7.7.11

POBREZA COMO OBJETO HISTÓRICO: PROBLEMAS EMPÍRICOS E TEÓRICOS

Márcio Ezequiel*

Resumo. Este artigo aborda algumas questões concernentes ao tratamento teórico dado ao tema da pobreza em trabalhos historiográficos. A ambigüidade e a relatividade do termo pobreza e sua relação com antigos conceitos rediscutidos, como o de classe e o de representação, são alguns dos pontos enfocados.

Palavras chave. pobreza; teoria; historiografia

Poverty: a theoretical analysis

ABSTRACT. This article deals with the issues of the theoretical treatment given to the theme of poverty in historical writings. The ambiguity and relativity of the term poverty and its relationship with old concepts as those of class and representation here discussed constitute some of its focal points.

Key words: poverty, theory, historiography.

Procurar reduzir à simplicidade a multiplicidade das cousas obrigaria a confessar sua inadequação à complexidade dos problemas colocados e a renunciar ao esclarecimento de suas ambigüidades.

Michel Mollat. Os pobres na Idade Média.

1. Pobreza: objeto de pesquisa

Vários cientistas sociais têm se dedicado ao estudo do tema da pobreza. Sociólogos, antropólogos e historiadores produziram e produzem páginas e mais páginas de reflexão sobre a incômoda condição social, o que resulta em metodologias e em olhares diversos sobre o tema.

A própria definição de “pobreza” não é unívoca. Ora é homogeneizadora, ora revela a existência de distintas variações. Ao verificarmos o verbete “pobreza” em dicionários de sociologia, por exemplo, encontramos sua concepção mais geral baseada no sentido de carência – “…situação na qual pessoas carecem daquilo de que têm necessidade para viver” (Johnson, 1997: 176). Deparamo-nos, também, com assertivas que apontam a historicidade do referido termo, indicando um processo de resignificação semântica.

Historicamente, e no âmbito social, a pobreza sempre foi vista como a antítese da riqueza ou então como a separação entre ricos e pobres. Há um século, os termos opostos começaram a se transladar para o campo da chamada questão social, referente à relação mais ou menos conflitiva entre patrões e empregados.” (Silva, 1986:906)

Dessa forma, ao trabalhar com a pobreza, o pesquisador deve explicitar a que pobreza se refere, pois o período sobre o qual se debruça exerce influência no tratamento dado à matéria escolhida. Certamente a pobreza na Idade Média não tinha o mesmo sentido que passaria a ter após a Revolução Industrial, nem tampouco os pobres do Brasil colonial equiparar-se-iam aos operários do Brasil–república.

Além disso, sendo uma categoria relativa e ambígua, poderíamos incluir a pobreza na classificação social? Sabem os pobres que são pobres? Ou, direcionando à luz de nossa interrogação para o cenário histórico: conheciam-se os pobres enquanto tal? Percebiam-se como um grupo? Partindo de tais indagações, pretendemos destacar alguns pontos que circunscrevem a temática da pobreza enquanto objeto de estudo da História e como alguns historiadores a exploraram. Como já nos referimos, são inúmeros os trabalhos sobre o tema nas variadas áreas do conhecimento; extensão que não poderia ser menos ampla no campo da História.[2] Selecionamos quatro importantes títulos como base para iniciarmos uma reflexão sobre algumas questões empíricas e teóricas com as quais o historiador se depara ao analisar a pobreza.

Michel Mollat (Mollat, 1989) [3], examina o vocábulo pobreza e observa os limiares do infortúnio para destacar as ambigüidades da referida condição. Já o historiador polonês Bronislaw Geremek (1995), tem como objeto de estudo a literatura medieval enquanto construtora de um discurso próprio em torno dos tipos do “vagabundo”, do “vigarista” e do “mendigo”. Seu procedimento foi o de fazer “… um esboço das questões que podem ser consideradas elementos indispensáveis para uma interpretação histórica da imagem do pobre e do vagabundo” (Geremek, 1995:18). Laura de Mello e Souza (1982) parte da mineração levada a cabo pela administração colonial no Brasil do século XVIII, com o objetivo principal de compreender os processos que arrastaram muitos à marginalidade (termo relativizado pela autora), mediante a desclassificação social. Por fim, Catharina Lis e Hugo Soly (1984), explicam as causas do empobrecimento, as mudanças na composição social e as funções que cumpriram os diversos sistemas de assistência social como relacionados ao processo de desenvolvimento do capitalismo. Tais escolhas não foram fortuitas, tendo todos os trabalhos suas pesquisas situadas cronologicamente antes da hegemônica inserção do capitalismo como modo de produção ou, pelo menos, em seu processo de desenvolvimento. Justifica-se, assim, a discussão que faremos sobre a relação entre pobreza e classificação social, baseando-se em períodos da história em que a consciência de classe ainda não se havia definido.

Partindo dos textos supracitados, passaremos a refletir um pouco sobre a pobreza enquanto categoria analítica do estudo histórico. Sem a pretensão de encerrar a discussão, nossa intenção está assentada na possibilidade de unir alguns pontos para tracejar algumas linhas. Se conseguirmos visualizar um horizonte ou demarcar um ponto de fuga, teremos alcançado nosso propósito.

