim que Nero chamava, na noite de 13 de outubro do ano de 54 d.e.c., aquela mulher que, naquele mesmo dia, perpetrara um assassinato.

- Nosso imperador é um orador medíocre! - cochichava a plebe, sorrindo.

- É nosso primeiro regente cujos discursos são feitos por outros!. . .

Mas o jovem Nero permanecia imperturbável. Nas exéquias de Claudio, Nero Claudio Augusto Germânico, filho adotivo de Cláudio, devia pronunciar o panegírico à memória do falecido. Antes de sua adoção pelo imperador, era Nero conhecido pelo apelido de Ahenobarbus, já usado por Domicio, seu pai, que tinha o pelo ruivo. No rosto de Nero, aos dezessete anos, via-se esse mesmo pelo ruivo.

No seu discurso, fez alusão à linhagem antiga da casa imperial. Enumerou os títulos de glória dos antepassados, os consulados gloriosos e os triunfos conquistador, sem se esquecer de exaltar o período de paz de que Roma gozara durante o reinado de Claudio.

Confusos, os senadores conferiram a Nero o titulo de pai da Pátria. E quando recusou ele essa honra insigne, alegando sua extrema mocidade, causou de certo a melhor impressão.

Todavia, quando se pôs a fazer o elogio da sabedoria e da circunspeção de seu predecessor, ultrapassou a medida. Sorrisos surgiram nos rostos dos ouvintes e ninguém conseguiu manter a seriedade. Os mexericos, as falinhas, as estórias licenciosas e escandalosas circulavam, se possível, mais rapidamente em Roma do que em nossos dias em Londres, em Paris ou em Washington! Os criados espalhavam as noticias que bisbilhotavam em casa de seus senhores. Não estava Roma bastante edificada a respeito do que tinham podido ser a "sabedoria" e a "circunspeção" de Claudio? E ao ouvir tão belas palavras da boca mesma de Nero, filho daquela Agripina que... Comentava-se, a portas fechadas, o envenenamento criminoso do imperador... Isso dava o que pensar.

Precisemos desde logo que aquele maravilhoso discurso era obra do filosofo Sêneca, preceptor, amigo e conselheiro de Nero. Sêneca, homem de talento, conhecia bem o gosto e as necessidades de seus contemporâneos e não ignorava o que Roma esperava de Nero. Não ignoravam tampouco os romanos quem fosse o autor do panegírico que Nero teria sido incapaz de compor. Tiveram simplesmente a oportunidade de comprovar, através daquela capciosa dialética, que o imperador era sobretudo um orador medíocre! Mais tarde, virão a saber que cultivava também a arte do canto.

Já mimada na matéria, aplaudira Roma os oradores mais eloqüentes que tinham brilhado no Fórum. Ouvira Cícero e Cesar, senhores da palavra, depois Augusto, cujo espírito fora dotado dum poder inigualado. Com efeito, foi Augusto um orador excepcional. Se tinha Tibério o hábito de medir suas palavras, seus discursos ambíguos sempre se revelaram de uma elegância e dum rigor perfeitos. Mesmo Calígula, padecendo de forte gagueira, soube discorrer muitas vezes com arrebatamento! Quanto a Claudio, seus períodos, suas expressões, escolhidas e eruditas, haviam sem cessar impressionado seus ouvintes.

Nero? Que era, pois, em definitivo, aquele adolescente encarregado de conduzir os destinos do império? Sabia com habilidade manejar o cinzel do escultor; pintava; tomava lições de canto. Se nutria secreto pendor pelas corridas de carros, compunha também poemas! Que importava que lhe faltasse eloqüência! Roma esperava, de uma criatura tão dotada, o êxito mais perfeito. A Cidade Eterna estava a isso habituada! Todas as vezes que um imperador era levado ao campo de Marte, a sua derradeira morada, e novo imperador havia desempenhado perfeitamente a comedia do luto, tinha Roma por costume esperar com o recém-vindo a vinda de tempos melhores!

Fez Nero belas promessas. Declarou que, não conhecendo inimigos, não tendo sofrido nenhuma ofensa, subia ao trono de coração puro e liberto de qualquer idéia de vingança! Queria abolir o favoritismo, por fim a corrupção dos funcionários, deter a caça às prebendas e sanear a justiça. Pouco preocupado em empreender campanhas militares, garantia ao Senado total liberdade de ação. Como seus predecessores, invocava como modelo Augusto, única estrela verdadeiramente clemente na constelação dos césares romanos.

Mas antes de realizar esses belos e louváveis propósitos, era indispensável regularizar os negócios de família! Britânico, o próprio filho do imperador Claudio, continuava vivo, e talvez pudesse vingar o assassínio de seu pai. Britânico existia, bem vivo, e sua presença constituía perpetuo perigo para Nero.

Durante as saturnais, em boa e jovial companhia, pediu Nero a Britânico que cantasse uma melodia. Estava convencido de que o adolescente se cobriria de ridículo. Mas Britânico, seguro de si e confiante, cantou uma canção terra, fazendo alusão à sua desgraça, quando o haviam suplantado na sucessão ao trono, depois excluído do império legado por seu pai.

Foi provavelmente naquele instante que Nero decidiu fazer desaparecer seu meio-irmão. Dirigiu-se a Júlio Polião, tribuno de uma coorte de pretorianos, que havia detido Locusta, a celebre envenenadora. Fez pressão sobre ele e ameaçou Locusta de manda-la executar, se não lhe arranjasse um veneno, a fim de que ele, Nero, pudesse ter paz. Preparou ela uma mistura composta de tóxicos tão violentos que deviam agir com a rapidez do raio.

