por
George Dvorsky
Os neandertais cuidavam daqueles que estavam doentes e feridos. Uma nova pesquisa sugere que esse comportamento, que é bem documentado por especialistas, foi mais do que um fenômeno cultural ou uma expressão de compaixão — ele realmente os ajudou a sobreviverem.
Para suportar as duras condições da Europa em uma era do gelo, os neandertais adotaram várias estratégias, incluindo a caça em grupo, a paternidade colaborativa e o compartilhamento de alimentos. Uma nova pesquisa publicada na Quaternary Science Reviews acrescenta um outro truque ao guia de sobrevivência dos neandertais: os cuidados com a saúde.
“Argumentamos que, ao invés de ser simplesmente um traço cultural, os cuidados médicos podem ser vistos como parte de várias adaptações que permitiram aos neandertais sobreviver em ambientes únicos, onde viviam ao lado de grandes predadores carnívoros e eram frequentemente dependentes de grandes [mamíferos]… como um grande fonte de alimento”, escreveram os autores, liderados por Penny Spikins, da Universidade de York, em seu novo estudo. “Além disso, os cuidados com a saúde podem ter sido um fator significativo para permitir que os neandertais ocupassem um nicho predatório que, de outra forma, não estaria disponível para eles.”
De fato, os neandertais viveram na Europa da era do gelo por centenas de milhares de anos, então, obviamente, alguma coisa eles fizeram certo. É fácil se prender à sua extinção, um processo que começou cerca de 40 mil anos atrás, mas existe muito mais a se falar sobre os neandertais do que apenas o seu fim. Sua história é de sobrevivência.
Não é segredo para ninguém que os neandertais praticavam cuidados médicos. E isso também não é surpresa alguma, afinal, eles enfrentaram todos os tipos de ameaças, incluindo as de animais grandes e perigosos. Os neandertais também eram caçadores proficientes, e essa era uma prática que apresentava riscos consideráveis. Para os neandertais, as lesões faziam parte da vida cotidiana. Mas, em vez de negligenciar os feridos ou vê-los como um fardo a ser descartado, eles praticavam cuidados médicos.
“Temos evidências de cuidados com a saúde que datam de 1,6 milhão de anos atrás, mas achamos que provavelmente vai muito além disso”, disse Spikins em um comunicado de imprensa. “Queríamos investigar se os cuidados de saúde entre os neandertais eram mais do que uma prática cultural. Foi algo que eles simplesmente faziam ou foi algo mais fundamental para suas estratégias de sobrevivência?”
As provas coletadas por Spikins e seus colegas sugerem que essas práticas foram benéficas para o grupo como um todo e, consequentemente, uma importante adaptação evolutiva.
Para o estudo, os pesquisadores analisaram os restos de esqueleto de 30 indivíduos neandertais anteriormente descobertos. Esses espécimes exibem feridas que variam de leves a graves, mas cada um desses indivíduos conseguiu sobreviver a seus ferimentos (os paleontólogos conseguem distinguir visualmente quando um osso quebrado ou uma fratura estão cicatrizados). Em muitos desses casos, os pesquisadores dizem que é altamente improvável que o indivíduo tenha sobrevivido sem ajuda, além de afirmarem que um sistema desenvolvido de cuidados com a saúde deve ter sido implementado.
“O alto nível de lesão e recuperação de condições sérias, como uma perna quebrada, sugere que outros devem ter colaborado em seu cuidado, ajudando não apenas a aliviar a dor, mas lutando por sua sobrevivência de modo que eles pudessem recobrar a saúde e participar ativamente do grupo de novo”, disse Spikins.
Um excelente exemplo de um indivíduo se beneficiando dos cuidados dos neandertais é o espécime Shanidar I. Esse indivíduo viveu além dos 40 anos de idade (o que é bem velho para os padrões do Paleolítico), apesar de não ter a mão e o antebraço direitos e de ter uma perna gravemente ferida, cegueira em um olho e, provavelmente, surdez. Esse indivíduo não teria sobrevivido sem cuidado diário e sem gente lhe provendo comida.
“Períodos prolongados de cuidado interpessoal, apesar da falta de qualquer benefício econômico geral para tal cuidado, também são claramente evidentes em outros casos”, escrevem os autores do estudo, apontando para o indivíduo La Chapelle aux Saints I, que sobreviveu com várias doenças debilitantes, como osteoartrite e sinais extensos de doença. Muitos dos outros exemplos apresentados no estudo são tão impressionantes quanto.
Para tratar seus feridos, os neandertais provavelmente empregaram uma série de estratégias, dependendo da natureza e da gravidade da lesão. Machucados muito graves, como uma perna quebrada, exigiam controle da febre, manutenção da higiene, reposicionamento de ossos quebrados e, em alguns casos, a limitação da perda de sangue. Então, sim, os tratamentos foram bastante sofisticados.
