2.12.13

Uma República sem povo O historiador José Murilo de Carvalho explica como o novo regime se instalou sem a participação da população, contrariando uma tradição que remontava à Independência



por José Murilo de Carvalho


Proclamação da República, detalhe, óleo sobre tela, Benedito Calixto, 1893


A presença política do povo nas ruas tem sido uma constante na história brasileira desde a Independência, sobretudo nas ruas da antiga capital, o Rio de Janeiro. A começar pela própria Independência, que não se verificou nas remotas margens do Ipiranga, mas nas ruas da capital brasileira do Reino Unido. Basta dizer que a decisão de D. Pedro de permanecer no país (o “Fico”, de 9 de janeiro de 1821) se deveu à pressão de 8 mil assinaturas e foi seguida, dois dias depois, de um conflito com as tropas portuguesas rebeladas, quando cerca de 10 mil pessoas, muitas armadas, reunidas no Campo de Santana (hoje praça da República), ajudaram a devolvê-las a Portugal.

TURBULÊNCIAS NO IMPÉRIO Houve uma guerra de independência na Bahia e conflitos armados no Maranhão, Piauí e Pará. Durante o Primeiro Reinado, a agitação foi constante nas ruas da capital. Em Pernambuco, uma guerra civil separou a província do Império. Finalmente, D. Pedro I, alçado ao governo do país com a ajuda das ruas, foi despedido em 1831, também com o auxílio de uma multidão de cerca de 4 mil pessoas reunida novamente no Campo de Santana.

O período regencial (1831-1840) caracterizou-se, em todo o país, por uma sequência de revoltas com presença, ou mesmo protagonismo, popular. Poucas capitais ficaram livres desses movimentos, apesar de terem sido mais agressivos no Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Belém e Ouro Preto. Na segunda metade da década, as revoltas populares, às vezes em aliança com facções da elite, espalharam-se pelo interior do país em guerras sangrentas. Pará e Bahia chegaram a se separar do Brasil.

Nas revoltas rurais a presença do povo foi forte, com destaque para a Guerra dos Cabanos (Pernambuco e Alagoas, 1832-1835), a Balaiada (Maranhão, 1838-1841) e, sobretudo, a Cabanagem (Pará, 1835-1840). Nesta última, calcula-se que morreram cerca de 30 mil pessoas, 20% da população da província.

D. Pedro I foi elevado e deposto com a presença do povo na rua. Seu filho, D. Pedro II, foi aclamado sucessor no Campo de Santana em 1831 e subiu ao trono em 1840, com 14 anos incompletos, num golpe de Estado que contou também com o apoio da população do Rio de Janeiro.

REVOLTAS No Segundo Reinado (1840-1889), criou-se um arranjo estável entre as elites avalizado pelo Poder Moderador exercido por D. Pedro II. Sem conflitos entre grupos da elite, reduziram-se também as oportunidades para as revoltas populares. O povo passou a manifestar-se, sobretudo, contra medidas do governo consideradas prejudiciais a seus interesses ou ofensivas a seus valores. Dessa natureza foram, por exemplo, as revoltas contra o recenseamento obrigatório e o registro civil dos nascimentos em 1851-1852, contra o recrutamento militar, desde o início da Guerra da Tríplice Aliança até a década de 1880, contra a introdução do sistema métrico, o Quebra-quilos, em 1874, contra o imposto de 20 réis sobre as passagens dos bondes em 1879-1880. As manifestações contra o recrutamento militar tiveram a particularidade de serem lideradas por mulheres, o primeiro exemplo de ação política coletiva delas em nossa história. No Rio de Janeiro, a Revolta do Vintém foi a mais próxima cronologicamente da proclamação da República. Multidão de até 5 mil pessoas, encorajada por líderes republicanos, como Lopes Trovão, foi a São Cristóvão para falar ao imperador. Impedidos pela polícia, os manifestantes voltaram a se manifestar quatro dias depois no centro, quando a reação da polícia levou a multidão a depredar bondes, arrancar trilhos e fazer barricadas, deixando nas ruas alguns mortos.

Ainda antes da proclamação, o movimento abolicionista reuniu povo, intelectuais e políticos. A campanha foi feita nos teatros, nas ruas, nas escolas, nas fazendas. Multidões acompanharam na Câmara e no Senado a votação final do projeto e festejaram nas ruas a Lei Áurea.
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Fonte: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/uma_republica_sem_povo.html