Imagine-se a cena, tal como a historia, em todos os seus pormenores, no-la transmitiu: na mesma sala do imperador, as crianças reais, e entre elas Britânico, tomavam sua refeição. Estavam os adultos estendidos em seus leitos e as crianças permaneciam sentadas.

Um servidor, permanentemente, provava as comidas e as bebidas destinadas a Britânico. Para não comprometer o conluio pela morte súbita do escravo, empregou-se um subterfúgio.

Apresentou-se a Britânico uma bebida quente de que o escravo já havia bebido um gole. O príncipe recusou-a, declarando que estava ela demasiado quente. Foi nesse instante que se lhe acrescentou a água fria a qual estava misturado o veneno. Seu efeito foi tão rápido que Britânico, afônico, teve a respiração subitamente interrompida.

As crianças, sentadas ao lado dele, apavoradas, fugiram. Os adultos, que sabiam do segredo, imóveis, fixaram Nero estendido confortavelmente no seu leito. Seu rosto não denunciou a mínima emoção, nem pestanejou. Muito calmo, notou simplesmente que, sem duvida, era um daqueles ataques de epilepsia de que sofria Britânico desde a infância.

Quanto a Agripina, o medo pregou-a ao local. Talvez tivesse compreendido naquele instante que um dia seu filho a suprimiria, com a mesma calma e o mesmo sangue-frio. Otavia que, aos doze anos, fora unida a Nero, três anos mais velho do que ela, aprendera a dominar a menor expressão de dor ou de amor. Portanto, após breve interrupção, a refeição prosseguiu como se nada houvesse acontecido.

Britânico, derradeiro descendente masculino da família de Claudio, passara da vida a morte diante de suas irmãs, de seu meio-irmão e de sua madrasta, quatro meses apos o assassinato de seu pai e da tomada do poder por Nero. Reconhecido, Nero concedeu a Locusta a imunidade dos crimes que havia ela cometido. Fez-lhe dom de varias terras e enviou-lhe discípulos que ela deveria formar na arte temível da fabricação das bebidas que não perdoam!

Realizado o crime, distribuiu o imperador ricos presentes a seus partidários e amigos. Depois, "consagrou-se" ao povo. Aboliu ou reduziu certos impostos impopulares e doou enorme quantia de dinheiro a cidade de Roma (quatrocentos sestercios por pessoa). Aos nobres e aos senadores sem fortuna atribuiu uma subvenção anual. Durante os primeiros anos de seu reinado, não foram infelizes os romanos. Sob a influencia benéfica de Sêneca e de Barrus, o eminente prefeito da guarda, a legislação e a administração melhoraram sensivelmente. Agripina velava por seu filho e prodigalizava-lhe uteis conselhos.

Em seus passeios, saudava Nero por seus nomes os patrícios a quem encontrava. Reter os nomes das famílias da cidade era para ele uma espécie de brinquedo. Quando o Senado lhe exprimia seu reconhecimento e seus agradecimentos, respondia com uma espécie de humildade:

- Sim, se os mereci.

A principio entre seus íntimos, depois no teatro, declamava seus poemas. A alegria dos ouvintes era sincera. Um dia em que lhe apresentaram por ele assinada uma sentença de morte, exclamou:

- Gostaria de não saber escrever!

O imperador Trajano afirmara mais tarde que os cinco primeiros anos do reinado de Nero foram os mais felizes do império romano. Se esta asserção é verídica, Roma deve isto a Sêneca.

O jovem imperador aparecia aos olhos de seus súditos, humano, benévolo, afável e também como um artista de grandes dotes! Revelava vivo interesse pelo teatro e organizava os espetáculos mais variados: jogos em que a força juvenil dos atletas enchia de orgulho Roma, representações de circo, peças de teatro e combates de gladiadores. Carros, puxados por quatro camelos, participavam das corridas. Dizem que um aristocrata romano, trepado num elefante, exibira-se com um funâmbulo sobre cordas estendidas na arena. Uma comedia intitulada O lncendio, em que, a cada representação, fazia-se incendiar uma casa, obtinha o mais vivo êxito.

Suntuosos presentes foram distribuídos ao povo: pássaros de todas as raças e de todas as espécies, finas iguarias, rações suplementares de trigo, prata, ouro, pedras preciosas, perolas, roupas, até mesmo escravos e gado. Distribuíam-se também feras domesticadas. A "bondade" de Nero era inesgotável: oferecia ate navios, terras e casas.

Decretou que os gladiadores não deviam lutar até a morte. Medida que não o impediu um dia de ordenar a quatrocentos senadores e a seiscentos nobres que se enfrentassem à espada na arena. Era preciso que o sangue corresse!

- Capricho bem singular!

Tal foi o benevolente comentário do povo.

Apresentaram-se batalhas navais em que lutavam monstros marinhos, depois pantomimas particularmente sugestivas. Diante da atenção conquistada dos espectadores, um rapaz, lcaro, cujo nome de família não nos foi transmitido, fez uma tentativa de vôo para vir esmagar-se ao lado do camarote de Nero, que foi salpicado de sangue.

