Em menos de 20 anos, as casas de pau-a-pique deram lugar a casarões. As ruas estreitas e sujas foram substituídas por avenidas arborizadas, pontes e viadutos surgiram. As várzeas, aterradas, viraram praças e jardins. Os parcos 20 mil habitantes se multiplicaram: passaram a 375 mil pessoas, que ganharam teatros, bibliotecas públicas e uma pinacoteca. São Paulo, enfim, progredia, na esteira de um grãozinho vermelho, conhecido como ouro verde. O café. Enquanto o Brasil firmava-se como o maior produtor mundial de café, o mundo inventava máquinas que desdobrassem o sabor da bebida. Até então ela era só consumida de maneira tradicional: coar o pó com água quente através de um filtro de pano. No fim do século 18 surgiu a primeira cafeteira, criada pelo físico e inventor americano Benjamin Thompson. Em 1802, o farmacêutico francês François Descroisilles aperfeiçoou o apetrecho ao separar água e pó em dois recipientes, intermediados por um filtro. A grande revolução, no entanto, se deu entre 1822 e 1855, quando um protótipo de uma nova máquina trazia uma forma inédita de preparar a iguaria, com a passagem de água muito quente sob alta pressão pelo café moído. Nascia a máquina de café expresso, forma que dava à bebida consistência mais firme. A engenhoca seria aperfeiçoada pelos italianos. Em 1946, Giovanni Gaggia criou a máquina de expresso tal qual a conhecemos hoje. Curiosamente, a Itália não tem um único pé de café plantado. "Itália, Bélgica, Alemanha, todos compram nosso grão verde, agregam valor e o vendem ao resto do mundo", afirma Dagmar Cupaiolo, presidente do Sindicato da Indústria do Café deSão Paulo. Fonte: Impulsionado pelo grande consumo na Europa, o ciclo do café fez o Brasil entrar numa era de prosperidade e mudanças políticas, econômicas e sociais sem precedentes em sua história
por Ana Elisa Camasmie e Raquel Grisotto
No início do século 20, o café era uma espécie de epidemia. Era o grande assunto das rodas de conversa. De 1850 a 1930, o produto foi responsável por um ciclo de desenvolvimento sem precedentes na história brasileira. Além do impacto trazido com a fortuna que as exportações alcançaram, a economia cafeeira motivou mudanças sociais e políticas que foram definitivas para a formação do país. Entre elas, a abolição da escravidão e a proclamação da República.
"Quando entrou no Brasil, o café permitiu que o país se integrasse ao mundo", afirma o economista Antônio Delfim Netto, que em 1959 defendeu a tese de doutorado "O Problema do Café no Brasil", ainda hoje um dos estudos mais importantes sobre o tema. "A grande instalação de infra-estrutura e também das indústrias está ligada ao café. Especialmente em São Paulo, tudo surgiu à sombra do capital gerado pelo produto", diz Delfim, ministro da Fazenda nos governos Costa e Silva e Médici (entre 1967 e 1974), e da Agricultura e do Planejamento durante a presidência de João Figueiredo (de 1979 a 1985).
De fato, o café impulsionou uma série de atividades. A necessidade de escoamento da produção foi responsável pela implantação de uma infra-estrutura até então inexistente no país. Inclui-se aí a ampliação dos portos, com destaque para o de Santos, que teve seu grande cais construído em 1890 – até então, o porto consistia apenas em 23 pontes de madeira onde os navios aportavam. Além disso, uma rede ferroviária já surgiu como uma das mais modernas do mundo. A São Paulo Railway, inaugurada em 1867, ligava Santos a Jundiaí, no interior de São Paulo, perto do grande centro produtor, o oeste de São Paulo, e garantiu agilidade no transporte do grão.
O CAFEZINHO NA EUROPA
Dificilmente alguém que olhasse o Brasil antes da metade do século 19 seria capaz de mensurar a amplitude das mudanças que ocorreriam no país a partir dali, conforme apontou o economista Celso Furtado (1920-2004) em Formação Econômica do Brasil. Durante os 75 anos anteriores, o Brasil havia apresentado uma economia estagnada, "quase decadente". O governo estava cerceado em sua capacidade de arrecadar mais impostos e com cada vez mais dificuldades para conseguir empréstimos no exterior.