2. Pobreza: Um termo ambíguo

Expressão originalmente latina, a pobreza, de acordo com Michel Mollat, diversificou-se nas línguas vulgares a partir dos séculos XIII e XIV. Quando se fala em pobre, deve-se levar em conta que a função qualitativa da palavra precedeu o seu uso substantivo. A pessoa que é pobre, passa a ser um pobre. “A pobreza designa inicialmente a qualidade, depois a condição de uma pessoa de qualquer estado social atingida por uma carência.” (Mollat,1989:02). Devemos, ainda, tomar em consideração que os homens são sempre mais ou menos pobres que outros. Alguém pode ser pobre aos olhos de um empresário bem sucedido e rico ante um favelado. Trata-se de um termo relativo e polissêmico. Falamos em um indivíduo “pobre de espírito”, no “pobre diabo” e no “pobre de Cristo”.

A definição do pobre e de seu estado deve, portanto, ser ampla. O pobre é aquele que, de modo permanente ou temporário, encontra-se em situação de debilidade, dependência e humilhação, caracterizada pela privação dos meios, variáveis segundo as épocas e as sociedades, que garantem força e consideração social: dinheiro, relações, influência, poder, ciência, qualificação técnica, honorabilidade de nascimento, vigor físico, capacidade intelectual, liberdade e dignidade pessoais. (Mollat, 1989:05).

O fenômeno da pobreza é complexo, por isso o seu estudo não constitui tarefa simples, nem permite uma interpretação unívoca. Historiador consagrado no estudo do pauperismo, Bronislaw Geremek compartilha dessa opinião e coloca que “Em épocas diferentes, muda a função principal da imagem do pobre, altera-se a ordem dos valores em que ele está inscrito, modifica-se a avaliação ética e estética dessa personagem.” (Geremek, 1995:07). Ou ainda como colocam Lis e Soly: “…se tiene que subrayar que es imposible proporcionar una definición rigurosa de la pobreza que sea aceptable para cada siglo. Como se demostrará, el sentido concreto del concepto cambió de período a período e incluso de lugar a lugar.” (Lis e Soly, 1984:15).

Na busca de conceitos que pudessem instrumentalizar seu trabalho, Laura de Mello e Souza (1982:12) apresenta, igualmente, as ambigüidades inerentes. Descartando o uso do conceito de marginalidade devido a sua elasticidade e indefinição, coloca que os pobres e os mendigos podem ser considerados marginais numa dada sociedade, assim como os criminosos, as prostitutas, as feiticeiras, os indígenas, etc. também o podem na mesma sociedade ou em outras.

Nesse sentido, Mollat considera a pobreza como uma noção que se compõe de realidades sociais intrincadas e dinâmicas, sendo difícil a apreensão das relações entre o conceito e as situações vividas. Para ele é, preciso apreender as nuanças do primeiro, medindo também as segundas (Mollat, 1989: prólogo). Nas análises desse autor a respeito das lentas e profundas mudanças das noções que exprimem os termos concernentes à pobreza, o pobre aparece, primeiro, enquanto adjetivo; depois, como substantivo e, por último, na forma plural – os pobres – carregando o sentimento de piedade ou a inquietação social suscitada pelo elevado número dos desfavorecidos. Portanto, o termo “exprime uma abstração, evoca em um único termo a imagem do aflito, seu estado de aflição, uma carga afetiva de compaixão ou horror e todo um potencial de revolta e temor sociais.” (Mollat, 1989:02).

Para Laura de Mello e Souza, a Idade Média é um período especialmente elucidativo para quem estuda a pobreza, “pois foi em seu seio que se verificaram as grandes transformações que marcaram a concepção moderna da pobreza” (Souza, 1982:51). Primeiramente, o pobre era visto como pobre de Cristo, que vivia nas vilas e merecia ajuda dos mosteiros. No século XII, com mudanças estruturais, tais como: urbanização, transformações na economia monetária e na propriedade rural, em que o sistema feudal era solapado, a presença da pobreza passava a ser associada à cidade, cabendo ao poder público dar-lhes as esmolas. No século XIV, já eram em número demasiado elevado, tornando-se encargo oneroso ao Estado e à Igreja. O pobre laborioso dos séculos XIII e XIV era o camponês expropriado que, livre dos laços servis, almejava viver de seu trabalho, embora muitas vezes não o conseguisse (Souza, 1982:52).

O estudo da evolução das noções que estes termos carregam permite, segundo Mollat (1989:02), determinar a diversidade dos estados da pobreza, bem como resgatar as disposições de espírito e os comportamentos por eles suscitados. A multiplicidade de significados que pode carregar a palavra pobre nos dá uma idéia da dificuldade que acompanha o seu estudo. Geremek, embora trabalhando com literatura, sente a mesma dualidade: riqueza de fontes – dificuldade de síntese:

A série de representações literárias do mundo dos mendigos é abundante, abrange diversos horizontes lingüísticos, refere-se a meios bem diversos. Como documento histórico, no entanto, seu significado é ambivalente.” (Geremek, 1995:10).