O imperador mandou conceder louros aos campeões de eloqüência latina, de poesia e de citara. Aceitou os louros que lhe foram oferecidos pela arte da poesia e da eloqüência, mas, modestamente, recusou a recompensa pela arte da citara. Durante os debates no tribunal de justiça, mandava que as duas partes expusessem o caso em julgamento em sua presença, depois dava a sentença no dia seguinte por escrito. Criou novo estilo de arquitetura. Diante de cada habitação, deviam os arquitetos construir arcadas cujos telhados chatos, de acesso fácil, permitiriam apagar rapidamente os incêndios, tão freqüentes em Roma. As arcadas foram construídas às custas de Nero.

Procurava também reduzir o luxo gritante e escandaloso da rica sociedade romana. Os banquetes públicos não deviam comportar senão um numero limitado de pratos. Nos botequins e tabernas só eram autorizadas as refeições frias.

De 54 a 59 d.e.c., isto é, durante o primeiro terço de seu reinado que durou catorze anos, observou Nero estritamente as regras da sabedoria, da prudência e da medida.

No relato consagrado ao jovem Nero e ao seu tempo pelo historiador Suetônio, pode-se ler uma frase reveladora. Enumerando as louváveis medidas tomadas pelo jovem Nero, cita igualmente a pena de morte com que eram punidos os cristãos. Chama os cristãos "christiani, seita dada a uma superstição nova muito perigosa". Encontra-se, pois, aqui o primeiro testemunho do pagão Suetonio quanto a existência dos cristãos.

Algumas leis decretadas por Nero atestam sua vontade de melhorar a legislação, de atenuar a corrupção geral. Provam ao mesmo tempo que havia ele estudado cuidadosamente esses problemas. Assinou judiciosos decretos destinados a impedir as falsificações de escrituras, os desvios de herança e os testemunhos falsificados.

Nenhum interesse maior apresentavam a seus olhos as conquistas militares. Por uma parte, refletia esse estado de espírito a influencia do sábio Sêneca, e, por outra parte, correspondia perfeitamente ao caráter do homem que, com seu temperamento de artista, não foi completamente um louco e um jactancioso.

Alias, os crimes monstruosos de Nero, que parecem provar sua loucura, não datam do começo de seu reinado.

A despeito da ridícula fatuidade, da vaidade grotesca, da ambição por assim dizer doentia que levavam o imperador a ser considerado como um artista de gênio respeitava em geral as regras do jogo durante os concursos e torneios. Quando trapaceava em seu favor, fazia-o de maneira a salvar as aparências não fosse sendo, apesar de tudo, para consigo mesmo. Lembremos que historiadores e romancistas modernos contestaram que Nero que, em razão de suas disposições patológicas, nos aparece bem como um possesso de Satã, tivesse sido um poeta autentico. No entanto, compôs belos poemas. Relata Suetonio que, trinta - ou cinquenta anos apos sua morte, tivera em mãos papiros e tabuinhas nos quais estavam escritos, do próprio punho de Nero, versos conhecidos e apreciados. Acrescenta Suetonio que, pela natureza mesma das correções, tinha a certeza de que esses poemas não tinham sido nem copiados nem escritos sob o ditado dum terceiro, e que eram fruto duma imaginação original. Parece que, no domínio das artes plásticas, haja Nero igualmente revelado um talento incontestável.

É possível que se encontre aqui a origem e a gênese da tendência patológica que o levava a buscar a todo preço a aprovação dos outros, porque se não tivesse tido talento, não teria sua mania podido virar loucura. Aparentemente - e os historiadores tomaram o habito de omitir o fato - foi Nero sem cessar dominado pela paixão, toda impulsiva, da criação artística. Incapaz de distinguir a aprovação autentica das lisonjas grosseiras, acabou por não mais dominar seus instintos. Não podia assim realizar as condições psicológicas indispensáveis a toda criação verdadeira, isto é, a disciplina, o senso da medida, a contenção e a modéstia, o respeito, o senso critico e a religiosidade da arte. Todos esses elementos criadores necessários, pouco a pouco, lhe foram faltando. Dessa forma Nero passou a não ser mais que a caricatura, a contrafação, por assim dizer demente, do artista e do ditador.

---------------

Amante das Artes



Desde sua elevação ao trono, adjudicou Nero a sua corte, o musico Terpnus, cantor celebre que, de pé, fazia-se acompanhar da kithara, instrumento semelhante à lira e que se segurava na não. Era o antepassado da nossa citara, do latim cithara, emprestado do persa sithtar, instrumento de três cordas.

Era Terpnus um virtuoso da kithara e, todas as noites, até o romper da aurora, ouvia Nero o grande artista cantar e tocar. Imagine-se esta cena enternecedora: o imperador caprichoso, temível, e o instrumentista de voz maravilhosa que compunha seus cantos. É-se tentado a evocar o jovem Davi cantando diante de Saul!

Começou Nero o estudo do canto e da citara. Seguiu conscienciosamente as diretrizes de seu mestre. Para fortificar suas cordas vocais, estendia-se, durante varias horas, com o peito comprimido por placas de chumbo. Com a ajuda de purgantes e de vomitórios, limpava sua garganta das impurezas nocivas à qualidade da voz. Naquela época, desaconselhavam os médicos as frutas aos cantores. Com docilidade, privava-se Nero dos alimentos considerados nocivos à qualidade de seu canto. Observava dias de jejum em que, para poupar sua garganta, abstinha-se mesmo de comer pão!