O mercado de açúcar, primordial para movimentar a economia tipicamente colonial do país, mostrava-se cada vez menos promissor em função de novos pólos exportadores, especialmente Antilhas e Cuba – esta então uma colônia espanhola, que passara a ser o principal fornecedor do produto aos Estados Unidos. Sem domínio de técnicas importantes de produção, sem um mercado interno de relevância e sem capacidade de formar capital para ser desviado para outras atividades, o Brasil, nas primeiras décadas de 1800, estava à espera de um milagre. E tinha de ser uma intervenção divina que pudesse ser exportada e dependesse da única coisa em abundância no país: a terra.
O café não era um completo desconhecido. Por volta de 1663, vindo de Portugal, já havia uma pequena cultura dele. Mas foi a partir de Francisco de Melo Palheta, militar a serviço do rei português, que o café se desenvolveu. Palheta trouxe mudas da espécie arábica da Guiana Francesa em 1727, para serem plantadas no Pará. De lá, a trajetória do produto incluiu Maranhão, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, onde encontrou as condições mais ideais de cultivo – clima ameno, chuvas bem distribuídas ao longo do ano e, principalmente, abundância da chamada "terra roxa", solo fértil de origem vulcânica. O produto já tinha certo valor comercial, mas a produção, até 1815, cobria apenas um inexpressivo mercado doméstico. Por volta de 1830, já no Vale do Paraíba fluminense, o café passou a ser exportado para diversos pontos da Europa, via Lisboa. Nessa época, o preço da commodity (como são chamados os produtos primários produzidos em massa) passava por uma alta valorização, principalmente depois que o Haiti, principal fornecedor mundial, enfrentou uma grave crise com a guerra de independência da França, em 1804. Com a exaustão do solo no Vale do Paraíba, o café seguiu para o oeste paulista.
Em cerca de 1870, cidades inteiras foram fundadas em razão da grande produção de café, como Piraju, Ribeirão Preto e São José do Rio Preto, entre outras. O clima da região e o solo roxo disponível em grandes proporções garantiriam uma produtividade sem paralelos. "Ali, o cafezal eliminou lenta porém seguramente a agricultura de subsistência e a cana-de-açúcar, indo além", afirma a historiadora Ana Luiza Martins em A História do Café. As condições favoráveis para o cultivo, aliadas ao grande mercado consumidor que se formara no exterior, deram ao Brasil a oportunidade única de controlar a oferta do produto no auge de sua demanda.
A essa altura, tomar um cafezinho já havia se tornado hábito na Europa. A bebida forte, amarga e encorpada embalava as conversas de políticos, artistas e intelectuais nos cafés parisienses e nas coffe houses de Londres e Viena. Seu efeito estimulante agradava igualmente à classe trabalhadora, que recorria a ele para superar a fadiga das exaustivas horas de trabalho nos parques industriais – eram os anos da Revolução Industrial.
TCHAU, ESCRAVOS
A importância do café crescia continuamente. Se em 1850 ele já havia se tornado o principal produto de exportação nacional, representando mais de 40% de tudo o que o país vendia para fora, em 1870 oBrasil exportava três quartos do café consumido no mundo inteiro. Só a província de São Paulorespondia por 16% da produção nacional, passando para 40% em 1885.
Com uma produção tão intensa e um contingente de mão-de-obra escrava limitado (o tráfico fora proibido em 1850, mas os escravos continuaram a entrar no país clandestinamente, o que os encarecia), os produtores começaram a dar incentivos aos movimentos migratórios. Alguns fazendeiros do oeste paulista fizeram experiências com camponeses estrangeiros, vindos especialmente da Alemanha e da Suíça, ainda na década de 1850. "As elites eram bastante apegadas à escravidão. Só apostaram em projetos de imigração quando realmente perceberam que o sistema escravocata havia chegado ao limite", diz a historiadora Esmeralda Blanco de Moura, da Universidade de São Paulo. Aos poucos, o movimento foi se intensificando, com a vinda mais constante de italianos, fugidos das dificuldades geradas pelos conflitos da unificação da Itália, que durou décadas e só seria concretizada em 1870. O chamado sistema de parceria adotado então, porém, fazia com que esses camponeses já chegassem cheios de dívidas: os produtores pagavam a passagem mas com o compromisso de pagamento dos imigrantes pela força de trabalho. Alguns imigrantes eram até mesmo "comprados" por senhores do café, que quitavam as contas pendentes dos trabalhadores com outros proprietários. Por essas características, muitos países, incluindo a Itália, proibiram a vinda de seus cidadãos para oBrasil nos anos 1860.
