13.3.19

A Fé e a Razão: São Paulo no Areópago


Nos começos evangélicos do cristianismo, São Paulo decidiu tentar convencer os atenienses das certezas da nova fé que encarnara. Para tanto apresentou-se no areópago da cidade para travar um encontro com os intelectuais de Atenas. Quis seduzir os veneráveis homens de pensamento, herdeiros das escolas platônica e aristotélica, com as proféticas mensagens de Cristo e sua certeza no advento do Reino dos Céus. Foi o primeiro embate entre a fé cristã e a razão pagã que se tem registro, embate que iria se prolongar por séculos, mesmo depois do desaparecimento do antigo mundo pagão.



Foto: Reprodução

Atenas nos tempos de Paulo


O apóstolo Paulo, navegando pelo mar de Beréia, na Macedônia, chegara em Atenas adiantando em dois dias aos que o seguiam. Enquanto punha-se na espera de Silas e Timóteo, seus companheiros de evangelização, resolveu andarilhar pela cidade de cima a baixo, não recuando nem frente às estreitas e suspeitas vielas da outrora capital do mundo helênico. Quando ele apontou por lá (as datas divergem, variando entre os anos de 49 e 54), muito do antigo fausto da cidade de Péricles se fora. Mesmo os romanos, seus ocupantes, tendo-a tratado com respeito, fazendo dela um centro de referência para a elite política e intelectual do império (lá estiveram peregrinação Sila, Pompeu, César, Marco Antônio, Agripa, Cícero, Virgílio, e tantos outros mais), não puderam evitar os sinais de abandono e decadência que tomavam conta dos seus lugares públicos, dos seus templos e monumentos. Ficara-lhe, porém, um ar de pompa, apesar da grandeza passada ter sido devorada pelo tempo e pelas insânias das guerras intestinas travadas entre os gregos.

Paulo, como consta no Ato dos Apóstolos (At,17), andou proselitando por lá na única sinagoga existente na cidade. Parece ter comovido poucos. Depois, correndo a noticia da sua chegada, alguns filósofos, supõe-se que estóicos e epicuristas, teriam manifestado o desejo, simples curiosidade, de conhecer o evangelista mais de perto, pois, “os atenienses, com efeito, e também os estrangeiros aí residentes, não se entretinham com outra coisa senão em dizer, ou ouvir, as últimas novidades”. Quais seriam suas idéias, e o que vinha aquele pregador da Judéia anunciar que eles de antemão já não soubessem? Nada ouviram falar dele, mas a cidade há séculos estivera com suas portas abertas para todo e qualquer tipo de pensamento. Atitude, aliás, acerbamente reprovada por Sócrates e seu discípulo Platão. Mas Atenas era assim, um bazar da filosofia e das mais diversas excentricidades.

O Supremo Tribunal Sagrado

O areópago ocupava um lugar especial na geografia da cidade e no coração dos atenienses. Creditavam-lhe uma fundação divina. Ninguém menos do que a deusa Atena, a deusa protetora da cidade, escolhera os seus primeiros juizes, “atados por um grande juramento” compondo “um augusto tribunal”, tornado por ela perpétuo. A razão lendária da formação daquela primeira corte de justiça foi a necessidade de julgar Orestes pelo terrível crime do matricidio. Ésquilo, que venceu o concurso trágico de 458 a.C. com sua trilogia sobre o sangrento drama que quase dizimou a família dos Átridas (A Orestéia), deixou-nos descritos os preâmbulos que antecederam o lançamento mítico dos alicerces daquela instituição magnifica. Fôra lá, pois, que, por primeiro, o filho e vingador de Agamemnon defendeu-se, com sucesso, perante um júri de homens e deuses.