“Os neandertais parecem também ter sido especialistas em prestar cuidados médicos colaborativos”, escrevem os autores no estudo. “Além disso, as evidências arqueológicas visíveis provavelmente são ‘só a ponta do iceberg’ de práticas de cuidados médicos mais comuns, cuja maioria segue invisível à interpretação arqueológica.”
Como suas primas humanas modernas, as mães neandertais corriam risco de ter partos difíceis, devido ao formato da pélvis e ao tamanho da cabeça do bebê. Portanto, é “provável que elas tenham tido parto assistido”, disse Spikins, “um papel que agora atribuímos às parteiras”, acrescentando que, “sem apoio, elas provavelmente não conseguiriam ter sobrevivido ao custo que a taxa de mortalidade de mães e bebês poderia ter tido sobre suas comunidades”.
Tratar os doentes e feridos e ajudar as mães durante o parto requer muito tempo e energia, mas, para os neandertais, tudo isso era uma necessidade. Como viviam em pequenos grupos, a perda de um único indivíduo poderia ser catastrófica. Tratar vários membros do grupo gravemente feridos era uma questão de sobrevivência geral. Isso não quer dizer que os neandertais não agiam por compaixão — é bem provável que o fizessem. O que os pesquisadores estão dizendo é que esses cuidados serviam a um propósito pragmático e abrangente que ajudou o grupo a sobreviver como um todo e, por extensão, ajudou toda a espécie a sobreviver.
Portanto, prestar cuidados médicos “foi não só uma adaptação evolucionária mais significativa do que se reconhecia anteriormente”, escrevem os autores, como também pode ter sido essencial para uma espécie que ocupava o limite mais setentrional da era do gelo na Europa. Sem os benefícios dos cuidados com a saúde, argumentam os especialistas, a era do gelo da Europa provavelmente seria inacessível.
Depois disso, os pesquisadores gostariam de aprender mais sobre as técnicas usadas nos cuidados de saúde neandertais e determinar até que ponto essas práticas podem ser encontradas no passado.
Apesar de seus esforços heroicos, os neandertais foram extintos, provavelmente uma consequência da invasão humana e, ironicamente, da mudança climática. Mas sua sobrevida prolongada durante um dos períodos mais duros na história geológica recente é uma comprovação de suas capacidades e uma lição oportuna para a nossa própria espécie.
[Quaternary Science Reviews]
Imagem do topo: James Ives
Para suportar as duras condições da Europa em uma era do gelo, os neandertais adotaram várias estratégias, incluindo a caça em grupo, a paternidade colaborativa e o compartilhamento de alimentos. Uma nova pesquisa publicada na Quaternary Science Reviews acrescenta um outro truque ao guia de sobrevivência dos neandertais: os cuidados com a saúde.
“Argumentamos que, ao invés de ser simplesmente um traço cultural, os cuidados médicos podem ser vistos como parte de várias adaptações que permitiram aos neandertais sobreviver em ambientes únicos, onde viviam ao lado de grandes predadores carnívoros e eram frequentemente dependentes de grandes [mamíferos]… como um grande fonte de alimento”, escreveram os autores, liderados por Penny Spikins, da Universidade de York, em seu novo estudo. “Além disso, os cuidados com a saúde podem ter sido um fator significativo para permitir que os neandertais ocupassem um nicho predatório que, de outra forma, não estaria disponível para eles.”
De fato, os neandertais viveram na Europa da era do gelo por centenas de milhares de anos, então, obviamente, alguma coisa eles fizeram certo. É fácil se prender à sua extinção, um processo que começou cerca de 40 mil anos atrás, mas existe muito mais a se falar sobre os neandertais do que apenas o seu fim. Sua história é de sobrevivência.
Não é segredo para ninguém que os neandertais praticavam cuidados médicos. E isso também não é surpresa alguma, afinal, eles enfrentaram todos os tipos de ameaças, incluindo as de animais grandes e perigosos. Os neandertais também eram caçadores proficientes, e essa era uma prática que apresentava riscos consideráveis. Para os neandertais, as lesões faziam parte da vida cotidiana. Mas, em vez de negligenciar os feridos ou vê-los como um fardo a ser descartado, eles praticavam cuidados médicos.
“Temos evidências de cuidados com a saúde que datam de 1,6 milhão de anos atrás, mas achamos que provavelmente vai muito além disso”, disse Spikins em um comunicado de imprensa. “Queríamos investigar se os cuidados de saúde entre os neandertais eram mais do que uma prática cultural. Foi algo que eles simplesmente faziam ou foi algo mais fundamental para suas estratégias de sobrevivência?”