Foi Nero medíocre orador. Faltavam a sua voz surda amplitude e flexibilidade. Não é excepcional que indivíduos, diminuídos em virtude de leve defeito físico, desenvolvam ambição especialíssima, precisamente em função de sua deficiência. Nero queria ser cantor. Trabalhou. Infatigável, exercitou-se, atraído decisivamente como o era pelo teatro.

- A musica que floresce à sombra não tem valor algum - afirmava ele.

Todavia, Roma, capital entediada, pronta à ironia mordente e à critica, não era o lugar ideal para a primeira representação de um estreante. Nero escolheu Nápoles para seu primeiro concerto publico. A aristocracia, os patrícios e os notáveis foram convidados para o espetáculo. Das cidades vizinhas, afluíram os curiosos para aplaudir o cantor imperial. Não obstante, o teatro não chegou a encher-se e apelou-se para algumas companhias de legionários.

Apos a representação - o auditório havia felizmente abandonado o salão - um tremor de terra abalou a cidade e o teatro foi destruído! Nero interpretou o seísmo como um pressagio divino e prosseguiu no seu giro artístico!

Para poupar sua saúde e sua voz, dirigiu-se o imperador a uma estação termal. Mas não prolongou a cura. Estava como que hipnotizado pela cena. Tomava suas refeições com os atores e, muitíssimas vezes, depois de ter bebido um gole de uma bebida suavizante, anunciava que cantaria a plenos pulmões uma melodia. Tendo-se mostrado especialmente entusiastas, alguns convivas vindos de Alexandria, fez Nero que viessem a Itália numerosos visitantes daquela cidade.

Mas em breve os louvores, as salvas de aplausos, a incensação não bastaram mais a Nero. Ordenou que os jovens aristocratas romanos fossem instruídos na arte de aplaudir. Além disso, para constituir o que se chama a claque, escolheu no povo cinco mil rapazes vigorosos que distribuiu em grupos separados, cada um dos quais foi submetido a um tratamento especial. Havia batidas com o côncavo das mãos imbrix (segundo a forma das telhas romanas), batidas com as mãos abertas, chamadas testa (as telhas chatas), depois o bombus, que imitava o zumbido das abelhas. Os rapazes, suntuosamente trajados, de aparência cuidada, usavam penteados muito arranjados. É bem certo que retiravam seus anelões para não prejudicar o bater das mãos. Recebiam os chefes de claque um salário de 400 mil sestercios, isto é, cerca de oito milhões de francos.

Na sua preocupação de exibir-se em Roma, organizou Nero um concerto, o que, na época, se chamaria um "torneio", segundo a tradição grega.

Os campeões mediam-se ali na música, no canto, na poesia, na eloqüência, nos jogos atléticos, nas corridas de carros e de cavalos. A esses jogos olímpicos deu o imperador o nome de Neronia, devendo realizar-se todos os cinco anos.

Mandou Nero construir termas e um ginásio. Na impaciência de brilhar, sentava-se na orchestra, no meio dos senadores, de modo que o auditório lhe suplicasse que fizesse ouvir sua voz divina. Como simples concorrente entre todos os tocadores de citara, retirava Nero seu bilhete da urna e, chegada a sua vez, subia ao palco. Oficiais de sua guarda carregavam a citara.

Segundo o uso, começava ele por um discurso inaugural, depois fazia anunciar pelo ex-consul Rufo que ia cantar Niobe. Exercitava-se durante cerca de quatro longas horas, do meio dia as dezesseis horas. Para lograr ocasiões de renovar sua vez de canto, tinha a astucia de adiar a distribuição dos prêmios e a continuação dos jogos para o ano seguinte!...

Fantasiado e mascarado, representava Nero também a tragédia. Tomava cuidado em que as mascaras dos deuses, dos heróis e das heroínas fossem desenhadas à sua semelhança ou há de sua amante.

Desempenhava o imperador preferentemente o papel de Orestes, assassino de sua mãe, ou de Édipo, o cego, e o de Hercules desacorrentado. Depois, entregava-se às alegrias das corridas hípicas. Às ocultas, brincava com cavalinhos alinhados em cima de uma mesa, depois, sempre às ocultas, assistia as corridas publicas para declarar, afinal, que tinha grande vontade de nelas tomar parte, a fim de aumentar o numero de seus troféus. Nos seus jardins, diante de seus escravos, seguia um treinamento rigoroso. Condutor emérito de carros, fazia-se admirar no Circus Maximus.

Compreende-se que Nero tenha tido um fraco pela gloria e pelos louros. De todas as cidades gregas onde se realizavam festas e concursos, enviavam-lhe os louros dos tocadores de citara.

- Os gregos tem o ouvido musical. São os únicos que merecem gozar de minha arte - dizia Nero. E partia para aquele nobre pais.

Se um festival desdobrava seus faustos sem o concurso e a presença de Nero, era isso notado. Quando ele cantava, ninguém tinha o direito de abandonar o lugar. Se mulheres davam à luz, os primeiros sons que ouviam os recém-nascidos eram os cantos do imperador! Enfastiados, os homens, que não podiam mais suportar aquelas langorosas tiradas, pulavam os muros do recinto. Outros fingiam uma sincope, ate mesmo a morte, para que os levassem para fora! No decorrer das Neronia do ano de 65 d.e.c. grande numero de ouvintes pereceu no aperto das aglomerações, abafadas pelo calor sufocante e pelo ar viciado.

