9.2.10

Casa-grande & senzala para o Brasil de Gilberto Freyre

Assisti ao nascer de Casa-grande & senzala, tenho acompanhado sua atuação durante um quarto de século dramático, e quero dar meu testemunho (...) Naqueles anos que sucederam ao movimento armado vitorioso de 1930. Iniciava-se esse crescer de nossa cultura, do público ledor, do interesse pelas coisas brasileiras.

Jorge Amado

Casa-grande & senzala (1) foi publicado em 1933, compondo juntamente aSobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1957) as três maiores contribuições de Gilberto Freyre à História do Brasil. O livro trata da formação colonial e do patriarcado no Brasil a partir da ocupação portuguesa no nordeste litorâneo. O período compreende o que chamamos América Portuguesa na historiografia produzida sobre o tema, enfatizando os primeiros duzentos anos da implantação das lavouras de açúcar como projeto mercantilista lusitano de exploração e extração comercial. O livro divide-se em cinco capítulos:

I Características gerais da colonização portuguesa no Brasil: formação de uma sociedade escravocrata e híbrida, onde o autor situa sua compreensão para o início da ocupação através dos navegadores portugueses, II – O indígena na formação da família brasileira, onde trabalha com relatos de cronistas e viajantes para perfazer o papel do indígena na sociedade brasileira, III – O colonizador português: antecedentes e predisposições, para abordar o papel português como gerenciador do projeto de colonização, IV – O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro, enfatizando a importância do escravo africano nas relações senhores/escravos (sexo e família) do engenho de açúcar e o V capítulo que serve para uma continuação deste.

Possui ainda um subtítulo: Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. A referência secundária soa sugestiva, na perspectiva que Freyre pensava em dar continuidade à obra numa cronologia sobre o tema (2). O resultado deste livro deu-se num período de três anos de exílio, após as mudanças ocorridas no Brasil em 1930 e sua ligação com o panorama político da época:

(...) Casa-grande & senzala se insere num quadro em que o debate sobre a formação nacional compõe um cenário político em que a centralização administrativa altera o lugar não apenas das regiões como dos grupos que exercem o poder local e regional (...) Podemos pensar a existência de uma cultura brasileira? Esse perfil corresponde às exigências da civilização ocidental e, portanto, o Brasil pode figurar no concerto geral das nações? (BASTOS, 2004, p. 217)

A chamada República Velha (1889-1930) chegava ao fim com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. A regionalização política dos blocos de Minas Gerais e São Paulo propunha mudanças importantes. O Brasil aspirava por um modelo político e econômico capaz de atender às elites urbanas com projetos industriais em detrimento do velho Brasil rural (PRADO JUNIOR,1999). As mesmas elites dominantes passavam a exigir respostas sobre os rumos do país, sobretudo em relação às populações excluídas desde o fim oficial da escravidão (1888) e o advento de nossa república moderna (1889). Estamos falando, especificamente, de um lugar social onde essa massa de pobres – sobretudo de origem camponesa – poderia figurar no sentido de uma nacionalidade.

Freyre buscará respostas no contexto à qual estava vinculado politicamente: o das oligarquias agrárias de Pernambuco, à época, em pleno declínio econômico no nordeste brasileiro. Fato curioso, é que o autor insere uma dedicatória para os avós antes do prefácio de CG&S, ajudando-nos a compreender sua ligação para com aquele Brasil saudosista de suas lembranças da infância (3).

Moreira Leite (1976) refere-se ao livro CG&S como uma Busca pelo tempo perdido (analogia à obra do escritor francês Marcel Proust). O momento histórico áureo das antigas fazendas e engenhos de açúcar, reminiscências do ciclo açucareiro no litoral entre os séculos XVI e XVII, são laureados como a trajetória do bom civilizador, no caso, o português.

Nascido em Recife, Pernambuco, em 1900, Freyre estudou nos Estados Unidos e posteriormente na Europa. Seu intercâmbio com o exterior lhe permitiu uma sólida formação sociológica. As incursões em Colúmbia (Nova Iorque, EUA) e Oxford (Inglaterra) deram-lhe novos instrumentos analíticos, além de uma rica temática desenvolvida por autores espanhóis: Ganivet, Unamuno, Pio Borja e Ortega y Gasset (BASTOS, 2004).

