8.7.10

O Brasil e a cultura da desconfiança

A cultura da desconfiança talvez seja um dos piores legados dos trezentos anos de colonização portuguesa do Brasil. O povo visto sempre com receio supremo pelas autoridades civis, militares e eclesiásticas vindas de Lisboa, paga até hoje o fato de o país ter sido território conquistado. Mesmo a Independência e a implantação da Republica não moderaram a relação de suspeita permanente entre os que mandam e os que obedecem no nosso país.

Virtudes da colonização lusitana

“Por trás de cada ato de administração puramente burocrático existe um sistema de ‘motivos’ racionalmente discutíveis...”

Max Weber, Economia e sociedade, 1922.

Louva-se o colonialismo luso por ter conseguido manter nossa integridade territorial por quatro séculos e fazer com que o brasileiro de hoje seja um dos poucos a poder percorrer 5 ou 6 mil quilômetros, em seu próprio país, em todos os sentidos, ao abrigo das mesmas leis e sem grandes dificuldades de se fazer entender entre os seus.


Deve-se também a eles a notável capacidade plástica de se adaptarem aos trópicos, bem como o convívio, quase argiloso, com as mais variadas raças. Virtude que Gilberto Freyre atribuía a Portugal ser “meio Europa e um tanto de África”, ou, como disse na sua saborosa prosa, estar “a influência africana fervendo sob a européia”... “o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarona”.

A paixão pelo carimbo

Mas infelizmente também somos herdeiros da desgraçada cultura da desconfiança que aqui introduziram com a conquista, que faz com que qualquer caixeirinha ou funcionariozinho deste país se arrogue em funções de policial inquisidor, nos obrigando, pelos motivos mais banais, a mostrar documentos, reconhecer firmas, comprovantes, atestados, requerimentos, certificados, alvarás, licenciamentos, carimbos, e todo o resto da parafernália que a burocracia é capaz de inventar.


Imagino, por vezes, que benefícios não teríamos nós se toda essa energia e esse tempo, que perdemos nos labirintos administrativos, correndo atrás dessa infindável papelada, fossem canalizados para a produção! Quiçá batêssemos o Japão!


Olhando para o nosso passado, no entanto, para os tempos da gestão colonial lusitana, percebe-se que não poderia ser diferente do que terminou sendo. Atribui-se esta calamidade – a cultura da desconfiança –, da qual, parece que nunca poderemos nos livrar, à convergência de três fontes que deságuam no nosso atual estuário burocrático-carimbatório...

As três fontes históricas da cultura da desconfiança

A primeira delas origina-se do próprio corpo de administradores da Coroa, aqui encarregados de extrair impostos de uma gente arredia, “sem lei nem rei”. O reinol, o garimpeiro, o canavieiro, o proprietário de sesmaria e de outras terras, o traficante de escravos, o tropeiro, o almocreve, aproveitando-se do ar de terras livres, de tudo faziam para escapar do exator, inclusive embrenhando-se no sertão. Atrás do quinto, por sua vez, o publicano ou contratador em nome do Monarca, estudando as manhas e sanhas, ignorando as desculpas, tratava, com seu braço fiscal, de emboscar e forçar o fujão a dar a el-Rei o que lhe era devido, engendrando desde aqueles tempos coloniais uma pequena guerra civil tributária.


A outra é própria da sujeição militar da colônia, tratada como conquista pelo soldado ibero. Instalados em fortes, sitiados pela bugrada hostil, que quando os capturava, por vezes, os devorava até os ossos, meteram-se numa guerra de mais de três séculos e meio e obviamente desenvolveram uma mentalidade de casta invasora, tratando a maioria dos nativos como nações vencidas, como um inimigo a ser vigiado e espoliado de tudo.


E, finalmente, a que derivou da catequese dos jesuítas. Acreditando ser o Brasil um espaço bárbaro vazio de Deus, quando não a morada do Diabo, lançaram suspeitas sobre tudo e todos. Prova maior dessa possessão satânica para eles era o fato de as índias – em conluio com as nagôs – andarem com suas impudicícias expostas, arreganhando-se para a portuguesada desregrada e com eles se amancebando.


Viam que por aqui tudo desandava. Caciques cheios de mulheres, trocando de nomes a toda hora e inclinando-se a “meter-se na cabeça qualquer coisa, ao menos de maus costumes”, como disse deles o venerável padre Anchieta. O país, definitivamente, era o valhacouto do Demônio.


Para precaver-se ainda de outras ameaças heréticas – de origem luterana ou judaizante –, era preciso ter mil olhos e audição atenta. Os combatentes da Contra-Reforma estimulavam a indiada, os escravos, os mamelucos e os povoadores em geral a denunciarem à visitação do Santo Ofício, ou a sussurrarem no amplo ouvido do padre confessor os bestialismos, as perversões e todas as demais coisas pecaminosas que os vizinhos eram capazes de cometer contra Deus e o Rei. Prometiam-lhes, em troca da bisbilhotice, uns Pais-Nossos e um seguro lugar no Céu.


Desta maneira, o funcionário da corte, o soldado e o padre português convergiram em cultivar uma atitude de soberba desconfiança para com a população, que não mais se alterou e que a todos contaminou. A burocracia brasileira, herdeira do colonialismo, apenas lhes seguiu nas pegadas. Tratado como incorrigível sonegador, como provável falsário ou adulterador, como falto de palavra e de fé, um preguiçoso dado à luxúria e à irresponsabilidade, um delator e informante, uma raça de gente vil e derrotada, um tipo de pouca confiança, enfim só restou ao povo não lhes frustrar a expectativa e ser tudo aquilo que eles diziam que ele era.

Fonte: História por Voltaire Schilling