Sócrates (470-399 a.C.) foi julgado no areópagoFoto: Reprodução


Bem mais tarde, fugindo do império das lendas, o filósofo Sócrates também foi chamado às barras da corte sagrada, em 399 a.C., quando Anito, um democrata radical, responsabilizou-o publicamente como corruptor da juventude, além de, costumeiramente, destilar dúvidas sobre a eficácia dos deuses da cidade. Sócrates como se sabe, foi condenado à morte pela cicuta. Rejeitando o apelo de vários dos seus discípulos, Platão entre eles, negou-se a escapar da prisão, bebendo na presença deles o pote amargo do veneno oficial.

Também foi no areópago que o grande orador Demóstenes apresentou sua defesa, provavelmente em 324 a.C., da acusação de ter recebido um suborno de 20 talentos das mãos de um malversador para deixá-lo escapar de Atenas, onde se exilara. Sua poderosa verve, entretanto, não impediu que o multassem e, em seguida, o levassem preso dali mesmo.

Agora chegara a vez de Paulo adentrar naquele venerável recinto. Não viera arrastado como um réu. O areópago, aquelas alturas, serviu-lhe como tribuna e não como tribunal, e aqueles que o assistiram, entre eles um número razoável de filósofos, se faziam presentes por interesse intelectual, por novidadeiros que eram, e não para fazer bom ou mau juízo de ninguém.


São Paulo aparamentado como bispoFoto: Reprodução

Ao Deus desconhecido

“Sendo de origem divina, não devemos imaginar nunca que a divindade se assemelha ao ouro, à prata, esculpida pela arte e pelo gênio do homem”

S.Paulo - Atos dos Apóstolos

A exposição paulina foi curta. Disse à platéia dos aeropagitas que considerava os atenienses o povo mais religioso do mundo porque, quando visitava a cidade, em meio a incontáveis estátuas de deuses, encontrara uma inscrição singular que lhe chamara a atenção: “ao Deus Desconhecido”, dizia ela. Naquela cidade até um deus que ninguém sabia quem era, ou quem fosse, era digno de veneração! A existência desse deus abstrato entre tantos outros cultuados, mostrara a Paulo ter o nascente cristianismo um ponto em comum com os atenienses, pois o Deus que ele pregava “não habita em templo feito por mão humana” e, igualmente, “não é servido por mãos humanas”. Era, pois, também um “Deus desconhecido”, que paira sobre tudo e esta acima de tudo. Um colosso desses não precisa de templos. Por isto mesmo, observou Paulo, o verdadeiro templo dele é formado por seus fiéis seguidores. Fora Ele quem fizera o homem original de onde todo o resto provém, fixando os tempos e os limites da sua habitação. Disto procede sermos uma raça divina, trazendo em nosso interior o sopro divino. Um Senhor assim, tão magnifico, não pode ser seduzido por ouro, prata, ou ser reproduzido em pedra, ou qualquer outra matéria esculpida pelo engenho humano.

Aliás, foram tais reproduções dos deuses, aquela compulsão idolátrica que, espalhando-se por toda a parte, causaram repugnância a Deus. Por isso ele pede a todos, em todos os lugares onde pregava que se arrependam, pois Ele já fixara o dia em que julgaria o mundo com justiça. E para anunciar a chegada desse Juízo Final, Deus designara um Homem, a quem, para dar-lhe crédito diante de todos, fizera ressuscitar dentre os mortos.

Ao concluir a peroração com a “Anastasis de Jesus”, a concepção de um salvador que morrera e voltara a viver para dar veracidade a mensagem divina, os filósofos presentes fizeram-lhe mofa, concluindo que o que ouviram, “em mau grego”, era coisa de um spermologos, de um tonto.


Exortação frente aos sábiosFoto: Reprodução


O desacordo com os filósofos

O paganismo helênico quase sempre tivera um convívio pacífico com a filosofia. O politeísmo que lhe era inerente, e as práticas litúrgicas limitadas aos muros das cidades-estado, de certa forma, impediram a existência de uma casta sacerdotal poderosa que tentasse rivalizar ou mesmo banir as escolas de filosofia, como posteriormente iria ocorrer com o surgimento do clero cristão (o imperador bizantino Justiniano fechou-as em 524, a pedido dos padres).

