É possível que um tribuno romano, morto há seis séculos atrás em plena Idade Média, ser considerado como aquele que modelou e inspirou as fanfarras e fantasias imperiais dos tiranos nazi-fascistas do século XX? Pois tudo indica que esse papel de mentor involuntário dos chefes nazi-fascistas foi o de Nicola di Rienzo, ou simplesmente Cola, um homem de origem plebéia nascido em Roma em 1313, que, desafiando a oligarquia local, conseguiu galgar o controle político da cidade eterna até ser assassinado num motim preparado por seus inimigos das famílias nobres em 1354.
A ascensão de Rienzo
Nicola di Lorenzo, popularmente conhecido como Cola di Rienzo, ou Rienzi, mesmo sendo filho de um dono de uma taverna e de um mulher muito simples, conseguira por um desses ares do destino ter uma excelente formação cultural. Apaixonado por livros, percorria as ruas de Roma indignado com a situação daqueles veneráveis prédios em ruínas, lembrando como Tito Lívio, Salústio e Valério Máximo, os grandes historiadores romanos, haviam descrito a exuberância e a imponência da arquitetura passada.
No presente, porém, lamentava ele, a hera tomara conta de tudo, dos anfiteatros, das termas, dos arcos do triunfo, dos estádios e dos mercados, cujas paredes pareciam se desmanchar a um simples toque. Para piorar as coisas, uns cinqüenta anos antes de Cola nascer, um prefeito da cidade ordenara a destruição de mais de 250 mansões senhoriais que abrigavam a história das famílias ilustres locais. Incomodado, deu para arengar ao povo em todos os lugares. Que se juntassem a ele para preservar o que restara. Não só isso, aos poucos Rienzo foi tomado de ambições políticas.
A situação política de Roma
Por força da pressão do rei francês Felipe, o belo, o papado havia abandonado Roma e a Itália em 1309, quatros anos antes de Cola nascer, indo instalar-se na cidade de Avignon, na Provença, ficando desde então na órbita da França. Os enormes recursos que afluíam para a antiga capital do cristianismo, vindos de todas as partes da Europa, cessaram quase que totalmente.
O que ampliou e acelerou ainda mais o desleixo para com os provectos edifícios. O doloroso, mas inevitável, é que a chusma romana aumentou ainda mais a depredação, carregando para suas moradias o que podiam levar de pedras, de lajes e revestimento dos muros inteiramente abandonados. Que miséria! Andando pela s ruas da cidade ao invés de poder-se deparar com os antigos cidadãos honoráveis, com os pretores, os questores, os da ordem eqüestre, um arrogante patrício arrastando atrás de si a sua clientela ou ainda um centurião com seus colegas de armas, só se via aquele popolo minuto, humildes, esfaimados, sem futuro, sem destino.
Roma, espoliada por todos
A Roma medieval via-se espoliada por seus pobres. Era como se um enorme corpo de argamassa, tijolos e granitos - o gigante que outrora compunha a urbe -, se visse devorado por um incessante formigueiro humano. E, para desgraçá-la ainda mais, a ausência do papa liberou as duas famílias dominantes , os Colonna e os Orsini, de qualquer pejo, de qualquer freio, tornando-as ainda mais rapaces do que o costumeiro.
A nobreza de cima e a plebe por baixo corroíam o patrimônio milenar da velha cidade de Rômulo, desconhecendo inteiramente as considerações que Dante fizera por ocasião do jubileu de 1300, quando lá estivera em visita, deixando dito sobre as ruínas, "quem as roubam ou as despojam ofendem a Deus com a blasfêmia dos seus atos, já que Deus as fez sagradas para a sua própria glória." Notário e tribuno
A agitação de Cola di Rienzo, um excelente orador, contra a nobreza e o descaso para com a cidade, foi tão eficaz que o papa, lá de Avignon, indicou-o em 1344 como o seu notário, responsável pelo tesouro público que legalmente ainda estava no controle do Sumo Pontífice. O sucesso de Cola, então com apenas 31 anos, não pode ser atribuído apenas ao rancor plebeu ou à sua sensibilidade conservacionista ( as primeiras medidas dele foram suspender o saque do Coliseu e de outros prédios antigos). Ocorreu que os seus discursos sobre a grandeza imperial da antiga Roma conseguiram de fato incendiar os sentimentos populares.
Lembrou a todos, em discursos emotivos, o que fôra a magnificência dos tempos dos césares, confrontando-a com o presente mirrado e predador a que os romanos se condenaram. Rienzo imaginou-se um restaurador, um legatário dos séculos pagãos com a missão de vir a recompor a altivez da era de Augusto. Não quis porém coroar-se rei de Roma, contentado-se com o titulo de tribuno do povo, situação que o levou a um desfile sensacional pelas ruas da cidade no dia 15 de agosto de 1347. Naquela data, portando seis coroas e um bastão senatorial com uma órbita dourada e uma cruz, desfilando em meio a aclamação popular como "se fora um sonâmbulo, sustentado pela força do seu sonho extravagante" ( A.J.Symonds), misturando emblemas romanos e cristãos, mostrou a todos as chaves de São Pedro.
Uma confederação de tiranos
Para tanto, depois de fazer as devidas reformas das taxas, e alterar a favor do povo as estruturas políticas e jurídicas, proclamou Roma como a capital sagrada da Itália, conferido, em agosto de 1347, a cidadania a todos os peninsulares, convocando as demais cidades italianas para que elegessem um imperador romano com autoridade sobre o país inteiro. O projeto de fato era uma para que os tiranos da Itália se confederassem numa unidade tendo Roma como a caput mundi, o centro do sistema. Foi o que bastou para que os oligarcas romanos atentassem contra ele num malsucedido levante em novembro de 1347.