Antes de entrar em cena, o artista imperial, que sentia o conhecido medo dos atores, estava sempre inquieto e nervoso. Recomendava aos juízes que se não deixassem enganar pelo acaso e pelas falsas aparências. Mas ele respeitava escrupulosamente, com angustia mesmo, as regras dos jogos. Quando, vencedor, recebia os louros, tinha a alegria de anunciar ele próprio sua vitória. Para apagar da memória dos assistentes o nome dos antigos concorrentes vitoriosos, mandou lançar suas estatuas e seus retratos nas latrinas.

Durante uma corrida, foi atirado de seu carro e caiu no chão. Rapidamente, recolocaram-no no veiculo, mas não pode terminar sua corrida. Fora em Olímpia, na Grécia. Recebeu, não obstante, um premio!

Em honra a Nero, retardou-se de dois anos a abertura dos Jogos Olímpicos que, havia oitocentos anos, se realizavam todos os quatro anos. Antes de sua partida, exonerou de impostos a província de Acaia e cumulou de ricos presentes a população. Em Corinto, pronunciou uma alocução que foi conservada. Podem-se ler nela as frases seguintes:

"Minha magnanimidade, nobres gregos, é de antemão a garantia da maior bondade mas, a vos, destino uma graça que não tereis podido esperar. Recebeis de mim a liberdade, uma liberdade tal que não gozastes nas épocas mais felizes de vossa historia, porque jamais cessastes de dilacerar-vos em lutas intestinas. Há soberanos que concederam a uma cidade a liberdade; mas dá-la a um país inteiro, somente Nero era disso capaz!"

Na verdade, reflete esse discurso uma desmedida estima de si mesmo. A um ouvido grego, constituía mesmo uma nota humilhante. Não foram senão palavras, sinceras de certo, porque Nero admirava e venerava em seu foro intimo tudo quanto era grego. Amava a Grécia e o povo grego, e estava convencido de que o gosto apurado deles, seu teatro, suas olimpíadas e suas profundas aptidões pelas artes eram inigualáveis. O imperador exprimiu e coroou essa convicção sincera dando a liberdade a Grécia, assegurando-lhe dessa maneira o reconhecimento e a afeição dos gregos. É preciso dizê-lo: após sua morte, pareceu Nero aos gregos como a encarnação de um salvador, de um benfeitor e julgaram-no digno duma veneração divina. Mais tarde, nas épocas trágicas de sua historia, desejavam ainda seu retorno. Não podiam acreditar que aquele grande amigo da Grécia tivesse morrido. Nero que, durante sua existência, desejava atingir a imortalidade e a gloria, encontrara no povo grego o cumprimento póstumo de sua constante nostalgia.

Foi Nero profundamente penetrado pela sua missão de artista, de tragediante, de poeta e de cantor. Os historiadores modernos (como M. P. Charlesworth) tendem mais do que nunca em acreditar no testemunho de Suetonio quanta a autenticidade dos talentos artísticos de Nero. Suetonio, tanto quanto Tacito, alias, provaram em seus escritos que não foram precisamente admiradores daquele singular personagem: razão suplementar, parece-me, para dar credito às suas observações sutis e sensatas.

Revestido de uma túnica de púrpura e de um manto grego bordado de estrelas de ouro, com a fronte cingida pela coroa olímpica, encerrando na mão direita os louros ganhos nos jogos piticos, Nero, no carro triunfal de Augusto, fez sua entrada em Roma. Os santos troféus foram reunidos em seu quarto, em redor de sua cama.

Eis agora que, para não abusar de sua voz preciosa, se comunicava por escrito com seus soldados. Fazia-se também acompanhar por seu professor de canto, encarregado de lembrar-lhe a cada instante que devia poupar seus pulmões e sua garganta. Trazia um lenço diante da boca.

Sob disfarce, tinha por habito o imperador visitar a noite os lugares escusos, de surrar ou mandar atirar nas cloacas os cidadãos que regressavam tranquilamente a seus lares, e mesmo arrombar armazéns para pilhá-los! Vendia em leilão o produto de seus roubos. Uma noite em que apostrofava de uma maneira grosseira e obscena a esposa dum senador, deram-lhe uma tunda tremenda que quase o matou. A partir desse dia, fez-se acompanhar de legionários que o seguiam à distancia.

Os banquetes se prolongavam do meio-dia à meia-noite. Só os interrompia para refrescar-se com banhos quentes ou frios, segundo a estação. Cortesãs e dançarinas serviam-no à mesa. Quando embarcava no Tibre para ir a Ostia, improvisavam-se para satisfação sua orgias à margem do rio.

Nenhum desses excessos escapava aos olhos vigilantes de Agripina que não se privava de criticar a conduta de seu filho. Otavia era sempre a esposa fiel, mas Nero não lhe dava atenção. Tinha como amante uma escrava liberta, Claudia Acteia e, quando exprimiu o desejo de casar-se com ela, fez-lhe Agripina veementes censuras.

Lembremos que não tinham os nobres direito de realizar casamento legal com libertas. Mandou Nero então espalhar o boato de que Acteia era de origem real. Ela lhe permaneceu, alias, fiel até sua morte e foi enterrada a seu lado.