Foi a partir de 1870 que o governo da província de São Paulo passou a arcar com as despesas relativas à imigração, investindo em agências espalhadas pela Europa e também na construção da Hospedaria do Imigrante, inaugurada em 1885 no bairro paulistano do Brás, pertinho dos trilhos da São Paulo Railway. A década de 1880 viu o início da grande onda imigratória que duraria até o começo do século 20, de europeus e japoneses. De 1890 a 1900 a população do Brasil aumentou em 3 milhões de pessoas – passou de 14 para 17 milhões.
Com a nova classe assalariada, as lavouras ganhavam ares mais capitalistas entre 1880 e 1890. Alguns imigrantes ficaram livres para abandonar as fazendas com o fim do regime de parceria e partiram para novas aventuras na cidade. "Muitos imigrantes mandavam os filhos estudarem na capital, porque viam para eles um futuro melhor como comerciantes, quem sabe até advogados", afirma a historiadora Maria Dilecta Grieg, autora de Café – Histórico, Negócios e Elite.
OS BARÕES NA CAPITAL
A oligarquia cafeeira – originária em grande parte dos senhores das terras, às vezes antigos produtores de cana-de-açúcar, de comerciantes empreendedores e de uma pequena minoria de ricos imigrantes, geralmente ingleses – fez fortuna e fazia questão de gastá-la bem. Além de investir no próprio setor para aumentar a produção ou facilitar a logística do produto (como aconteceu com os portos e ferrovias), os senhores do café também gastavam seus lucros em ações capazes de atender desejos de consumo cada vez mais requintados. "Essas famílias se esforçavam para manter contato com grupos de intelectuais, traziam ao país espetáculos de grandes companhias de teatro e, na maior parte das vezes, mantinham também propriedade em alguma capital européia", afirma Maria Grieg. "Para a elite cafeeira, tudo tinha de ser grandioso, suntuoso, bonito, elegante e moderno." A ânsia pelo que era inovador motivou pouco a pouco os grandes produtores a deixar o marasmo do cotidiano das fazendas para também viver nas cidades – ou ao menos passar grandes temporadas nos centros urbanos. São Paulo, no meio do caminho entre as propriedades produtoras e o pólo exportador de Santos, virou morada dessa elite. "Na década de 1920, seu ritmo de construção de imóveis registrava a média de uma casa em menos de uma hora e meia", diz Ana Luiza Martins. A cultura européia, e preferencialmente a francesa, inspirou ainda a construção de majestosos casarões – como os da avenida Paulista, aberta em 1891 e que virou o endereço dos grandes barões –, além de teatros, clubes, hotéis. A expansão das ligações da cidade também se efetuava com obras como o Viaduto do Chá (1892) e a Estação da Luz (1902), a mais imponente parada da São Paulo Railway. A cidade, a província e o país começavam a ter uma nova cara.
BRASIL = EUA
Foi para atender às necessidades desse novo mundo que ocorreram grandes movimentos de urbanização das cidades. Além de São Paulo, Santos e o oeste do estado também se desenvolveram, com povoamento de regiões antes desocupadas, investimento em obras de saneamento, desenvolvimento dos meios de comunicação e implantação das primeiras redes de energia elétrica.
A pioneira foi a rede inaugurada em 1879 na Estação Central da Estrada de Ferro Dom Pedro II, atual Estrada de Ferro Central do Brasil. Em 1883, entraria em operação a primeira usina hidrelétrica brasileira, em Ribeirão do Inferno, Diamantina (MG). Isso sem mencionar as estradas de ferro. Além da São Paulo Railway, datam dessa época a Paulista (inaugurada em 1872), a Mogiana (1875) e a Sorocabana (1875), que se equiparavam ao que havia de mais inovador na Europa e nos Estados Unidos. O dinheiro gerado pelo café permitia tudo. No conjunto, durante o ciclo do café a economia brasileira deu um salto. Somente na última metade do século 19, o PIB aumentou 5,4 vezes – algo comparável ao que se verificou nos Estados Unidos no mesmo período: um aumento de renda de 5,7 vezes.
A diferença é que, enquanto a terra do Tio Sam mantinha crescimento contínuo desde décadas anteriores, o Brasil iniciava seu desenvolvimento após grande estagnação colonial – e sem perspectivas. "O café chegou e encontrou as condições ideais de cultivo, num momento interessante da demanda externa", diz Delfim Netto. "Ele foi uma sorte enorme ao país."
QUE TAL UM CAFEZINHO?
O mercado voltado à bebida evoluiu no mundo no século 18