Tanto é que as crenças não os ameaçavam que a maioria dos filósofos via como sua adversária deles a poesia e não a religião, como no conhecido caso de Platão (A República). Pode-se assim dizer que foi a emergência do cristianismo (principalmente depois da sua ascensão como religião oficial do império, a partir do século IV), quem encerrou-se a longa coexistência pacífica entre a fé e a razão.

Logo, a defesa de Paulo do monoteísmo pareceu-lhes razoável. Era mais uma entre tantas outras. Igualmente, não lhes era em absoluto desconhecida a concepção de um origem comum a toda a humanidade, afinal isso já fora defendido pelos estóicos e por muitos outros pensadores cosmopolitas. Para Aristóteles, porém, morto quatro séculos antes, certamente que essa não seria uma doutrina a ser vista com simpatia.

O estagirita, como se sabe, reprovou seu discípulo Alexandre, o Grande, por ter, à época da conquista do Império Aquemênida, organizado uma série de casamentos coletivos entre a sua oficialidade, quase todas de origem grega, com mulheres persas, um povo que o pensador considerado bárbaro, vocacionado à submissão. Achava que o sangue grego seria maculado! A separação de uma humanidade em helenos e bárbaros, que pautou boa parte das obras literárias, filosóficas e históricas (ver Heródoto), não conduzia a uma aceitação fácil pelos gregos de todos terem um demiurgo ou um ancestral em comum. Mas não lhes repugnava de todo. Quanto a seremos todos nós divinos ou parte do divino, bastava ver a estatuária religiosa grega: todas as figuras veneradas, fossem Apolo, Afrodite, Atena ou Zeus, eram esculpidas em forma humana.

Estranhavam, isso sim, a possibilidade de vir ocorrer o Dia do Juízo Final, um momento previsivelmente terrível, no qual todos seriam postos frente às barras de um tribunal divino, aparentemente sem apelações ou protelações, de onde poderiam ser levados a cumprir penas por delitos capitais que não tinham a mínima consciência de haver praticado. A perspectiva de um futuro com tal fim cataclismático, no qual um Deus Todo-poderoso imporia uma Corte sumária, selecionando as desgraçadas almas segundo um critério de difícil entendimento, misterioso, era de petrificar qualquer um. Como poderia viver-se com essa perspectiva?

O que, como se sabe, mais lhes provocou a repulsa foi a idéia da anastasis, a possibilidade da ressurreição. Platão defendera sempre, com veemência e brilho, a concepção da transmigração da alma: o ir e vir da psique, que, desprendida de um corpo morto, alcançava o etéreo e, de lá, purificada e desmemoriada, encarnava-se num outro corpo recém-nascido. Mas isso de um corpo morrer e renascer era inaceitável. Mesmo que, como assegurou Paulo, o dileto fosse o Salvador, o filho do Todo-poderoso.

A linguagem da cruz e a do saber

Paulo abateu-se com o fracasso. Aparentemente tivera esmero e cuidado com o discurso. Era, afinal, uma estupenda síntese da concepção cristã. Não quis parecer frente aquela elite do mundo pagão como um fanático, um desses alucinados de Deus. Escolheu bem as palavras. Conteve-se. Malogrou. Seguindo logo depois para Corinto, supõe-se que a pé, como sempre o fazia, Paulo deve ter refletido sobre os erros cometidos. Falara à razão, ao cérebro da platéia. Não era esse o caminho a seguir. Na primeira parte da Epístola aos Coríntios, escrita uns três ou quatro anos depois, ele responde aos que dele fizeram pouco.