Mau grado suas estreitas relações com Acteia, fazia a corte a Popeia Sabina, mulher eminentemente bela e inteligente. O marido de Popeia, que maquinara a ligação, foi nomeado governador da Lusitania, o atual Portugal. Mas à medida que a intimidade entre Nero e a ambiciosa Popeia se amplificava e que a favorita procurava afastar Otavia e obrigar Nero ao divórcio, as ásperas disputas entre a mãe e o filho aumentavam de intensidade. E deu-se a inevitável ruptura. Agripina e Popeia odiavam-se. Só uma das duas mulheres podia dominar Nero. Uma delas devia, pois, desaparecer.



Nero quis suprimir sua mãe. Era difícil envenená-la, porque tomava ela suas refeições em sua casa e fiscalizava atentamente suas criadas e o movimento de sua casa. Conseguiu ele, por meio de um subterfúgio, atraí-la a bordo dum navio que mandou afundar. Agripina alcançou a margem a nado. Mandou ela própria dizer a seu querido filho que ainda estava viva! Mas Roma sabia que Nero tinha decidido assassiná-la. Aconselhou-se com Burrus e Sêneca. Burrus recusou-se claramente a ordenar que os legionários praticassem a sinistra tarefa. Quanto a Sêneca, sempre rival de Agripina, concordou com Burrus em encarregar Aniceto, liberto e antigo preceptor de Nero, do assassínio de Agripina.



A casa foi cercada, os servidores massacrados e morta a mãe do imperador, a 20 de março do ano de 59 d.e.c. Quando a quinquagenaria viu a espada brandida sobre sua cabeça, gritou para o assassino:

- Fere no ventre que pôs Nero no mundo!

Por varias vezes, tentara Nero estrangular Otávia. A pedidos instantes de Popeia, divorciou-se, afirmando que Otavia era estéril. Depois deu ordem de condená-la a morte por crime de adultério. Por ocasião do processo, todas as testemunhas, sem exceção, afirmaram a inocência de Otávia. Nero obrigou Aniceto a apresentar-se como testemunha de acusação e a declarar que, graças a um ardil, possuíra Otavia. A infeliz não completara ainda vinte anos. Seus assassinos abriram-lhe as veias. Não havendo o sangue escorrido, sufocaram-na num banho de vapor.

---------------



Anos de Loucura e decadência

O dinheiro, pensava Nero; só tinha valor se, prodigamente, pudesse gasta-lo sem restrição. Por isso professava grande admiração por seu tio Caligula que, em tempo-recorde, dilapidara o imenso tesouro acumulado por Tibério.

Para pagar os edifícios que mandava construir, dependia o imperador somas enormes. O vestíbulo do Palácio de Ouro, destinado a servir de residência imperial, era de dimensões tão vastas que podia abrigar a estatua colossal de Nero, da altura de trinta e cinco metros. De um comprimento de mil e quatrocentos e oitenta metros, comportava a sala três fileiras de colunatas e um lago cercado de construções que davam a ilusão de pequenas aglomerações. Encontravam-se ali também campos, vinhedos, pastagens e bosques onde pasciam animais domésticos e animais selvagens. Podia-se admirar esse espetáculo do interior da vasta sala de entrada.

Nas salas de refeição, de forros em lambris, estavam dispostas placas de marfim, moveis, ocultando um sistema de encanamentos que permitia a asperção dos convidados com água perfumada. Podia-se tomar banhos de mar e banhos de água de fonte, luxo até então desconhecido em Roma.

Quando terminou a construção do imenso edifício, declarou o imperador:

- Possuo afinal uma casa confortável!

Uma vez que não existia em Roma numero suficiente de operários para executar seus projetos de construções, o imperador deu ordem de recolher à Itália todos os prisioneiros do Império e condenar de futuro todos os criminosos, sem exceção, aos trabalhos forçados.

Rapidamente, secaram-se as arcas do Estado.

Foi preciso suspender o pagamento do soldo dos legionários e as pensões dos veteranos. Para arranjar dinheiro, teve Nero que recorrer a meios fraudulentos. As sucessões das pessoas que se tinham esquecido de incluir Nero em seu testamento entravam ex-officio nas arcas do fisco. Conferia a maior parte dos cargos em troca de metal sonante.

- Não ignorais do que necessito - dizia ele. - É preciso vigiar para que ninguém guarde nada para si.

Acabou por deitar a mão às oferendas ao templo e mandou fundir os ídolos de prata.

Um dia, Popeia, que se tornara sua mulher, teve a mesma sorte que tanto desejara a Otavia. Grávida, Nero matou-a com um pontapé. Quando a Sêneca, compreendera bem que os instintos sanguinários do imperador fixar-se-iam um dia em sua pessoa. Por varias vezes, pedira uma dispensa. Oferecia a Nero sua fortuna inteira, mas o imperador o tranqüilizava todas as vezes afirmando-lhe que ele se inquietava sem motivo e que ele, Nero, preferiria morrer a causar-lhe o menor mal. Todavia, obrigou Sêneca a por fim a seus dias.

A Rurrus, seu segundo ministro, enviou um remédio contra doença de garganta e o infeliz morreu fulminado.

Não é preciso dizer que, por inveja, levou ao suicídio Corbulão, seu general mais valoroso, que defendera as fronteiras de leste, do Caucaso ao Eufrates.

Quando se descobriu uma conspiração contra a vida do imperador, a sede de sangue de Nero aumentou até a loucura. Carregados de tríplices cadeias, eram os conspiradores submetidos a interrogatório. Alguns confessavam, outros afirmavam com força que seria um serviço a prestar a Nero o assassiná-lo. Condenados, foram os conspiradores executados; seus filhos também foram exterminados, quer pelo veneno, quer pela fome.