Atualmente, seria complexo discutir – numa relação cronológico-biográfica – em que região do estrangeiro Freyre obteve maior influência intelectual. É claro que seus estudos de graduação e pós-graduação na América do Norte recebem maior destaque em artigos e livros a seu respeito. Queremos deixar bem claro neste trabalho, uma objeção sobre o seu perfil biográfico: o contingente de monografias e teses relacionadas à sua obra é imenso. Portanto, é necessário salientar que existem visões divergentes a respeito de sua influência acadêmica. Ou pelo menos, a maior delas.

Sua base documental para fundamentar a tese de CG&S é inovadora, diferente do convencionalismo historiográfico de sua época. Freyre utiliza-se de diários íntimos, cartas, livros de viagens, folhetins, autobiografias, confissões, depoimentos pessoais escritos, versos e cantigas da tradição oral. Assim, constrói sua interpretação do cotidiano patriarcal agrário-exportador-escravista e açucareiro. Em sua tese sobre a formação da sociedade brasileira via nordeste, articulam-se três elementos: o patriarcado, a interpretação de etnias e culturas e o trópico. Outros três sub-itens: clima, raça e biologia. Conforme afirma o autor:

A formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos seus defeitos, menos em termos de “raça” e de “religião” do que em termos econômicos, de experiência de cultura e de organização da família, que foi aqui a unidade colonizadora. Economia e organização social que às vezes contrariaram não só a moral sexual católica como as tendências semitas do português aventureiro para a mercancia do tráfico. (FREYRE, 2002, p.47)

A formação antropológica de Freyre nos Estados Unidos nos ajuda a entender sua idéia racial nos trópicos. Não devemos esquecer que aliado às transformações políticas no país, havia as teorias racistas de seu tempo, como as teses eugênicas na Europa. No Brasil, as premissas de ideologia racista aparecem reforçadas por intelectuais e médicos, sobretudo no meio psiaquiátrico. Durante os séculos XIX e XX, respectivamente, a idéia de superioridade racial ganha destaque nos círculos científicos e acadêmicos, reforçando o surgimento de teorias misóginas na Europa, já vinculadas à marcha neocolonialista em Ásia e África.


Figura 01
- Vista do Recife antigo por J. Moritz Rugendas (O Brasil de Freyre)
Fonte:
http://www.memorialpernambuco.com.br/memorial


Figura 02
- Moinho de cana-de-açúcar em Minas Gerais, por J. Moritz Rugendas
Fonte: www.terrabrasileira.net/.../oficios/engenho2.jpg

As influências de Freyre

Em 1887, emigra para os EUA o destacado professor e antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942). Tornou-se conhecido entre cientistas na América do Norte ao representar a Antropologia Cultural (4), inaugurando uma série de pesquisas inovadoras para as Ciências Sociais, sobretudo, com a pesquisa etnográfica de campo.

Boas, com suas idéias, tornou conhecido seu conceito denominadoetnocentrismo e a necessidade de estudar cada cultura singularmente em seus próprios termos. Se contrapôs aos evolucionistas (5), que compreendiam as culturas não-caucasianas (não-brancas) como inferiores. Conforme dissemos anteriormente, a invasão feita por países da Europa Ocidental nos continentes asiático e africano reforçaram o surgimento de teorias apoiadas na “lei do mais forte”, conceitos que visavam dominar política e culturalmente outros povos.

No Brasil, a influência desse debate chegou num momento em que as classes dominantes queriam livrar-se do passado escravista e da “mancha” negativa desse extrato social, criando justificativas econômicas e políticas para manter a exclusão de uma densa camada de ex-escravos negros, mestiços e indígenas configurando o cenário do país no início do século XX.

Autores como Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Oliveira Vianna (6), viam na mestiçagem e na herança cultural africana (de forma geral), males sociais ligados por cunho genético. Para a tal mentalidade burguesa e racista de então, o atraso da nação estaria relacionado à mistura racial. Claro, esses milhões de excluídos passavam a ser associados (e culpabilizados) aos problemas criados pela minoria abastada desde a formação colonial. Tipos físicos oriundos da mestiçagem resultariam em humanos defeituosos, com problemas de caráter. Ou seja, mulheres e homens biológica e socialmente inferiores.