A condição do pobre pode ser precisada por sinonímias ou antonímias. O pobre lavrador, agricultor, o que trabalha a terra com as mãos pela subsistência é um exemplo da sinonímia que, por vezes, há entre pauper e agricola ou laborator. Por outra análise, há as antonímias que situam o pobre diante do poder contrastante, tais como a força militar e a liberdade cívica. Despojamento, indigência e deficiência alimentar, deficiências físicas e mentais, reumatismos deformantes, orfandades, etc. são situações bem diversas alcunhadas com o mesmo vocábulo: pobreza. Ora lhe é adicionado um sentimento de compaixão (miserabilis persona), outras vezes de admiração – pobre de Cristo (pauper Christi). Do mesmo modo, a humildade do pobre (humilis) nem sempre é compreendida tal qual a virtude bíblica reservada a monges e a pobres voluntários por amor a Deus. “… a fraqueza do pequeno (impotens) avizinha-se da vulgaridade do rústico…” (Mollat, 1989:03). Com suas úlceras, sujo e nauseabundo, o pobre torna-se repugnante: “O pobre pode suscitar desprezo ou admiração, ser sinônimo de sublime baixeza, provocar compaixão ou escárnio.” (Geremek, 1995:07)

Obviamente não queremos considerar a ambigüidade e a relatividade como características particulares da pobreza, uma vez que estão presentes nos objetos históricos de um modo geral. Destacamos, porém, que tais matizes e versões do fenômeno também devem transparecer na sua conceituação, o que demanda um tratamento acurado do tema, que leve em conta desde as gradações mais tênues concernentes ao assunto até a seleção das fontes.

3. Pobreza, consciência e classificação social

No item anterior, destacamos a relatividade da pobreza. Qual seria, então, o parâmetro para que se defina um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, como pobre? Mollat procura identificar o ponto de ruptura, o limiar a partir do qual a precariedade se transforma em miséria, distinguindo pelo menos três limites: o limiar biológico, o econômico e o sociológico.

O limiar biológico é ultrapassado quando não se possui condições mínimas de saúde e de sobrevivência. Nesse caso, fatores como idade, vestuário, habitação e alimentação são determinantes, relacionando-se com aquelas noções léxicas, em parte já de domínio do senso-comum, apresentadas no início do texto. O limiar econômico, assentado nas possibilidades de abastecimento, está por sua vez relacionado com a troca, com a compra e com o valor real da moeda. Tal limiar é comprimido pela demanda fiscal que não poupa nem os mais precários recursos dos pobres: tributos senhoriais e clericais, dízimos, taxas urbanas, etc. Está ligado a situações conjunturais como a guerra, a fome e as crises econômicas em geral. Já a transposição do limiar sociológico cria, conforme o autor, a desclassificação. O camponês e o artesão medieval, sem suas ferramentas, eram destituídos de seu ofício, assim como o nobre sem cavalo e armas não tinha meios de existência social. (Mollat, 1989:06).

Como trabalhar com a pobreza, dissociando-a da “marginalidade” tal como é concebida (e engendrada) pela sociedade industrial, foi uma das questões com que Souza (1982:13) deparou-se. Como seu objeto de análise insere-se no período colonial ou, melhor dito, numa realidade histórica diversa daquela da industrialização capitalista, a autora optou pela utilização do conceito de classificação social, para o qual há como reverso, ou contraponto, a desclassificação.[4]

Trabalhar com a marginalidade e com a desclassificação social não significa ignorar a existência de uma estrutura, ainda que estamental. Só há desclassificado(s) em função da existência do(s) classificado(s) e, por conseguinte, da própria classificação social, infra-estrutural, de que a pobreza é o principal agente desclassificatório. Laura de Mello e Souza justifica, porém, sua posição exatamente pelo fato de a sociedade colonial apresentar-se em termos estamentais, em que o status e a honra são elementos de classificação. “O desclassificado social é um homem livre pobre – freqüentemente miserável -, o que, numa sociedade escravista, não chega a apresentar grandes vantagens com relação ao escravo.” (Souza, 1982:14).

Parece razoável, assim, que se fale de camponeses pobres, de servos pobres, de clérigos pobres e de cavalheiros pobres na Europa pré-industrial, todos pertencentes a ordens sociais distintas e em situação inferior a normalmente experimentada pelo seu estado. Tomando o inverso dessa assertiva, podemos ainda reconhecer a existência da desigualdade até mesmo no seio de uma pobreza que é partilhada por diferentes grupos (Mollat, 1989:02). Desclassificado, o pobre ficava só e sem vínculos. A estes enjeitados sociais Mollat (1989:07) acrescenta os potencialmente criminosos que, ao negar a família, o Estado, as leis e a sociedade, ingressavam na trilha da heresia, criminalidade ou da subversão.

A pobreza transcende, portanto, a circunscrição da classe social. Urge, primeiramente, que definamos o conceito de classe para tratarmos dessa questão e, para tanto, levaremos em consideração as análises de E.P.Thompson. O historiador britânico entende por classe o fenômeno histórico unificador de uma série de acontecimentos díspares que ocorrem efetivamente no âmbito das relações humanas (Thompson, 1963:09). Outro aspecto esclarecido por ele, e que nos parece importante ponderar, diz respeito à consciência de classe. Para Thompson (1963: 09-10), esta é a forma cultural das experiências que alguns homens partilham entre si na luta por seu sistema de valores contra outros homens com interesses diversos: “Class–consciousness is the way in which these experiences are handled in cultural terms: embodied in traditions, value–systems, ideas, and institutional forms.” (Thompson 1963:10). O conhecimento da exploração ou a necessidade de manter o poder sobre os explorados unem esses indivíduos em grupos antagônicos e a descoberta desse processo de luta é conhecida como consciência de classe (Thompson, 1984:37). Após esse breve esclarecimento teórico, voltemos à discussão central, refletindo sobre as seguintes questões: 1) os pobres reconheciam-se como tais? 2) antes de ocorrer organizações classistas – dotadas de consciência de classe, conforme explicado acima – os pobres poderiam unir-se em nome de causa própria?

