"... seria uma semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulista" - DI CAVALCANTI
Numa entrevista a uma revista cultural de São Paulo, feita em 1939, a pintora Anita Malfatti narrou os antecedentes da sua polêmica exposição de 1917. O acontecimento revelou-se quase tragédia para ela, mas acredito que pelo impacto que suscitou junto à público e críticos, tornou-se chave para o que veio depois.
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Ela mesma confessa que quando mostrou suas telas a umas colegas "acharam-nas feias, dantescas e todas ficaram tristes ..., alguns jornalistas pediram-me para ver os quadros tão mal feitos e todos acharam que devia fazer uma exposição". Estava fortemente influenciada pelo expressionismo alemão, com aquela inclinação pelo grotesco e pelo caricatural. O comportamento do público era muito estranho, em geral a reação da maioria era de espanto, de frustração, com aquela nova estética importada da vanguarda europeia.
A resposta conservadora à ousadia de Anita Malfatti não demorou. Um pouco antes do Natal de 1917, Monteiro Lobato, num artigo publicado em O Estado de São Paulo, desancou não só a exposição como o futurismo, o cubismo, o impressionismo e todos os "ismos" da moda, dizendo-os produtos dos tempos decadentes, de cérebros deformados, afirmando que a única diferença das telas de Anita daquelas feitas nos manicômios, como terapia, é que a dos loucos era "arte sincera."
Comentando o choque provocado pela crítica de Lobato, Mario de Andrade disse que Anita ficou meio desaparecida uns quatro ou cinco anos. Quem a defendeu foi o jovem Oswald de Andrade, que mais tarde seria um dos mentores da nossa vanguarda, balançando sempre entre ser bufão ou anarquista, dizendo que a exposição pelo menos havia sacudido a crítica paulista da "sua tradicional lerdeza de comentários." Oswald por aqueles tempos era militante futurista, resultado da sua viagem à Europa em 1912, quando voltou com uma penca de manifestos inspirados por Fillipo Marinetti. Mas ele e os outros intelectuais que o cercavam não gostavam de ser assim designados, preferindo o de modernistas. O nome futurista tinha ligações com as loucuras feitas pelos vanguardistas europeus, que os rapazes paulistas, mais acanhados, não estavam preparados para assumir.
A crítica de Lobato serviu como elemento catalisador. Pensaram em aglutinar forças e marcar presença através de um ato espetacular. A revolução estética que anunciavam merecia algo apoteótico. Aproximava-se o ano de 1922, o ano do centenário da Independência brasileira. Era o momento ideal!
Como quase todos os integrantes do movimento modernista eram filhos da oligarquia paulista, não tiveram dificuldade em obter a adesão de Paulo Prado, curador do Teatro Municipal, que também providenciou os recursos.
Entre os dias 11 a 17 de fevereiro, promoveram conferências sobre a nova estética entremeadas de recitais, de música ou leitura de algumas obras. No saguão, alguns pintores e escultores espalharam seus trabalhos. A plateia foi à loucura: urravam, guinchavam, pateavam, silvavam, vaiavam de enrouquecer para mostrar seu desagrado com aquilo tudo. Não permitiram que se escutasse nenhuma frase do que Oswald disse. Com Villa Lobos não foi diferente. Tendo adentrado no palco com sandálias, pensaram que era uma pantomima do músico e ficaram quase histéricos. Na verdade, o jovem havia se machucado.
Uns tempos depois, passado o vendaval, Yan de Almeida Prado disse que tudo não passou de uma estudantada, uma brincadeira para quebrar o marasmo da paroquiana São Paulo. Mas é claro que não se reduziu a isso. Para alguns críticos, foi uma vigorosa tentativa de liderar o universo cultural brasileiro, sequestrando do Rio de Janeiro a primazia de estar à frente das coisas. A Paulicéia começara a se projetar como poderoso centro industrial, ambicionando ser também a vanguardeira das artes.
Mas afora essas interpretações de ser apenas mais um ato da longa novela de rivalidades entre paulistas e cariocas, se aceita hoje que a Semana de Arte Moderna de 1922 foi um momento de rompimento com a arte acadêmica e com a neocolonizada prosa parnasiana então predominante. Tornou o estilo anterior intragável e forçou a adoção, tanto na poesia como na prosa, de uma linguagem solta, ausente de formalismos, afastada da pedanteria e da incorrigível vocação academicista. Não conseguiu, porém, fazer com que o público aderisse com entusiasmo às novas formas de expressão, aliás, como bem poucas vanguardas o fizeram. Em nosso século, os artistas foram lançados num limbo de incompreensão raro de encontrar na história da estética universal.
Para os intelectuais, a Semana serviu como uma redescoberta do Brasil, mostrando-o fruto de uma cultura mestiça, vacilando entre o bestialismo e a civilização, em perpétuas dúvidas sobre ser ou não ser parte da periferia do Ocidente.
Fonte:VOLTAIRE SCHILLING