Um dos poucos a se contrapor ao racismo hegemônico de seus contemporâneos, entre outros, foi Manoel Bomfim (1993) em seu A América Latina, Males de Origem (1905) (7). Critica duramente seus compatriotas ao afirmar que o maior entrave ao desenvolvimento da nação estava na herança escravista portuguesa, e não na miscigenação daí paralelamente originada. Bomfim acaba levando sua tese a todo o contexto latino-americano.

Gilberto Freyre desempenhou um papel fundamental ao romper em parte com essa literatura racista: traz a/o mestiço/a para uma situação de status. Enfatiza a influência africana da colonização como algo positivo, mas defende sua “submissão” dentro do projeto lusitano nos trópicos: a negra e o negro tiveram um papel importante na formação da nova raça, mas capitaneado pelo português aventureiro, plástico, cosmopolita, de espírito nômade, capaz de conciliar a Península Ibérica arabizada e africanizada nesta América Tropical que, por estas características, diferenciava-se de outros colonizadores europeus (REIS,1999).

Freyre, conhecido por sua visão anti-racista, evidentemente, não se separa totalmente dessas doutrinas preconceituosas. Em síntese, busca outro caminho na sua interpretação de Brasil antigo, nostálgico, onde as relações de dominação lusa não foram totalmente ruins ou benéficas, dissertando sobre um certo equilíbrio antagônico entre os gentílicos e escravos transladados para a costa americana:

O negro é, também, responsável pelo traço dionisíaco do caráter brasileiro; é ele que ameniza o apolíneo presente no ameríndio, marca tão patente em seus rituais. A dança, por exemplo, nos primeiros tem caráter sensual, enquanto nos segundos é puramente dramática. A alegria do africano contrabalançou o caráter melancólico do português e a tristeza do indígena. A alegria e a bondade do africano são em grande parte responsáveis pela doçura que marca as relações senhor/escravo no Brasil. (BASTOS, 2004, p.231)

Aqui, o autor defende a existência de uma explicação benéfica para a cultura escravagista no nordeste. Para ele, surgiu neste meandro de dominação uma estrutura permitindo certa “docilidade” entre colonizador e colonizado. Como o português era nostálgico, precisava de um Dionísio africano (alegre) e um Apolo índio (triste) – a medida certa de um novo tipo humano tropical – caracterizando sua tese de que essas três etnias se complementariam naturalmente.

O que fez, em certa medida, foi uma conciliação dos paradigmas intelectuais dominantes de seu tempo (no caso, os racistas clássicos do início do século XX). Precisava dar uma resposta enquanto representante regionalista, pensador, oriundo de um nordeste associado ao atraso e a velhas estruturas sociais diferentemente do sul-sudeste despontando como regiões promissoras ao surgimento de uma nova mentalidade sobre a História do Brasil (REIS, 1999).

Inevitavelmente, CG&S trouxe um debate necessário. Inserir o “mulato e o negro ao justo valor” implicava outro jeito de ser brasileiro/a: um retrato mais pitoresco e naturalista do cotidiano dos engenhos, com seus casarões de largos pavimentos e sua senzala indivisível na produção de cultura e sincretismo dos elementos indígena, africano e católico. Para Freyre o açoite associado à festa nos engenhos intermediou todas estas contradições (MEDEIROS, 1984).

Implicava-se criar outra imagem do país que pudesse figurar em âmbito geral, refletindo na mentalidade das elites e seu posicionamento em relação ao próprio povo. A imagem é a herança negativa da escravidão que preocupava o poder público, as instituições. A esfera governamental estava decidida a desenvolver um “plano” para tentar “limpar” a cara da nação de seus traços mais “desagradáveis” (REIS,1999).