Para Lis e Soly, os pobres, na alta idade média, não eram escravos, nem servos. Eram homens livres, o que demonstra que a pobreza estava espalhada nos diversos níveis da sociedade: “En la Alta Edad Media el concepto de pauper no entendía como un necesitado, esclavo ni siervo. Era um hombre libre, cuya libertad tenía que estar garantizada. La característica más importante del pauper era su dependencia,…” (Lis e Soly, 1984:37)

Havia tanto pobres trabalhadores assalariados como pobres vacantes sem terras que se deslocavam de um local a outro à procura de trabalho. Por vezes a pobreza teria até uma função místico–social. Por volta do século XIII, as esmolas constituíam uma espécie de contrato social através do qual os ricos garantiam seu lugar no paraíso, de modo que os pobres tinham a obrigação de permanecer em tal condição social.

¿No era así que Cristo, los apóstoles y San Francisco soportaron felizmente la pobreza? Por esta razón, viudas, enfermos, inválidos y mendigos que aceptaban su destino fueron considerados como elegidos de Dios, mientras que la pobreza de los obreros jornaleros mal pagados no se consideraba como tal. (Lis e Soly, 1984:39)

Segundo Mollat, os pobres da Idade Média não tinham consciência nem mesmo de sua força numérica. Motins de víveres eram inevitáveis em sociedades assoladas pela fome, entretanto, não passavam de movimentos espasmódicos: “Na realidade não houve movimento de ‘classe’ porque não havia ‘classes’…” (Mollat, 1989:18). A pobreza era considerada como permanente ou acidental, isto é, contra a qual nada se poderia fazer. Na mesma página, o autor ainda coloca: “Os problemas de estrutura não penetravam na carapaça das circunstâncias conjunturais.”

Se num primeiro momento a santificação da pobreza crucificava os miseráveis em um lugar subordinado da sociedade e sua situação fazia-se indispensável, a partir dos séculos XIV e XV, a exaltação do trabalho em nome da produção de bens materiais era o presságio de uma nova ética que se consolidaria na sociedade capitalista. A concepção da pobreza mudava tanto para ricos como para pobres. Para os primeiros, significava mendicidade e desordem; para os últimos, desigualdade e impotência para manter suas famílias, quitar suas dívidas e pagar seus impostos.

Revoltas populares contra os abastados eram reações às especulações decorrentes da escassez e manifestavam-se, muitas vezes, através de procissões e peregrinações conduzidas por profetas milenaristas (Mollat, 1989:27). “Com efeito, é dentro de uma perspectiva messiânica, mais que em uma luta de classes anacronicamente atribuída a homens estranhos a essa forma de consciência coletiva, que parece possível recolocar as esperanças irrealizadas dos pobres” (Mollat, 1989:82).

Os movimentos sociais de cunho milenarista dependiam de um profeta ou líder que unisse os descontentes. Seus reclames dificilmente eram para melhorar a sorte dos desfavorecidos, baseados em projetos limitados e reinvidicações específicas. Antes, almejavam o ilimitado que viria com um cataclismo, capaz de reformar e redimir o mundo.[5]Assim posto, entendemos a tese thompsoniana de que a classe e a consciência de classe são as últimas etapas de um processo cultural de organização dos subalternos. Em seu trabalho, Thompson fala de trabalhadores rurais pobres, artesãos pobres, tecelões pobres, etc. Se o pauperismo, portanto, transcende o âmbito da classe social fá-lo, contudo, sem apresentar-lhe oposição. A pobreza está contida na sociedade, inserindo-se sobretudo nos níveis mais baixos da estratificação social e no âmbito da desclassificação.

As ambigüidades que carregam o tema da pobreza devem ser consideradas, para Mollat (1989:08), em seus diversos desdobramentos. O pobre verdadeiro e insuspeito era aquele que permanecia membro de um grupo, vivendo com os escassos recursos de seu trabalho humilde. A suspeita recaía com maior freqüência para além do limiar sociológico. O errante, o mendigo, o desclassificado era realmente pobre? Não seria um rebelde, um disseminador da desordem ou propagador de epidemias? Dessa dualidade maniqueísta do “verdadeiro” e do “falso” pobre, devemos arrolar outros pontos que devem ser considerados ao lidar com a pobreza: como os pobres eram concebidos ou identificados em dado período histórico, por eles mesmos ou por outrem? A pobreza seria santificante ou pecadora? Virtude ou maldição? Na acepção positiva, caberia ainda indagar: virtude em si ou mediadora da perfeição? Já no sentido depreciativo, seria maldição por pecado pessoal ou parental? Individual ou coletivamente aplicada? Tais dicotomias evidenciam, como já nos referimos acima, a multiplicidade de nuanças com que o historiador se depara ao estudar o tema e nos indica que a concepção de pobreza, na história, é tão importante quanto as condições concretas de existência.

4. A representação da pobreza

A procissão do Santíssimo Sacramento do ano de 1733, em Vila Rica, tal como foi analisada por Laura de Mello e Souza, era um autêntico regozijo dos sentidos em que a comunidade mineira celebrava a si própria, “esfumaçando, na celebração do metal precioso, as diferenças sociais que separam os homens que buscam o ouro daqueles que usufruem de seu produto.” (Souza, 1982:21). Na década de 70 do mesmo século, teve início a derrocada deste áureo período e as festas barrocas carregavam a mensagem cifrada da riqueza que engendraria a pobreza, da opulência que se tornaria em miséria e do apogeu que redundaria em decadência. Partindo dessa colocação, passemos à análise da questão, atualmente tão em voga, da relação existente entre a concretude do passado histórico e as suas representações.