Fracassados nas armas, os Colonna e os Orsini lançaram mão da intriga. Convenceram o Papa Clemente VI que a paixão de Cola pela antiguidade pagã era sinal evidente de heresia. Era, disseram, um novo Juliano, o apostata ( 361-363), o sobrinho de Constantino, o jovem imperador que quisera no século IV dar a volta no relógio e banir o cristianismo do império romano.
Exílio e retorno
Tendo descontentado a plebe e enfurecido a nobreza, caindo em desgraça junto ao papa que o excomungou, Cola di Rienzo refugiou-se em Praga, então sede do Sacro Império Romano- Germano, cuja autoridade sobre a Itália era puramente formal. Foi preso e enviado para Avignon. Que o papa desse um fim nele. Porém as coisas tomaram outro rumo. Houve uma comoção nacional em seu favor e mesmo o grande Petrarca, o maior poeta vivo da Itália de então, enviou uma carta a Clemente VI intercedendo pela vida do rebelde.
Nas Epístolas a Rienzo, Petrarca não poupou-lhe elogios, identificando-o como um novo Rômulo, chamando-o de vir magnanimus, digno de ombrear-se com os dois Brutos e com outros honoráveis romanos filhos da Loba. Sensível aos apelos, Clemente VI resolveu compor-se com aquela força da natureza. Não só isso. Autorizou Rienzo a retornar à cidade eterna no séquito do Arcebispo Albornoz com a missão de restabelecer a autoridade papal. Nomearam-no senador desta vez. Mas em pouco tempo Rienzo perdeu-se novamente. Acabou sendo assassinado num motim popular, açulado pelos nobres em 1354, nas proximidades do Capitólio, símbolo antigo da autoridade romana.
Rienzo como mito unitário
O impressionante fracasso de Rienzo não esvaziou ou empanou a legenda que o envolveu nos séculos seguintes. Apesar do seu nome ter-se ligado à bufonaria e a teatralização exagerada, a uma atitude por vezes irresponsável com as coisas públicas, tão comum a tantos outros políticos itálicos, ele perdurou na memória nacional. Não só ele tivera o aval do grande Petrarca, mas seu nome era lembrado a cada humilhação que a Itália sofria nas mãos dos estrangeiros. Curiosamente Maquiavel não o citou.
De certa forma Il Principe (O Principe, 1532), do escritor florentino, nada mais foi do que uma tentativa intelectual de também clamar pela unidade italiana, para que se restabelecesse no solo pátrio, invadido e pilhado, os tempos da antiga dignidade imperial arrebatada e ferida pelos bárbaros. Talvez Maquiavel considerasse Cola di Rienzo só um desastrado, um delirante, um estouvado, um amador romântico sem estofo para capitanear o ambicioso projeto de reunir a Itália baixo um só governo. O que não evita de pensar-se que, ao seu modo, Nicolo Maquiavel também pareceu-se um Cola, por que a sua peroração em favor da aparição de um principe forte, corajoso e audaz, que reunificasse a península itálica igualmente não passou de uma quimera.
O Ressurgimento e Rienzo
Com a emergência do Il risorgimento ( O Ressurgimento), o movimento nacionalista italiano dos princípios do século XIX, o nome de Cola di Rienzo voltou a ser lembrado, especialmente quando Garibaldi deu inicio à formidável campanha pela unificação. Mas ele não foi lembrado apenas pelos unitaristas italianos.
Na Alemanha pulverizada em mais de 300 entidades políticas, Richard Wagner também o invocou ao compor uma ópera de fervor patriótico e revolucionário, que estreou em Dresden em 1842. Rienzi, apresentada em cinco longos ato, de seis horas de duração, pode ser vista, com seus desfiles, comícios, sinos badalando e cavalos em cena, como o protótipo do que oitenta anos depois seria uma parada ou um grande concentração fascista.
Rienzo, na ópera e na poesia
A história do infeliz líder da plebe chegou às mãos de Wagner através do romance do escritor inglês Lytton-Bulver, aparecido em 1835 com o titulo de Rienzi, the Last of the Tribunes ( inspirado na Crônica Anônima de Cola di Rienzo) , narrativa que lhe serviu para que em seguida o transformasse no libreto da sua ópera. Obcecada pelos mitos românticos da vontade e da idéia, Wagner direcionou as ações de Rienzo em função dos seus impulsos de grandeza e não pela inspiração das leituras clássicas que o jovem tribuno efetivamente fizera, dando ênfase ao censo teatral da política que Rienzo efetivamente tinha.
Foi esse "Rienzi" de Wagner que Hitler, ainda um rapaz, assistiu umas seis ou sete vezes seguidas num teatro da sua cidade de Linz, na Áustria imperial nos finais do século XIX, fascinando-se pelo resto da sua vida com a história do pé-rapado que, além de arrebatar o povo com sua oratória, assombrou as potências da sua época com os seus sonhos de visionário. Benito Mussolini, o capo dos fascistas, por sua vez, deve ter tido contato com a história empolgante do ¿ último tribuno romano¿ através do poema de Gabriele D´Annunzio, intitulado La vita di Cola di Rienzo.
A coreografia espectaculosa e marcial da qual ambos ditadores fizeram largo uso em seus meetings e paradas militares na Italia fascista e na Alemanha nazista, suas águias e seus estandartes, bem como os delírios que os acometeram por estarem eles convictos de serem os instrumentos de uma restauração imperial, de certo modo pareceu ser a revivência da efêmera marcha triunfal de Cola di Rienzo pelas avenidas da Roma medieval.
Fonte:VOLTAIRE SCHILLING