As provas coletadas por Spikins e seus colegas sugerem que essas práticas foram benéficas para o grupo como um todo e, consequentemente, uma importante adaptação evolutiva.
Para o estudo, os pesquisadores analisaram os restos de esqueleto de 30 indivíduos neandertais anteriormente descobertos. Esses espécimes exibem feridas que variam de leves a graves, mas cada um desses indivíduos conseguiu sobreviver a seus ferimentos (os paleontólogos conseguem distinguir visualmente quando um osso quebrado ou uma fratura estão cicatrizados). Em muitos desses casos, os pesquisadores dizem que é altamente improvável que o indivíduo tenha sobrevivido sem ajuda, além de afirmarem que um sistema desenvolvido de cuidados com a saúde deve ter sido implementado.
“O alto nível de lesão e recuperação de condições sérias, como uma perna quebrada, sugere que outros devem ter colaborado em seu cuidado, ajudando não apenas a aliviar a dor, mas lutando por sua sobrevivência de modo que eles pudessem recobrar a saúde e participar ativamente do grupo de novo”, disse Spikins.
Um excelente exemplo de um indivíduo se beneficiando dos cuidados dos neandertais é o espécime Shanidar I. Esse indivíduo viveu além dos 40 anos de idade (o que é bem velho para os padrões do Paleolítico), apesar de não ter a mão e o antebraço direitos e de ter uma perna gravemente ferida, cegueira em um olho e, provavelmente, surdez. Esse indivíduo não teria sobrevivido sem cuidado diário e sem gente lhe provendo comida.
“Períodos prolongados de cuidado interpessoal, apesar da falta de qualquer benefício econômico geral para tal cuidado, também são claramente evidentes em outros casos”, escrevem os autores do estudo, apontando para o indivíduo La Chapelle aux Saints I, que sobreviveu com várias doenças debilitantes, como osteoartrite e sinais extensos de doença. Muitos dos outros exemplos apresentados no estudo são tão impressionantes quanto.
Para tratar seus feridos, os neandertais provavelmente empregaram uma série de estratégias, dependendo da natureza e da gravidade da lesão. Machucados muito graves, como uma perna quebrada, exigiam controle da febre, manutenção da higiene, reposicionamento de ossos quebrados e, em alguns casos, a limitação da perda de sangue. Então, sim, os tratamentos foram bastante sofisticados.
“Os neandertais parecem também ter sido especialistas em prestar cuidados médicos colaborativos”, escrevem os autores no estudo. “Além disso, as evidências arqueológicas visíveis provavelmente são ‘só a ponta do iceberg’ de práticas de cuidados médicos mais comuns, cuja maioria segue invisível à interpretação arqueológica.”
Como suas primas humanas modernas, as mães neandertais corriam risco de ter partos difíceis, devido ao formato da pélvis e ao tamanho da cabeça do bebê. Portanto, é “provável que elas tenham tido parto assistido”, disse Spikins, “um papel que agora atribuímos às parteiras”, acrescentando que, “sem apoio, elas provavelmente não conseguiriam ter sobrevivido ao custo que a taxa de mortalidade de mães e bebês poderia ter tido sobre suas comunidades”.
Tratar os doentes e feridos e ajudar as mães durante o parto requer muito tempo e energia, mas, para os neandertais, tudo isso era uma necessidade. Como viviam em pequenos grupos, a perda de um único indivíduo poderia ser catastrófica. Tratar vários membros do grupo gravemente feridos era uma questão de sobrevivência geral. Isso não quer dizer que os neandertais não agiam por compaixão — é bem provável que o fizessem. O que os pesquisadores estão dizendo é que esses cuidados serviam a um propósito pragmático e abrangente que ajudou o grupo a sobreviver como um todo e, por extensão, ajudou toda a espécie a sobreviver.
Portanto, prestar cuidados médicos “foi não só uma adaptação evolucionária mais significativa do que se reconhecia anteriormente”, escrevem os autores, como também pode ter sido essencial para uma espécie que ocupava o limite mais setentrional da era do gelo na Europa. Sem os benefícios dos cuidados com a saúde, argumentam os especialistas, a era do gelo da Europa provavelmente seria inacessível.
Depois disso, os pesquisadores gostariam de aprender mais sobre as técnicas usadas nos cuidados de saúde neandertais e determinar até que ponto essas práticas podem ser encontradas no passado.
Apesar de seus esforços heroicos, os neandertais foram extintos, provavelmente uma consequência da invasão humana e, ironicamente, da mudança climática. Mas sua sobrevida prolongada durante um dos períodos mais duros na história geológica recente é uma comprovação de suas capacidades e uma lição oportuna para a nossa própria espécie.
[Quaternary Science Reviews]
Imagem do topo: James Ives
Fonte:https://gizmodo.uol.com.br/neandertais-era-gelo-europa-cuidados-medicos/