Para Souza, desde cedo, o ouro tinha a imagem de uma infundada riqueza. O fausto era falso e a riqueza imaginária do metal era intrinsecamente enganadora, servindo para enriquecer a poucos e destruir a muitos.[6] A autora resgata, a seguir, algumas racionalizações que, na época, estudada tinham por objetivo explicar o estado de coisas, justificando a pobreza. O contrabando, os métodos de extração, a falta de braços e a noção de praga bíblica[7], que considera uma riqueza achada com facilidade e sem trabalho como perniciosa, são algumas das explicações que emergiram no período. Souza ressalta que a percepção da decadência, para os homens do século XVIII, apresentava-se vaga e atemporal, “uma espécie de consciência difusa e carente de contornos” (Souza, 1982:32).

Como vimos anteriormente, a pobreza, para Michel Mollat, é, antes de tudo, uma noção, o que significa dizer que idéias e conceitos mudam ao longo do tempo de acordo com as necessidades de cada sociedade e a apropriação feita de tais concepções. Esclarece ainda Mollat que “… toda condição humana depende da maneira como é sentida e considerada por aqueles que a vivem e pelo meio em que vivem, a do pobre resulta das atitudes mentais dos próprios pobres e da sociedade que os circunda” (1989:289).

Segundo Roger Chartier (1990:21) – expoente da chamada Nova História Cultural – para que a relação com o passado seja inteligível, o historiador deve ter consciência “…da variabilidade e da pluralidade de compreensões (ou incompreensões) das representações do mundo social e natural propostas nas imagens e nos textos antigos.” Pensando em uma história cultural do social, Chartier (1990:19) afirma que seu objeto reside na compreensão das formas, dos motivos e das representações do mundo social que, à revelia dos atores sociais, traduzem seus interesses e descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse. Assim posto, os valores, as concepções de si e do mundo e o imaginário dos pobres devem ser inquiridos por serem constituintes do passado tanto quanto os dados quantificáveis. De acordo com Thompson, mesmo a história da classe operária está imbuída da faceta cultural: “The making of the working class is a fact of political and cultural, as much as of economic, history” (Thompson, 1963:194).

Lis e Soly pensam diferentemente sobre essa questão, o que se reflete em sua metodologia e, como veremos mais adiante, na escolha das fontes. Eles fazem a crítica de vários trabalhos que, a partir da década de 1960, deram mais importância ao sistema peculiar de valores dos pobres que às estruturas econômicas e políticas que originaram a desigualdade e a segregação sócio–cultural.[8]Assim, em seu trabalho, priorizaram a explicação estrutural, a partir do longo processo de transição para o modo de produção capitalista.

Mientras que algunos aspectos de la pobreza son puestos de relieve, otros obtienen un tratamiento periférico. Por ello, las mentalidades colectivas de los pobres se mencionan sólo en la medida que ayudan a explicar los cambios en la estructura de las relaciones de la apropiación de excedente y los temas como la cultura popular, rebeliones y criminalidad, por muy importantes que sean para el entendimiento de la sociedad preindustrial, reciben menos atención de la que se podría esperar. (Lis e Soly, 1984:14)

Assim, ainda que tratem de questões culturais sobre os pobres, tais como, “¿qué opinabam de sí mismos?” ou “¿eran conscientes de su infortunio común?”, sua ênfase recai em dados quantificáveis como “¿aumentó su numero a lo largo del tiempo?” (1984:15). A pobreza deve ser estudada, para tais autores, a partir da explicação do processo de empobrecimento, tendo por base fatores econômicos e demográficos. Portanto, no que se refere ao método adotado por Lis e Soly, sua intenção foi a de

…enfocar los fenómenos que se pueden medir y comparar objetivamente, especialmente la división de la riqueza, el número de los pobres ‘fiscales’ y aquellos que reciben asistencia, la cantidad y la calidad del promedio del consumo alimenticio per capita, migraciones, etc. (Lis e Soly, 1984:15)

Para o historiador das estruturas sociais, segundo Geremek (1995:16), conceitos como “burguesia”, “rico”, “mendigo”, “patrício” e “plebeu” são construções teóricas que servem de instrumento para pensar e ordenar os fatos, elaborando imagens sintéticas e penetrando nas divisões estruturais da sociedade. Já as obras literárias permitem o confronto dessas construções históricas com o quadro da consciência social da época estudada. Para o autor, a imagem dos grupos marginais na Idade Média era construída com base na noção estamental e hierárquica de organização, própria da estrutura social da época. A mendicância era tratada como profissão. Os miseráveis eram vistos como integrantes de uma organização corporativa. Sua composição hierárquica, linguagem específica, costumes e espaços diferenciados bastavam para sentenciar um Estado dentro do Estado, ou seja, um anti–Estado (Geremek, 1995:303-304).

Dessa forma, a periculosidade desses marginais era reforçada através da literatura que, conforme Geremek (1995:304), descrevia esses grupos como uma anti-sociedade e introduzia na consciência social um estereótipo da sua estranheza, que funcionava como um componente de comportamentos etnocêntricos ou xenófobos. Logo, ao refletirmos sobre a miséria e o crime na consciência social, não podemos ignorar a questão da relação entre a descrição literária e a realidade.