Questões de contexto

Não devemos, seguramente, desvencilhar-nos de um panorama internacional, situando o Brasil na América Latina e, sobretudo, a relação de nossa burguesia com a Europa. Para Bomfim (1993), uma das poucas vozes a contrapor idéias sobre interpretações deletérias do imaginário europeu do início do século XIX, é pensar como os países ricos deste continente viam os movimentos de independência anti-colonialistas e a forma como essas relações refletiam no pensamento europeu de um modo geral:

(...) Não como de costume, sempre que se trata de repúblicas latino-americanas, os doutores e publicistas da política mundial se limitam a lavrar sentenças – invariáveis e condenatórias. A ouvi-los, não há salvação possível para tais nacionalidades. É, esta, uma opinião profundamente, absolutamente arraigada no ânimo dos governos, sociólogos e economistas europeus. Como variante a essas sentenças, eles se limitam a ditar, de tempos em tempos, uns tantos conselhos axiomáticos; mas os ditam da ponta dos lábios, no tom em que o mestre-escola repete ao aluno indisciplinado e relapso: “Se você me ouvisse, se não fosse um malandro, faria isto e mais isto e isto...; mas você não presta para nada!... Nunca será nada!... (BOMFIM, 1993, p.38)

Embora num tom mais generalista e de protesto, o autor perfila neste período histórico a dificuldade em opor essa visão etnocêntrica na qual se espelhavam nossas classes dominantes. Noutro âmbito, torna-se fundamental a reflexão marxista de Prado Junior (1998), numa compreensão econômica ao trazer a representatividade dos primeiros passos de uma economia propriamente nacional, voltada para si e às necessidades da população.

Desde a formação do país, não houve necessidade de guiar a populaçãorumo ao seu destino, independente dos interesses estrangeiros, germinando o condicionamento desfavorável ao mercado externo para uma cultura de produçãoe consumo, nos moldes de uma república capitalista moderna. Modelo que demorou a se instalar face a estagnação herdada pela antiga ordem escravocrata, fortemente arraigada no sistema do latifúndio monocultor. A crise mundial (1929) desencadeia no Brasil as conseqüências daquilo que assentava sua vida econômica de exportação:

Que grande futuro se pode esperar da produção de um gênero cuja situação é esta? O mais grave contudo é que a lavoura cafeeira no Brasil se achava em franca decadência. Sua produtividade e seus rendimentos declinavam, e em boa parte delas os custos (apesar dos ínfimos salários pagos) tendem a ultrapassar o nível de preços. Isso é repetição de uma velha história: já foi referido que em todas as zonas sucessivas em que se desenvolveu a cultura do café, a diminuição da produtividade seguiu de perto a fase da expansão (...). (PRADO, 1998, p.294)

Devemos entender a crise nacional/internacional do café em 1929/1930 como um grande embate, não apenas da economia do café agro-exportador, mas da estrutura fundiária vinculada ao trabalho manual. Ao ex-escravo passando a compor um trabalhador servil nas grandes propriedades de terra em diferentes regiões do país (8). A reflexão do historiador Caio Prado já apontava no fim da República Velha um modelo agrário que não atendia culturalmente ao crescimento de uma economia urbano-industrial.

De fato, não houve no estado brasileiro do século XIX uma tendência geral para o liberalismo burguês que, diferentemente do nosso modelo territorialista de expansão, caminhou a passos rápidos na porção hispano-americana. O liberalismo autonomista da América do Norte não influenciou a nobreza decadente ligada à Casa Real que, ao instalar-se na colônia, manteve uma obsessão pela unidade política: controlar os habitantes e centralizar o território afastando-nos da América Espanhola de tendências iluministas (WERNECK, 1975). Também para Fernandes (1975), o liberalismo burguês capitalista após a independência (1822) era um “destino a ser conquistado no futuro”.

Daí pensarmos que durante a República Velha (1889-1930), o estado oligárquico alimentava em sua vocação expansionista uma necessidade de incorporar “valores civilizacionais”, por assim dizer, para todos os habitantes deste novo país. Os “anti-sociais” (escravos africanos e indígenas) dessa configuração imaginária, politicamente determinista e excludente, apoiava-se no evolucionismo racial para gerenciar os rumos de um país “moderno”.