Compreendia que o Evangelho, a boa nova que ele trazia, poderia parecer loucura a quem ouvisse, a quem era indiferente ser ou não salvo. Mas era música para os ouvidos de um crente. A linguagem da cruz era diferente da linguagem da sabedoria. E não só isso, Deus, ao escolher como seu enviado um menino pobre, nascido numa manjedoura em Belém na Judéia, que mais tarde ao crescer fôra marceneiro de profissão, já estabelecera por si só quem deveria ser o público ser atingido pelo seu Verbo. Quisesse Ele um outro para servir-lhe como Hermes, teria nomeado um peripatético, ou uma eminência da academia.

Além disso “Deus não tornou louca a sabedoria deste século?” Não estavam os pensadores pagãos todos eles exauridos? Definitivamente Deus não escalara a filosofia como o veículo da conversão. Lembrou-se então das estrofes que os cristãos de então atribuíam ao Senhor:

Destruirei a sabedoria dos sábios / e rejeitarei a inteligência dos inteligentes / Onde está o sábio? Onde está o homem culto?

Logo, o horizonte apontava para a necessidade de uma outra linguagem, uma outra sabedoria: a Linguagem da Cruz, resultante da fé e não da razão. E foi assim, depois de um rotundo fracasso no areópago de Atenas, que o apostolo Paulo abriu caminho para a hegemonia futura do Sacerdotes sobre os Filósofos, da Emoção e da Fé sobre a Razão, a vitória da Jerusalém teocrática sobre a Roma estatocrática, da Cidade de Deus sobre a Cidade do Homem, do Cristianismo sobre o Paganismo, que iria se concretizar a partir do século IV, na época dos imperadores Constantino e Teodósio.

A Linguagem da Cruz e a da Sabedoria
A LINGUAGEM DA CRUZ A LINGUAGEM DA SABEDORIA


Aquela dos evangelistas, a fala dos simples dirigida aos simples, aos humildes, que não pertencem às famílias poderosas e de prestígio. Procura a conversão despertando-lhes a emoção, a sensibilidade pelo maravilhoso. Ela procura atingir diretamente o coração daqueles que pretende converter, não seu cérebro.

Dirige-se aos puros, aos que ainda não foram maculados pelas inquietações e desconfianças da razão. É a linguagem da Paixão, não a da Razão. Ela evoca uma sabedoria que não é a deste mundo, e sim a de um outro mundo, misterioso, oculto.

Aquela dos filósofos, dos sábios, dos homens de letras, dos inteligentes. Caracteriza-se pela necessidade de uma demorada iniciação para chegar-se a sua compreensão. Logo, é uma linguagem para poucos, para círculos seletos de discípulos escolhidos por critérios exigentes.

Ela procura a precisão e a isenção objetiva das coisas. Afasta-se ao máximo da emoção e do sentimento e exalta a eficácia da Razão. A sua sabedoria é voltada basicamente para as coisas deste mundo, considerando todo o resto, mitologia, lenda ou superstição.


Etapas da evolução e organização da Igreja nos seus primeiros tempos
ETAPAS ANOS ÉPOCAS
1ª 30-43 Chamada Época da Comunidade Primitiva, centrada em Jerusalém: predomínio dos 12 apóstolos escolhidos por Jesus Cristo
2ª 43-65 Época Apostólica: disseminação do evangelho pelos apóstolos e outros auxiliares (enviados, missionários, profetas, mestres e doutores), procurando, depois do Concilio de Jerusalém, alcançar os gentios. Predomínio de São Paulo
3ª 65-95

Época dos Evangelizadores e Pastores: Difusão e consolidação das comunidades cristãs, fixação dos bispados de configuração monárquica (o bispo é a autoridade). Estrutura da Igreja ampliada com os presbíteros (auxiliares dos bispos) e com os diáconos (encarregados da assistência e da caridade)

Fonte: Andrea Dué - Atlas histórico do Cristianismo, Vozes, 1999, pag. 27


Fonte: Especial para Terra
Voltaire Schilling