Essa relação, para o Bronislaw Geremek, não se dava em uma via única, da realidade para a representação literária. Tomava antes um sentido inverso. A propagação através da literatura das “técnicas de mendicância” fazia deste expediente uma verdadeira escola, sendo absorvidas pelas práticas sociais ( Geremek, 1995:306-307). De igual forma, a história de Robin Hood, por exemplo, aumentava o número de heróis–bandidos que desejavam minimizar as agruras provocadas pelo fosso da diferenciação social. A relação real–representação é, neste sentido, dialética e, por conseguinte, passível de ser manipulada. Laura de Mello e Souza faz menção a manipulação do imaginário social quando expõe o seguinte:

A sociedade era pobre, e creio poder dizer que as festas eufóricas do século XVIII tenham sido grandemente responsável por uma manipulação ‘autoritária’ da estrutura social na medida em que uma das visões possíveis da sociedade foi imposta como a visão da sociedade, a que mais acertadamente refletia a estrutura social – no caso, a visão de riqueza e de opulência. (Souza, 1982:26-27).

As alusões à pobreza das populações mineradoras representavam a tônica dominante dos documentos, oficiais ou não, do século XVIII. A autora considera, em vista disso, destoantes os dois textos citados em seu trabalho que descrevem as festas barrocas como paradigmas de abundância e de opulência. Eram, antes de tudo, um mecanismo de reforço numa inversão ideológica – expressão usada por ela – que almejava “à perpetuação de um estado de coisas que interessava tanto ao lado metropolitano, quanto à sociedade escravista colonial. (Souza, 1982:30). Novas problemáticas lançadas em temas tão antigos como a pobreza exigem um balanço da documentação histórica que permita não apenas conhecer novas vias como o trilhar de velhos caminhos banhados por nova luz.

5. Sobre as fontes

Pesquisando recenseamentos fiscais da Idade Média, Mollat(1989:09) expressa a dificuldade em se estabelecer a realidade social da miséria. Os isentos dos impostos ora figuravam sob a designação de “pobres”, ora como “pessoas que nada possuem”, etc. Além disso, o limiar fiscal que classificava os contribuintes variava até mesmo de uma cidade para outra. Assim, o autor entende que traduziam antes conjunturas políticas e econômicas.

Para Lis e Soly “... es evidente que las informaciones y los datos acerca de la repartición de la riqueza en la Edad Media son extremadamente escassos” (Lis e Soly, 1984:32). Baseiam seu trabalho, então, em diversos dados como censos, registros de impostos, registros de terras e registros eclesiásticos. Não queremos dizer que tais métodos sejam mais ou menos eficazes, ou que tais fontes sejam melhores ou piores. O importante a destacar aqui é que novas perguntas que contemplem as diversas faces da temática devem ser contempladas. Diante da escassez de material, Mollat coloca que é preciso recorrer a todo tipo de fonte, destacando igualmente as seriais e as específicas. “Por fontes, entendemos, aquilo que, escrito ou não – escrito, mas datável, pode informar sobre os pobres: documentos públicos ou privados, literários ou administrativos, econômicos ou religiosos, objetos materiais ou iconográficos.” Considera, também, o silêncio de textos que passam por alto a questão dos pobres, chamando atenção para o não–dito e para a indiferença como capazes de comportar dados de fato. Utilizou em seu trabalho, portanto, crônicas, textos legislativos, vidas de santos e sermões, buscando localizar os elementos de uma descrição das categorias de pobres e de suas condições de existência. Principalmente com os textos legislativos e religiosos, Mollat conseguiu “determinar os diferentes aspectos da pobreza, a nomenclatura que os diferencia e expor a compaixão e a repulsa sociais de que foram objeto. (Mollat , 1989:16)

Como fica evidente no título de seu trabalho – “Os filhos de Caim: vagabundos e miseráveis na literatura européia: 1400-1700” – as fontes utilizadas por Geremek situam–se no âmbito da produção literária. Esta é, como ressalta o autor, imprópria para informar sobre fatos e acontecimentos. Sua pertinência reside na potencialidade informativa para o resgate do imaginário, como um espelho da consciência social. A dificuldade se encontra na impossibilidade de averiguar o quanto dos elementos que serviram para o autor compor a obra literária resultam da observação direta da realidade ou, até mesmo, se tal observação ocorreu. Sua pesquisa recorreu, a fim de precisar suas colocações, a outras fontes além das que categorizamos como literárias. Um exemplo disso é a documentação “policial”, termo para o qual as aspas justificam-se pelo anacronismo que se comete ao aplicá-lo ao aparelho judicial medieval ( Geremek, 1995:42). Ainda que os fatos relatados na dita documentação fossem criação das autoridades, decorrência de falso testemunho ou, até mesmo, álibi dos acusados, seriam pelo menos fruto de observação e seu uso seria justificado pela verossimilhança, ou necessidade de corresponderem de forma convincente ao real.

Roger Chartier (1990:21) considera a “representação” como uma imagem presente de um objeto ausente. Em que medida, no entanto, as representações das práticas se aproximariam das práticas em si? Para a compreensão das “representações das práticas”, ele aponta a necessidade de investigação das “práticas de representação”, ou seja, o pesquisador deve indagar quais são as regras que mediaram a produção iconográfica e a produção textual, literária ou oficial (Chartier, 1994:140-141).