Aquele/a saindo do trabalho manual das lavouras e ocupando centros urbanos após a decadência do Império. Freyre conhecia bem as teses eugênicas discutidas na Europa (9) e não estava interessado numa adesão científica a tal xenofobia, mas cabia-lhe a função de reinterpretá-las e fazer jus aos derrotados políticos de 30 (10).

Por um lado parecia fácil, o autor não se considerava um acadêmico, ligado a universidades ou escolas profissionais (embora tenha influenciado o surgimento de muitas). Escrever um livro sobre a história do Brasil, enquanto intérprete do nordeste açucareiro pareceu uma grande oportunidade, como costumava dizer, “para sua vocação de pensador livre”. Aliás, como se referiu Darcy Ribeiro no prólogo à edição de CG&S na Biblioteca de Ayacucho, em Caracas, Venezuela:

(...) Sempre me intrigou, e me intriga ainda, que Gilberto Freyre sendo tão tacanhamente reacionário no plano político – em declaração recente chega a dizer que a censura de imprensa é, em geral, benéfica e que nos Estados Unidos a censura é mais rigorosa do que em qualquer outro país do mundo – tenha podido escrever esse livro generoso, tolerante, forte e belo. (RIBEIRO apud FREYRE, 2002, pp.11-12)

Seu estilo literário e ensaístico, de fato, parecia mediar o outro Freyre conservador, defensor da colonização portuguesa no plano cultural e, no plano político, do golpe de 1964 (11). Com a Ditadura Militar e sua nova configuração internacional, se exigia estratégias desenvolmentistas tardias como ensejo de instalar um capitalismo semi-industrial no Brasil (12).

Antes, devemos considerar esse monumento da literatura brasileira como um ideal de miscigenação. Paralelamente a tudo isso, tornou-se conferencista visitante em universidades mundo afora, contribuindo inclusive, para a consolidação das Ciências Sociais e quiçá, da Sociologia (13). No Brasil, influenciou historiadores, sociólogos e antropólogos no que concerne a pesquisa social.

Em 1956, por iniciativa do professor Henri Gouhier, da Sorbonne, Freyre foi objeto de seminário no Castelo de Cerisy (França). Roger Bastide, Jean Duvignaud e Georges Gurvitch, entre outros convidados, classificaram-no como um “dos maiores, senão o maior sociólogo moderno”. Vários de seus livros foram traduzidos para as línguas inglesa, francesa, polonesa, húngara, espanhola, italiana, alemã, sueca, norueguesa e japonesa (FREYRE, 2002).

Em 1946, é eleito deputado federal pelo Estado de Pernambuco, participando da Assembléia Constituinte, experiência da qual resultou o livro Quase política. Como deputado, apresenta em 1948, Projeto de Lei que, aprovado, cria o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Em 1951, sistematiza no Instituto de Goa (Índia) os fundamentos da Lusotropicologia. Tratava-se de uma tese que consistia em situar o homem dos trópicos numa abordagem interdisciplinar de cultura, o homem híbrido, tropical, provavelmente inspirada nos anos de pesquisa para CG&S.

Fato curioso é que após críticas ao seu pensamento, como as de Fernandes (1975), em poucos anos essa visão tropicológica do Brasil, por assim dizer, cai em desuso. É tida como discurso apologético à colonização portuguesa. A crítica que se segue a Freyre é de que estaria simpatizando com regimes colonialistas ainda presentes nas décadas de 40, 50 e 60 por países capitalistas ocidentais, como França, Espanha e Portugal.

Outras críticas acabam se desdobrando não apenas a Casa-grande & senzala, mas a outros textos do autor, como O mundo que o português criou(1940), Interpretação do Brasil (1947) e Novo mundo nos trópicos (1971), entre outros trabalhos. Segundo Bastos (2004), movimentos sociais e estudiosos das questões étnicas passaram a denunciar o caráter hipócrita da tese, uma vez que o mito se baseia na afirmação de que a ordem social é aberta a todos igualmente, forjando-se a crença de que existe harmonia entre estrutura social e a estrutura racial na sociedade brasileira.