Doravante, a loucura assassina do imperador não teve mais limites. Pelas razoes mais insignificantes, romanos foram assassinados. Deu Nero ordem a um tal Traseias para suicidar-se, porque tinha este "a fisionomia sombria e carrancuda de um pedagogo". Os que não se suicidavam, eram confiados aos médicos de Nero para "fazerem uma cura". Era assim que o imperador designava a operação que consistia em abrir as veias.

Escreveu-se que havia ele manifestado o desejo de fornecer indivíduos vivos como alimento a um egípcio antropófago, celebre pela sua voracidade, que comia carne crua. Transbordante de orgulho e de satisfação, declarava Nero muitas vezes:

- Antes de mim, nenhum soberano compreendera que poderia tudo permitir a si mesmo.

Os edifícios antigos, os becos estreitos e tortuosos de Roma desagradaram a Nero, que mandou deitar-lhes fogo. Toda a gente, em Roma, sabia quem era o incendiário e ninguém ousava tocar em seus criados, quando os surpreendia em flagrante, de tochas nas mãos.

Durante seis dias e sete noites lavrou o incêndio. Dois terços das casas da cidade ficaram calcinados. O povo procurava refugio nas criptas, nos monumentos e nos templos. Os suntuosos palácios, os templos magníficos e quase todas as maravilhas da capital foram reduzidos a cinzas.

Do alto da torre do palácio de Mecenas, no Esquilino, contemplava Nero o formidável espetáculo. Exaltado diante da beleza grandiosa e devastadora das altas labaredas, cantou uma balada evocando o sitio de Ilion e confessou que podia afinal ter uma idéia do que fora o incêndio de Troia!

Para explorar o melhor possível a catástrofe, para dela retirar o maximo de benefícios, encarregou-se Nero da remoção dos escombros e dos cadáveres! Ninguém tinha o direito de aproximar-se das ruínas fumegantes. Acuou assim os romanos a miséria, obrigando-os a "contribuir com donativos voluntários".

Ruas espaçosas foram então abertas segundo um plano pré-concebido. As casas não deviam ultrapassar uma altura prevista. Prometeu Nero que mandaria construir colunatas diante dos edifícios. Para obviar o gasto de água, foram as canalizações postas sob a fiscalização. O deposito de aparelhos de extinção de incêndio era obrigatório em cada casa. Se a cidade ganhava assim em beleza, não estavam com isso satisfeitos os romanos. As ruas estreitas do passado, bordadas de altas casas, eram mais frescas que aqueles largas avenidas sem sombra em que o calor era insuportável. Suspeitavam além disso os romanos de que a boa vontade de Nero dava prova com seus projetos de reconstrução e de urbanismo moderno, dissimulava simplesmente o seu crime.

Espalhando-se como uma onda epidêmica, a sinistra noticia do crime do imperador circulava de casa em casa. Para cortar cerce aqueles perigosos boatos, decretou Nero que eram os cristãos os responsáveis pelo incêndio.

A este propósito, Tacito, nascido na Itália do Norte, no ano de 55 d.e.c., transmitiu-nos um dos primeiros testemunhos pagãos da existência de Jesus. Posta em duvida por Hochart e Drews, a autenticidade de seu texto foi reconhecida pelos filólogos do mundo inteiro.

Precisas, pertinentes, essas linhas são tanto mais preciosas quanto escritas por um romano que achava que os cristãos eram uma seita criminosa. Nos Anais (livro XV, cap. XLIV), 16-se o que se segue:

"Esse nome (cristão) vem de Cristo, condenado a morte pelo governador Poncio Pilatos, sob o reinado de Tiberio. A execrável heresia, reprimida provisoriamente, propagava-se de novo, não somente na Judéia onde nascera, mas também em Roma, onde cultos religiosos maléficos e abomináveis afluem e encontram adeptos."

Quantas vezes não se afirmou que não havia testemunho puramente histórico provando a existência de Jesus Cristo? Essas linhas de Tacito são, no entanto, um precioso atestado! O historiador romano relata em seguida, de maneira bastante desenvolta, que haviam detido indivíduos que se tinham declarado cristãos. Como não se podia convencê-los do crime de incendiário, acusavam-nos de "nutrir surdo ódio contra a espécie humana".

Nero transformou a perseguição que inaugurava contra os cristãos, num espetáculo destinado a divertir o povo. Os corpos dos crentes, costurados dentro de peles de animais, eram lançados em pasto a mólossos, pregados na cruz ou acendidos para servir de tocheiros!

Faz Tacito alusão a compaixão confessa do povo pelos cristãos que, naquela época, começavam a manifestar-se em Roma, "se bem que tivessem sido culpados e merecido o castigo mais severo".

Qual era, porem, a aparência física do homem que, à beira da loucura, governava o império de maneira tão arbitraria? De porte médio, Nero - Suetonio o escreve sem nenhuma restrição - desprendia um odor fétido; seu corpo estava coberto de pústulas e de manchas suspeitas. Dum louro ruivo, seus cabelos eram penteados em cachos, como os das mulheres, julgando os romanos esse penteado escandaloso e ridículo. O rosto apresentava alguma beleza. Os olhos dum cinzento azulado, muito míopes, tinham uma expressão ansiosa e como que espantada diante daquele mundo estranho que se deixava insultar e achincalhar tão facilmente. A nuca era espessa e o ventre proeminente. Pernas finas suportavam o torso pesado. Sua saúde mostrava-se robusta e resistente. Mau grado sua vida de orgias, só esteve seriamente doente umas três vezes durante seu reinado.