Com relação às fontes, Laura de Mello e Souza, por sua vez, coloca a dificuldade em procurar registros de uma sociedade na qual muitos eram analfabetos (Souza, 1982:15). Como e onde encontrar documentos escritos de mestiços miseráveis e forros recém egressos da escravidão? Fontes do período colonial como assentos de nascimentos, óbitos e casamentos são, além de raros, geralmente muito mal conservados. As fontes oficiais seriam um meio de resgatar dados sociais; receptáculos em potencial para a busca de fatores previamente não observados pelos pesquisadores que, durante décadas ou séculos, sobre eles se debruçaram, unicamente procurando dados administrativos ou políticos. Valendo-se desta premissa, foi que a autora trabalhou com a correspondência administrativa das autoridades. Sua consulta a levou igualmente a uma documentação que, apesar de menos abundante que a oficial, permitia entrever o modo de vida das camadas pobres. Tratam-se de fontes coletivas, como assentos de prisões, autos de querelas e de devassas, civis e eclesiásticas. Por fim, Souza utilizou as memórias publicadas entre os anos 80 do século XVIII e o início do XIX, e os escritos dos viajantes dos primeiros vinte anos deste último século citado. Ela coloca que neste período “… os viajantes traçaram o retrato trágico de homens miseráveis que vegetavam nas fímbrias do sistema, voltados para uma agricultura de subsistência mesquinha e esporádica que, muitas vezes, mal conseguia impedir com que morressem de fome” (Souza, 1982:71).

Para definir o perfil do pobre, Souza (1982:141) parte de dados quantificáveis, tais como: número de brancos, mestiços e negros; número de matrimônios, etc., dos quais depreende várias informações significativas. A superioridade numérica da população de cor, forra ou cativa, e os altos índices de uniões ilícitas (não celebradas em santo matrimônio) foram elementos que lhe guiaram na investigação e na caracterização de seu objeto de estudo. Isto demonstra a importância da quantidade assim como da qualidade na seleção das fontes.

Ignorar a procedência do material empírico seria uma obstrução ao refinamento do material que temos em vista. Para Michel Mollat (1989:72) “A maioria das fontes – tratados, sermões, literatura – dirigia-se aos ricos e poderosos ou emanava de seu meio.” Ele caracteriza a busca empreendida em sua pesquisa como seguidora dos rastros de “seres sem arquivos e freqüentemente sem rosto” (1989:287). Geremek (1995:10), por sua vez, considera o olhar que a literatura dirige ao meio da miséria semelhante ao interesse etnológico que há nas descrições feitas pela antropologia em relação aos homens diferentes e às curiosidades da natureza.

A questão que permanece é como estabelecer qual é a documentação (literatura) mais fidedigna para descrever a vida da gente comum. Geremek enfatiza que o historiador tem um ganho significativo na abrangência de suas análises se tomar em conta não apenas os grandes escritores como os pequenos. A literatura de cordel é mais anônima e menos marcada pelos traços criativos do autor de forma que “…corresponde melhor ao imaginário do povo e, por isso, é mais fiel como testemunho da consciência social e como registro da realidade apresentada” (Geremek, 1995:15). Em contrapartida, grandes autores como Rabelais e Shakespeare podem perfeitamente ser incluídos na literatura de massa, desde que se leve em conta a especificidade do significado próprio que atribuem à sociedade. O autor, eximindo-se de considerações a respeito do calibre artístico, considera tanto uns, quanto outros, como documentos da consciência social. O manusear da pena do historiador deve fixar, antes de tudo, as relações da literatura com a realidade, adequando-a à vida social.

As obras examinadas em Os Filhos de Caim inserem-se tanto no âmbito da cultura de elite, quanto na cultura de massa[9]. As construções da elite cultural sobre a vida marginal eram absorvidas pela elite social como respostas a sua necessidade de horrorizar-se diante do sujo e do desconhecido. Tal estranhamento servia para louvar seus valores e legitimar as normas vigentes através da inversão do discurso. A observação indireta dos que não se adequavam às tais normas lançavam-lhes ao julgamento conforme aqueles valores e, por vezes, à margem da sociedade. Quanto à massa, em que consistiria o seu interesse para com este tipo de literatura? O grande número de leitores e de ouvintes era atraído pela curiosidade que as imagens idealizadas exageradamente lhes despertavam (Geremek, 1995:303). Em última análise, o caráter das representações literárias do mundo dos miseráveis e dos vagabundos é comparada por Geremek (1995:302) ao trabalho do cartógrafo, que “define as distâncias, marca a posição, estabelece as coordenadas de localidades e países em que nunca esteve.” Do mesmo modo ocorre com os autores (literatos), uma vez que pretendem “picarizar”, conhecendo a vida rústica apenas de ouvir falar. Trata-se do olhar de fora para o que os autores/observadores não conheciam de fato, mas que, ainda que estigmatizado, remete-nos a uma interpretação possível de uma determinada época da história, que, portanto, era parte do real.

6. Conclusão

Tratando da pobreza como objeto histórico, pudemos observar algumas das variáveis que compõem a problemática de seu estudo. Deste modo, procuramos, no primeiro segmento, relativizar o conceito de pobreza demonstrando, através de suas ambigüidades que, assim como o termo não teve o mesmo significado ao longo da história, não devemos falar em “uma pobreza” em dado período, mas sim em “pobrezas”. A atenção para com a especifidade histórica diferencia o tratamento a ser dado ao tema daquele que é oferecido, por exemplo, pela sociologia. O elemento que está mal classificado na sociedade, em certo período, pode não o estar em outro momento. A enorme gama de categorias abarcada pelo conceito pode esvaziar-se de sentido na falta de um substrato comum que as una. Já no segundo ponto, buscamos ponderar como os pobres se viam e em que medida possuíam consciência de sua condição. Se num contexto estamental, como o medieval na Europa e o colonial no Brasil, os protagonistas da miséria viviam na conformidade de que sua situação era imutável, concordamos com a crítica que Souza faz à sentença de perenidade pronunciada por Mollat à natureza da pobreza.[10] A situação dos pobres não é imutável, assim como não era no passado. Esta discussão remete a outro ponto que abordamos no terceiro item: a relação concreto–imaginário, em que destacamos a dialética que há entre estas duas esferas do real.