Reflexão importante é a formulada por Sérgio Buarque de Holanda a respeito da impropriedade da extensão e interpretação acerca do patriarcalismo em outras regiões do Brasil e não apenas no nordeste do açúcar. Afirma que o autor pernambucano aplicou erroneamente os conceitos sociológicos de forma e conteúdo, desconhecendo a realidade histórica das diferenças regionais do país (BASTOS, 2004, pp.233-34).

Bem, temos um bom motivo para trazer não apenas críticas, mas enfatizar a importância deste livro para a literatura nacional, tendo em vista seu pioneirismo no que diz respeito à interpretação da formação de nossa sociedade. Hoje podem ser explicadas pelas influências das teorias sociais difundidas naquele momento, a obra de Freyre é um marco, um grande ensaio sobre as coisas do Brasil e seria bastante improvável dizer que não aprendemos um pouco sobre nós mesmos em CG&S.

Referências

BASTOS, Elide Rugai. Casa-grande & senzala. In: Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico/Lourenço Dantas Mota (Org.). São Paulo: Senac, 2004.

BOAS, Franz. Antropologia cultural. Celso Castro (Org.). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

BOMFIM, Manoel. A América Latina, males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.

DECCA, Edgar de. 1930, o silêncio dos vencidos: história e revolução. São Paulo: Brasiliense, 1994.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

FERNANDES, Florestan. Anotações sobre capitalismo agrário e mudança social no Brasil. In: Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2002.

______. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1967.

LEITE, Dante Moreira. Em busca do tempo perdido. In: O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, 1976.

MAGNOLI, Demétrio. História da paz. São Paulo: Contexto, 2002.

MEDEIROS, Maria Alice Aguiar. O elogio da dominação: relendo Casa-grande & senzala. São Paulo: Achiamé, 1984.

N’KRUMAH, Kwame. Neocolonialismo, último estágio do imperialismo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967.

PINTO, João Alberto da Costa. Gilberto Freyre: cultura e conflitos políticos em Pernambuco (1923-1945). Disponível em:www.nee.ueg.br/seer/index.php/revistaplurais/article/viewfile/67/92.

PRADO Junior, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1998.

______. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1999.

REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.

VIANNA, Oliveira. O occaso do império. São Paulo/Rio de Janeiro: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1925.

WERNECK, Luiz. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

Notas

(*) Historiador, professor e mestre em Ciências Sociais pela UFRN.

(1) Utilizaremos a abreviação CG&S para designar a obra de Freyre durante esse estudo.

(2) Teoricamente, esta seqüência aparece com Sobrados e Mucambos (1936), já explorando o fim da América Portuguesa e início do Brasil Colônia propriamente dito (séculos XVIII e XIX). Ver Freyre (1967).

(3) “... À memória de meus avós Francisca da Cunha Teixeira Mello, Alfredo da Silva Freire, Maria Raimunda da Rocha Wanderley e Ulysses Pernambucano de Mello”.

(4) A Antropologia Cultural desenvolveu-se com os estudos pioneiros de Franz Boas. A tradução no Brasil de alguns textos de Boas (2007) por Celso Castro é um valioso material para entendermos um pouco dos conceitos sobre raça e culturaformulados a partir de suas pesquisas de campo entre os Esquimós (norte do Canadá) e tribos no oeste dos Estados Unidos (Índios Pueblo). Já no século XIX, este antropólogo teuto-estadunidense foi um árduo crítico do evolucionismo científico em voga principalmente na Europa. O que Boas percebeu foi uma interpretação equivocada das idéias de Charles Darwin (1809-1882) quando publicou o seu A origem das espécies (1859). Os autores ocidentais colocavam no ápice do processo evolutivo a própria sociedade em que viviam, ou seja, europeus de maioria caucasiana.

(5) Suas teses aparecem nos trabalhos/textos principais entre livros que publicou, como Handbook of North American Languages (cujo primeiro volume é de 1911),The Mind of Primitive Man (1911, 2ª edição revista em 1938), Primitive Art (1927) e Anthropology and Modern Life (1928).