Durante catorze anos, suportara o império o tirano. Exatamente oito anos após o assassinato de sua mãe, soube Nero que os gauleses, sob o comando de Julio Vindex, haviam-se sublevado. Como se pressentisse sua queda e morte próximas, como se se soubesse incapaz de evitar o resultado fatal, reagiu Nero com toda a passividade. Mas quando soube que a Espanha se havia sublevado, teve uma sincope e ficou como que prostrado. De volta a si, rasgou cheio de raiva as vestes e, batendo na testa, exclamou:

- Estou liquidado!

Sua velha ama, que protestava, observou que semelhante sorte já ameaçara outros soberanos.

- Nunca - replicou Nero. - Meu infortúnio é sem igual; perco meu trono enquanto ainda vivo!

Agarrou duas preciosas garrafas de cristal e quebrou-as no solo.

Teve o imperador a idéia de envenenar os senadores, de mandar assassinar os generais, de incendiar de novo a cidade e de soltar as feras, para impedir que o povo extinguisse o fogo.

Depois mergulhou numa espécie de demência. Queria ficar só e declarava que, se perdesse o império, viveria dos proventos de sua arte. Partiria para Alexandria, onde compreendiam o seu gênio, para consagrar-se ao canto e a citara. Mas também esse projeto foi rejeitado. Manifestou Nero o desejo de ir sozinho ao encontro dos rebeldes gauleses. Graças apenas ao poder de suas lagrimas dilacerantes, fa-los-ia reentrar na ordem. Fa-los-ia então ouvirem cantos de vitoria, cujo texto apressou-se em compor.

O exercito o abandonava. Nero rasgava em pedacinhos as mensagens que anunciavam derrotas e catástrofes e pediu a celebre Locusta um toxico de efeito rápido. Mas não teve coragem de engoli-lo. Vestido com trajes de luto, quis aparecer diante do povo reunido e implorar seu perdão. Descobriu-se, após sua morte, o texto do discurso.

Cerca da meia-noite, de repente, despertou. Seus guardas de corpo tinham-no também abandonado. Mandou chamar os oficiais de sua escolta. Ninguém respondeu. As portas estavam aferrolhadas: o palácio estava vazio. Seus servidores haviam mesmo levado seus cobertores e o veneno de Locusta! Pôs-se o imperador a procura de Espiculo, o celebre gladiador, que devia, como estava combinado, dar-lhe o golpe de misericórdia. Ninguém!

- Não tenho, pois, nem amigo, nem inimigo? - urrou ele, como louco, precipitando-se para a rua, a fim de atirar-se no Tibre.

De novo hesitou. O liberto Faon ofereceu-lhe um refugio na sua casa de campo. Nero saltou sobre um cavalo e, com o rosto dissimulado sob uma mascara, galopou através da cidade, enquanto os relâmpagos de uma tempestade e um tremor de terra misturavam seus estrondos tom os gritos dos soldados. Espantado diante de um cadáver decomposto na estrada, o cavalo empertigou-se. A mascara escorregou e revelou as feições do imperador. Um pretoriano reconheceu-o mas não disse nada. Chegado a casa de Faon, Nero deixou-se cair sobre uma cama, gemendo.

Seus amigos aconselharam-no a por fim a seus dias, para escapar a uma morte infamante. Nero deu ordem de cavar uma cova de seu tamanho, a fim de poderem prestar-lhe as derradeiras homenagens. Mas, caído ao chão, chorou, exclamando por varias vezes:

- Vede bem o grande artista que vai morrer!

Quando lhe anunciaram que o Senado dera ordem de fustigá-lo até matá-lo, pegou dois punhais para atravessar com eles o coração. Tateou as pontas, mas depois reembainhou-os.

- Vivo na ignomínia e na vergonha! - exclamou. - Não é conveniente para Nero; não, não é digno dele!

À aproximação dos cavaleiros que queriam capturá-lo vivo, cravou, ajudado por um tal Epafrodito, um punhal na garganta. Ora, ao cavaleiro que chegou para liquidá-lo, mas que fingia acorrer para salvar seu imperador, disse Nero:

- Que fidelidade!

Foi seu derradeiro engano.

Com a idade de trinta e dois anos, morreu Nero, seis anos exatamente apos o dia sinistro em que mandara assassinar sua esposa Otávia. Livre dele, o império romano regozijava-se. No entanto, durante longos anos, fieis cobriam de flores o seu tumulo. Suetonio escreveu:

"Vinte anos mais tarde, surgiu entre os partas um rapaz que pretendia ser Nero. Eu era bem moço na ocasião e o nome de Nero gozava ainda de tal prestigio que os partas honraram durante muito tempo o jovem desconhecido que só à força entregaram aos romanos!"

Nero não chegava a morrer na memória dos homens. Estimulara a imaginação dos povos mais atrasados. Em lugar de uma política rude, disciplinada e severa, oferecera-lhes jogos, gozos, as alegrias puras das artes e espetáculos embriagadores. Conquistara o mundo, não pela razão e pela força da inteligência lógica, mas graças a sensações voluptuosas.