Por último, tratamos da questão das fontes usadas pelos autores abordados para o resgate da história dos infortunados. Na certeza de que levamos em conta aspectos como a conceituação, a epistemologia e a metodologia, pensamos ter dado mais alguns passos na trilha proposta por Eric Hobsbawm quando manifestou o seguinte desejo: “…me gustaría devolver a los hombres del pasado y especialmente a los pobres del pasado, el don de la teoría” (Kaye,1989:208).

Bibliografia

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.

_____.Historia y prácticas culturales – entrevista a Roger Chartier. Entrepasados – Revista de Historia, Buenos Aires, Año IV, n. 7, 1994.

COHN, Norman. Na senda do milênio. Milenaristas revolucionários e anarquistas místicos na Idade Média. Lisboa: Presença, 1981.

FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec/Edufba, 1996.

GEREMEK, Bronislaw. Os filhos de Caim: vagabundos e miseráveis na literatura européia: 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Zahar , 1997.

KAYE, Harvey. Los historiadores marxistas británicos. Zaragoza: Prensas Universitarias, 1989.

LIS, Catharina, SOLY, Hugo. Pobreza y capitalismo en la Europa preindustrial. (1350-1850). Madri: Akal, 1984.

MOLLAT, Michel. Os pobres na idade média. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

MOURA, Ana Maria da Silva. Cocheiros e carroceiros: Homens livres no Rio de senhores e escravos. São Paulo: Hucitec, 1988.

OLIVEN, Ruben George. Urbanização e mudança social no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1982.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade; vida e trabalho-1880-1920. Porto Alegre: Edufrgs, 1994.

SILVA, Benedito. Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986.

SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

THOMPSON, E. P. The making of the english working class. New York: Vintage Books, 1963.

_____. Tradicción, revuelta y conciencia de clase. Barcelona: Critica, 1984.

TORRONTEGUY, Teófilo Otoni. Vasconcelos. As origens da pobreza no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.

VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza. São Paulo: Hucitec, 1987.




* Mestrando do PPG em História da UFRGS. E-Mail: mezequiel@cpovo.net

[2] Só no Brasil diversos pesquisadores têm se ocupado do tema, dos quais podemos citar Volpato, 1987; Moura, 1988; Torronteguy, 1994; Pesavento, 1994; Fraga Filho, 1996.

[3] Mollat, assim como Geremek, está entre os mais citados em trabalhos que versam sobre a pobreza, tendo publicado vários livros e artigos sobre o tema tais como: Etudes sur l’histoire de la pauvreté, Moyen Age-XVIe siècle (2 tomos, Paris, 1974). Escolhemos Les pauvres au moyen-âge (París, 1978) por ter sido publicado em português.

[4] Por outro lado, não podemos desconsiderar que, como coloca Ruben Oliven, a marginalidade não deve ser entendida como um fator imóvel e estanque que isole definitivamente qualquer grupo da sociedade que o exclui.

“…é difícil conceber como qualquer grupo que vive e tem contato com uma determinada sociedade pode realmente ser marginal a ela, deve-se considerar se o termo não é senão um outro eufemismo para a pobreza, ou pior, um rótulo que apresenta as classes subalternas como totalmente diferentes e portanto responsáveis pela sua própria situação.”(Oliven,1982:48)

[5] Sobre esta questão há também Cohn, 1981. O livro se ocupa do estudo dos messias dos pobres e dos movimentos messiânicos na Europa ocidental entre os séculos XI e XVI. As pessoas seduzidas pelo milenarismo revolucionário não eram camponeses firmemente integrados na vida da aldeia ou domínio senhorial, nem tampouco artesãos integrados nas corporações. Sua força estava nos camponeses pobres, jornaleiros sem qualificação e sob ameaça de desemprego, vagabundos e pedintes. Tratava-se da massa amorfa do povo, pobre e incapaz de arrumar uma coocação na sociedade.

[6] Estes dados encontram-se em Antonil: “cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas” – citado por Laura de Mello e Souza (1982: 33).

[7] Conforme se lê em Gênesis 3:19: “No suor do rosto comerás o teu pão…”

[8] Principalmente os baseados na concepção de uma cultura da pobreza, preconizada por Oscar Lewis, segundo a qual a pobreza se reproduz culturalmente de geração para geração.

[9] Sobre esta questão ver Gimzburg, 1987, em que o autor se refere, baseado na circularidade cultural proposta por Mikhail Bakhtin, à influência recíproca (de baixo para cima, assim como de cima para baixo) existente entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas na Europa pré-industrial.

[10] Sobre este ponto comparar Laura de Mello e Souza (1982: 13, nota 7) com Michel Mollat. Os pobres na Idade Média, última frase da obra, em que diz: “A misericórdia pode trocar de nome e de rosto; sua natureza continua sendo a Caridade, perene como a Pobreza.”

Fonte:

http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol02_atg4.htm