(6) Note-se, por exemplo, a fala de O. Vianna (1925): (...) Realmente, espírito publico nunca existiu no Brasil. Entre nós, a vida política foi sempre preoccupação e obra de uma minoria diminuta, de volume pequeníssimo em relação à massa da população (...). No Brasil, como observava Luiz Couty, não existe povo no sentido político da expressão. E um espírito irreverente exprimiu uma vez este mesmo pensamento, dizendo aqui “povo é uma reunião de homens, como uma porcada é uma reunião de porcos”.

(7) Pedagogo, escritor e pesquisador sergipano que traça um panorama do Brasil na América Latina a partir do perfil dos intelectuais que criticavam a mestiçagem, designando-a como um elemento degenerativo para a sociedade. O debate sobre “raças superiores” e “raças inferiores” estava pautado no ponto de vista do colonizador europeu. Bomfim negou a existência de povos atrasados e adiantados contrariando os antropossociólogos admitidos como mestres em seu tempo (Gobineau, Lapouge, Ammon, Chaberlain, Lombroso, etc.)

(8) A estrutura fundiária escravista estava atrelada à Lei de Terras (1850), promulgada durante o Império. No Vale do Paraíba, em São Paulo, antigos descendentes de sesmarias já estavam situados na região desde o século XIX. Famílias tradicionais como os Werneck e os Ribeiro foram grandes beneficiadas pelo repasse de terras quando de sua divisão entre as oligarquias rurais do sudeste. Ver Fausto (2008).

(9) Tal imperialismo estava acompanhado de pretextos e justificativas eugenistas, cientificistas, levando a uma política de expansão, domínio territorial, cultural e econômico, sobretudo em países de África e Ásia. A chamada “partilha da África” pelas nações imperialistas deu-se na Conferência de Berlim (15 de novembro de 1884 a 26 de fevereiro de 1885), tendo como participantes a maioria dos países da Europa Ocidental, EUA, Império Otomano e Áustria-Hungria (leste europeu). As teses racistas ganharam contorno de status científico em centros acadêmicos, onde se discutia a necessidade de guerras e ocupação colonial enquanto evolução racial. Ver N’krumah (1967) e Magnoli (2008).

(10) Um estudo mais detalhado pode ser encontrado na pesquisa de Edgar de Decca (1994) sobre a economia industrial no sudeste e sul após a chegada de Getúlio Vargas ao poder republicano no Brasil.

(11) O golpe civil-militar de 1964, que implantou a ditadura sob controle das Forças Armadas no país contou com o respaldo político de Gilberto Freyre. O escritor chegou a ser membro da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido conservador fundado em 1966 com o Ato Institucional n° 02 em face do bipartidarismo que determinou o fim do pluripartidarismo. Ver Fausto (2008).

(12) Do ponto de vista histórico, podemos analisar o chamado “Milagre Econômico” (1969-1973) durante o Governo de Emílio G. Médici. Período de crescimento da indústria nacional e paradoxalmente aumentou a concentração de riqueza, instalando um clima de euforia generalizada.

(13) Seus títulos honoríficos são extensos. Gilberto Freyre recebeu prêmios e honrarias de praticamente todos os centros universitários importantes de seu tempo. Na 46ª edição de CG&S (FREYRE,2002) encontra-se um bom percurso bibliográfico e profissional do autor recifense. Alguns prêmios notórios: Doutor Máximo (1962), Universidade de Coimbra (Portugal). Prêmio Anisfield-Wolf (1957), para a 2ª edição de Casa-grande & senzala. Doutor Honoris Causa (1965) concedido pelas Universidades de Münster (Alemanha), Sussex (Inglaterra) e Sorbonne (França).

(14) Uma das críticas mais duras a Freyre refere-se às suas relações diplomáticas com António de Oliveira Salazar (1889-1970), Premiê português com tendências e inspiração claramente fascistas, tendo apoiado os países do Eixo durante a 2ª Guerra Mundial (1939-1945), entre eles Alemanha, Itália e Japão. Enquanto nações africanas como Angola e Moçambique lutavam por sua independência política nos anos 60 e 70, Freyre recebia condecorações do militar português durante sua estadia em Portugal, à esta altura como divulgador de suas obras. PINTO, João Alberto da Costa. Ver www.nee.ueg.br/seer/index.php/revistaplurais/article/viewFile/67/92.

Fonte: