11.2.09

A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO NACIONAL:

Entre representações e ocultamentos. As populações indígenas e a historiografia

Edinaldo Bezerra de Freitas*

O estudo da historiografia pode ser um bom lugar para pensar as contradições de ideologias e imaginários de uma sociedade. Neste artigo, procuro acompanhar as representações da presença (e ausência) das populações indígenas na chamada “História do Brasil”, procurando constituir interpretações sobre o próprio desafio de sobrevivência dessas populações, no dilema da alteridade, diante de uma historicidade adversa e perante discursos predominantemente preconceituosos, carregados de versões evolucionistas e de exclusão.

A historiografia brasileira tem se negado ao longo de sua trajetória a estudar de forma coerente a trajetória das diversas sociedades indígenas, pré-existentes, coetâneas e atuais ao processo de sua formação histórica. Quando muito, restou ao indígena um papel de figura retórica, como elemento estratégico de fundamentação de um “projeto étnico” nacional, onde em conjunto com “brancos” e “negros” amalgama uma certa concepção de “mito fundador” , onde as três raças comporiam os elementos propulsores da chamada “democracia racial brasileira”. É assim na maioria dos livros didáticos, onde os indígenas aparecem como elemento genérico, estereotipado e posto no passado, fundamentando um proclamado “marco zero” dessa história - o denominado “descobrimento do Brasil” - em 1500, onde se privilegia como denotação, apenas sua condução de “conquista colonial”.

Indagando-se sobre uma história indígena no Brasil as fronteiras se alargam. Em retrospecto sabe-se que eram muitos os grupos que habitavam o correspondente ao atual espaço territorial brasileiro, quando da chegada do colonizador. Calcula-se, só para a bacia amazônica, em mais de cinco milhões de índios (Neves, Eduardo Góes in: Silva e Grupioni, 1995:174). Contabilizados na atualidade em todo território nacional em aproximadamente quatrocentos mil, persistem muitas perguntas. Como foi o contato interétnico ao longo destes cinco séculos? Como foram os processos de resistências, conflitos, as incorporações, a exploração de mão de obra, as eliminações, e como foi possível o desaparecimento quase total dessa população? E na contrapartida indígena, como reagiram? Como perceberam o processo colonizador?Onde estão as vozes desse passado?

A maior parte da historiografia se calou. Sabemos que o silêncio tem sua própria eloqüência. A omissão da voz e da vez dos índios faz pensar sobre os limites constitutivos do próprio fazer historiográfico, onde perfis ideológicos implicam, nesse caso, em uma tomada de posição europeizante, elitista, que tende a um compromisso com padrões de produção e reprodução sócio-cultural, segundo posições ocidentais, mal classificados pela ciência evolucionista do século XIX como “civilização”. Uma postura que põe nas rebarbas da história, as comunidades que malgrado os limites, persistiram aquém e além dos contextos negativos.

Um projeto de exclusão dos índios na historiografia brasileira já está exposto claramente por um dos seus fundadores. Precisamente no momento em que, em meados do século XIX, tentavam-se alicerçar as bases de um projeto de Estado Nação para o Brasil, Antonio Adolfo Varnhagen, o considerado pela tradição “pai da História do Brasil”, decretava em 1854: “de tais povos na infância, não há história; há só etnografia” (Varnhagen, 1981:30). Sua História Geral do Brasil é uma apologia à “Nobreza” do Império brasileiro e ao governo da dinastia dos Bragança. Para os índios, ao que deixava explícito , traçava um destino menor. É bom lembrar que é justamente no século XIX, que se vai buscar no índio, um elemento de expressão romântica para fomentar os princípios cívicos de sustentáculo para o Estado Nação brasileiro. Trata-se do “Movimento Indianista”, onde pontificaram figuras como o romancista José de Alencar e poetas como Gonçalves Dias. O Índio apropriado por esse romantismo é, no entanto, um elemento puramente de literatura, estilizado, simbólico, adaptado e a serviço do projeto colonizador. Nessa conjuntura, em contrapartida às figuras folhetinescas de Ubirajara, Iracema e Peri, estão distantes das populações indígenas que de fato, naquele momento, continuavam a se debater com o avanço das frentes econômicas, em processos de invasões, perseguições e massacres sobre seus territórios (Moreira Neto, 1971).

Mas, o século XIX teve seus intentos em busca de conhecimento sobre os indígenas brasileiros Nesse período, o grande impulso partiu dos trabalhos dos viajantes e naturalistas, participantes de expedições científicas, patrocinadas principalmente pelos governos europeus. Os viajantes excursionaram pelo território do Brasil e muitos dos seus relatos passaram a ter importância para o estudo e compreensão dos povos indígenas, além de estudos do espaço geográfico, flora e fauna do país. Basta lembrar a importância das narrativas de Spix e Martius de 1819 - 1820 (Martius, 1982), do príncipe Maximiliano Wied-Neuwied de 1815 - 1817 (Wied-Neuwied, 1984) e de Saint-Hilaire de 1816 – 1822 (Saint-Hilaire, 1974). Um bom balanço sobre a contribuição das narrativas desses viajantes, enquanto via etnográfica e como produção intelectual, encontra-se em “Elementos para uma sociologia dos viajantes” de João Pacheco de Oliveira Filho, etnólogo do Museu Nacional do Rio de Janeiro (Oliveira Fº, 1987).

Nesse período, porém, o espaço concreto de produção de conhecimento mais sistemático sobre as comunidades indígenas, será o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB. Fundado sob auspícios da monarquia e criado à semelhança dos similares franceses de então, a instituição albergava nomes representativos da elite econômica e política do império. Em 1839, o primeiro número de sua revista, traz no texto de sua apresentação, o uso da alegoria indígena para si: “Qual robusta indígena das florestas brasileiras, se apresentava garrida e bem disposta para a rude missão de trabalhar pelo engrandecimento de sua tribo” (RIHGB, 1839 I:177).

Em 1844 o Instituto Histórico e Geográfico promoveu um concurso de redação sobre “Como escrever a História do Brasil”. O concurso declarava assim, uma dupla tarefa da instituição: a explícita necessidade de produção de uma historiografia para fundamentar o recente processo de independência política de Portugal e portanto um discurso constitutivo de legitimação da nova nação. Por outro lado, ficava visível a carência de caráter metodológico, do como produzir tal conhecimento. O vencedor do pleito foi sintomaticamente um estrangeiro. Trata-se do naturalista alemão Karl Friedrich Phillipp Von Martius, o mesmo que no início do século XIX estivera em viagem pelo Brasil e tornara-se sócio correspondente daquela casa. A sua dissertação propõe uma didática apresentação do Brasil, composta de elementos provenientes de três raças:

Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil, país que tanto promete, jamais deverá perder de vista quais os elementos que aí concorrerão para o desenvolvimento do homem. São porém estes elementos de natureza muito diversa, tendo para a formação do homem convergido de um modo particular três raças, a saber: a de cor de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Do encontro, da mescla das reações mútuas e mudanças dessas três raças, formou-se a atual população, cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular (Martius, 1982: 87).

Apresenta então o naturalista uma descrição sumária de como observar a “índole” característica a cada raça, constatando a existência dos “cruzamentos”, e propõe uma ordenação, onde através de metáforas, o “sangue português” aparece como “um poderoso rio” onde deveriam ser absolvidos os “confluentes” das “raças índias e etiópicas”. Lembra que é na “classe baixa” que tem lugar esta “mescla” e prevê a formação das “classes superiores”. Sugere assim mecanismos que comunicarão “aquela atividade histórica para a qual Império do Brasil é chamado” (Martius, 1982: 88). Fica claro assim o projeto conservador de história, embora ao mesmo tempo persista na importância de conhecer os elementos distintivos das três raças. Na visão de Martius, os índios eram “ruínas de povos”, isto é, uma raça em estado de decadência. Para tratar sobre estes, aconselha o estudo da vida e a história do desenvolvimento dos “aborígines”. Segundo ele os caminhos para realizar tais estudos, estariam nos “documentos históricos”, assim por ele classificados: língua, mitologia, “teogonia” (ou vestígios de religiões) e “geogonia” (distribuição e uso do espaço físico) , além dos por ele considerado “vestígios” de “símbolos” e “tradições de direito”. Por fim, cita a importância de também se considerar o estudo de investigações arqueológicas. Para a realização dessa tarefa, o autor fala da necessidade de “um historiador filosófico e etnógrafo”. Seu texto, embora resumido, é de grande valor para o entendimento de todo um ideário em muito hegemônico, sobre a historiografia brasileira e neste caso específico, sobre o olhar de uma história para os índios do Brasil.

Seguramente é esta a fonte onde se inspirou Varnhagen ao defender a proposta de delimitação sobre sua História Geral do Brasil, havendo em parte até uma guinada ainda mais conservadora neste historiador, principalmente no que respeita a suas tomadas de posições antiindígenas. Em sua obra os indígenas ganham descrições extremamente detratoras, indo desde as tradicionais acusações de indolentes, canibalismo, a falta de patriotismo e de valores humanitários de coletividade.

A principal contribuição do IHGB para o conhecimento sobre os indígenas brasileiros, foi, sobretudo com a publicação de textos, ensaios, coletâneas de palavras indígenas e extratos de mitologias. Entre seus sócios, agregavam-se posições controversas, onde se debatia sobre o papel dos indígenas naquele momento. De um lado, Varnhagen chegou a proclamar a necessidade de guerra e escravidão para as populações “selvagens e hostis” (Varnhagen, 1851 e 1867), por outro, os poetas românticos como Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias, portadores de visão preservacionista, muito embora comungassem com a visão decadentista de Martius, antagonizavam e denunciaram as posições belicistas de Varnhagen . De Gonçalves Dias, além do valor literário de seus poemas-manifestos a favor da causa indígena (I Juca-Pirama, Marabá, Canção do Tamoio), sabe-se que intercalou sua produção artística com uma série de pesquisas etnográficas, tendo viajado e coletado material em áreas indígenas, enquanto membro do Instituto, e funcionário público (Amoroso e Sàez in: Silva e Grupioni, 1995 e Guimarães, 1988).

É interessante acompanhar as notícias de um acirrado debate que na época envolvia a temática indígena, expresso no IHGB e fora dele, nos jornais, onde se instigavam argumentos sobre a identidade da nação brasileira. Para os indígenas, entrava na ordem do dia uma definição quanto a seu papel, ora como força de trabalho, ou na continuidade do papel da catequese como tarefa civilizadora, ora ainda sobre suas funções enquanto papel militar de guardas das fronteiras do Império Brasileiro (Freitas, 1999).

Também membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o General Couto de Magalhães, político de grande penetração no Segundo Império Brasileiro (1840-1889), defendeu por essa época, um projeto de “indigenismo pragmático”. Advogava a criação de “colônias militares” onde os índios receberiam treinamento para servirem de intérpretes e agentes para outros elementos indígenas, visando o aproveitamento eficaz de sua mão-de-obra. O militar em suas publicações contribuiu com descrições de traços culturais de grupos indígenas e é um dos pilares do discurso assimilacionista tão presente na história do pensamento indigenista brasileiro (Magalhães, 1935 e 1957).

É necessário ter em conta que o conjunto de idéias científicas em vigor no século XIX, é em grande maioria de cunho pessimista, negativo e preconceituoso em relação aos indígenas. Segundo as teorias racistas e evolucionistas de então, são eles vistos em estágio inferior ou de degradação. Prevalece a tese de extinção eminente. São posições díspares, ora implicando em conceitos como de poligenia e mutações biológicas (Agassiz), ora prendendo-se a visões de racismo histórico (Gobineau), ou tendendo a aspectos os mais bizarros como a defesa da perfectibilidade e da Eugenia. Os ideários transitavam assim entre os extremos da edenização à detração racial (Schwarcz, 1993).

Nesse momento é mesmo sugestivo tomarmos como referência o pensamento de um dos mais importantes filósofos europeus do século XIX, representante da ilustração racionalista. Para Hegel, as sociedades indígenas não possuíam qualquer importância para a humanidade enquanto história, pois não detinham sequer existência objetiva. Segundo ele, somente através da sociedade de Estado seria possível o desenvolvimento da única realidade possível: a razão. Nesse propósito, em suas Lições Sobre a Filosofia da História, apresenta os índios da América sob forma pejorativa e preconceituosa, descrevendo-os como espécie pré-humana, carente de todo conhecimento. Pelo seu evolucionismo, os povos pré-históricos fatalmente sucumbiriam diante do “espírito” europeu, pois os julgava física e espiritualmente impotentes (Hegel, 1995:74).

No Brasil, todavia, mesmo se a história oficial de então impingisse ao esquecimento os índios, delegando como sua protagonista uma elite “branca” e “cristã”, temos exemplos historiográficos de exceção. Capistrano de Abreu, funcionário da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, professor de história e também membro do IHGB, desenvolveu, pela passagem do século, uma obra de estimado valor no conhecimento da História Nacional. Com propensões críticas, percebeu o preconceito contra os índios. Foi em contra esses valores, que esse pesquisador veio a realizar trabalhos de conteúdo etnográfico. Artigos e livros sobre grupos indígenas, suas línguas e costumes são parte de sua produção intelectual. Não é por acaso que este seu papel de divulgador do conhecimento sobre a cultura indígena foi, e é em parte até a atualidade tão esquecido, sendo ele à época criticado, por “negligenciar” assuntos julgados mais relevantes. Capistrano de Abreu pôs em ação sua lida historiográfica em um período de transição política entre o fim da Monarquia e a instalação da República no Brasil. Suas posições polemizaram, seja com o grupo conservador anterior (contra Varnhagen) , seja com eminências de sua contemporaneidade, como os grandes pensadores da nacionalidade brasileira como Sílvio Romero, germanicista que defendia então valores recrudescentes sobre a teoria das raças superiores (Amoroso e Sãez in: Silva e Grupioni, 1995 e Araújo, 1988).

De Capistrano, vale destacar o trabalho pioneiro realizado com pesquisas com informantes indígenas. Nessa área, suas principais contribuições são estudos das línguas dos índios Kaximawá, o Rã-txa hu-rú-ku-i (“falar de gente verdadeira, de gente fina”, na tradução do autor) estudo publicado em 1910 (Capistrano de Abreu, 1914). Outra obra sobre os Bacairi do Xingu foi publicada na época, em revistas e teve recente impressão em Ensaios e Estudos patrocinada pelo Ministério da Educação (Capistrano de Abreu, 1976). Pode-se dizer, no entanto, que o exemplo deste historiador não foi seguido pelas próximas gerações que se lhe sucederam.

Para o período de instauração e solidificação do regime republicano brasileiro, a única menção importante no contexto do conhecimento sobre os índios no Brasil é a campanha desenvolvida pelos membros do Apostolado Positivista - a Igreja Positivista do Brasil de inspiração nas idéias de Augusto Comte. Durante os debates sobre a primeira Constituição da Republica, o apostolado positivista, liderado por Miguel Lemos e Teixeira Mendes apresentou propostas específicas para o trato com a população indígena. Suas idéias, que chegavam a ser extremamente inovadoras, propagavam a criação não de um, mas dois Estados Confederados para o país, sendo um destes - denominado “Estados Americanos Brasileiros”, que deveria ser constituído pelas “hordas fetichistas esparsas pelo território de toda a república” (Lemos e Mendes, 1934). Animado pela teoria comteana o Apostolado Positivista foi responsável por debates que ganharam a via pública, pelos jornais e pela edição de uma série de pequenos livretos onde divulgavam suas posições. Nesse caso, a defesa da causa indígena, justificava-se filosoficamente por serem considerados representantes da etapa “fetichista” da humanidade, assim escalonada por fases de evolução e por os considerarem em uma espécie de “infância” primeira, e, portanto, necessitando de “proteção fraternal”. Somente assim, pensavam, depois de estimulados, atingiriam o “estado positivo” apontado como o estágio superior, científico e atual, visto como o definitivo da humanidade.

O projeto de Constituição apresentado pelos positivistas, como era de se esperar, não foi aprovado pelos republicanos. Porém, não deixou de ser esse, um primeiro passo em torno de um bem sucedido percurso de influência desse grupo sobre os destinos das populações indígenas brasileiras. Nesse sentido, tal processo culminou com o debate sobre a forma política de atenção do Estado sobre essas comunidades. Advogava os positivistas a substituição do trabalho catequético das missões e ordens religiosas por um serviço laico. É esta a origem do Serviço de Proteção aos Índios - SPI, Órgão criado em 1910 e dirigido pelo então Tenente-Coronel e depois Marechal do Exercito Brasileiro Cândido Mariano Rondon, membro confesso da Igreja positivista e maior nome do indigenismo oficial brasileiro.

Para a historiografia brasileira, os reflexos da presença indígena enquanto temário continuou pífio. Somente a partir da década de trinta do Século XX, alguns trabalhos apontaram para uma tomada de posição, em um momento em que processos políticos redirecionavam a trajetória do próprio Estado Nacional brasileiro. Entre os historiadores, merece destaque a contribuição de Sérgio Buarque de Holanda. Já em Raízes do Brasil, editado pela primeira vez em 1936 (Holanda, 1978), aparece nitidamente uma valorização dos indígenas na formação do homem brasileiro ,no por ele denominado “homem cordial”, padronizando a face patrimonialista dos valores. Esse livro em conjunto com Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre que teve primeira edição em 1933 (Freyre, 1995), fundamentam as grandes explicações do “caráter” brasileiro produzidos no século XX (Leite, 1969 e Mota, 1980).

Buarque de Holanda deteve parte de sua obra aos estudos da expansão e ocupação territorial brasileira. Nesse intento, procurou dar lugar de destaque a presença indígena. Em Monções de 1945 (Holanda, 1976), o autor apresenta a importância das frentes de comércio colonial, onde essas populações contavam, seja como colaboradores, seja como conflitantes. Em Caminhos e Fronteiras de 1957 (Holanda, 1975), esta presença é ainda mais acentuada, dedicando capítulos à identificação de “índios e mamalucos”, ou seja, ai incluindo as populações miscigenadas, imputando-lhes como base do conhecimento e da cultura formulada na colônia, e do seu papel como condutores das estradas de percurso para “entradas e bandeiras”.

O tema indígena tem recorrência na sua obra, tendo destaque na Visão do Paraíso, de 1959 (Holanda, 1985), e ainda em uma obra inacabada - O Extremo Oeste, publicado em 1986 (Holanda, 1986), onde também ali está destacada a nítida presença indígena na colonização, descrevendo de um lado a “insana caça a peças indígenas” - a chamada “preação” pelos sertanistas, para venda no mercado escravo - principalmente no século XVII, e por outro, alertando para o importante papel exercido pela cultura indígena a favor da adaptação da vida colonial nos “inóspitos” sertões.

Vale ainda um adendo, para o trabalho deste historiador como coordenador da publicação da História Geral da Civilização Brasileira, dirigindo os tópicos referentes à Época Colonial e do Império, onde se esmerou em convidar figuras de destaque no conhecimento sobre história e cultura indígenas, para preencher os espaços dedicados a estes - valendo destacar nomes como do etno-sociólogo Florestan Fernandes e o antropólogo Egon Schaden. A obra teve início de publicação nos anos de 1960-70 e delimitou a partir daí, para toda uma hegemonia da historiografia paulista e uspiana (da Universidade de São Paulo - USP) sobre a própria historiografia brasileira (Holanda, 1963 e 1967). Afora o caso desse historiador, e de forma bem menos acentuada, os indígenas terão lugar em algumas páginas no trabalho de outro grande historiador daquele momento, Caio Prado Júnior, o primeiro a aplicar a teoria marxista ao estudo da História do Brasil. Em sua Evolução Política do Brasil, de 1933 (Prado Jr. 1975), e principalmente em Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942 (Prado Jr., 1979), onde esse pensador analisa o processo de formação colonial brasileiro. Em sua obra as populações indígenas são apresentadas como vítimas do conflito pela ocupação territorial e pela contenda de utilização de sua mão-de-obra. Contudo, essa citação não tem dimensões mais visíveis e fica clara, em certas passagens de sua escrita, uma visão tipicamente evolucionista e determinista, em um parecer nitidamente carregado de preconceitos. Diz ele abertamente:

A população indígena, em contato com os brancos, vai sendo progressivamente eliminada e repetindo mais uma vez um fato que sempre ocorreu em todos os lugares e em todos os tempos em que se verificou a presença, uma ao lado da outra, de raças de níveis culturais muito apartadas: a inferior e dominada desaparece. E não fosse o cruzamento, praticado em larga escala entre nós e que permitiu a perpetuação do sangue indígena, este estaria fortemente condenado à extinção total (Prado Jr., 1979: 105-106).

Um terceiro historiador também desse período, Nelson Werneck Sodré, é ainda mais restrito ao conhecimento das sociedades indígenas. A sua Formação Histórica do Brasil, de 1962 (Sodré, 1976) é nesse sentido bastante tradicional. Trata-se de um escritor de orientação marxista e em seu trabalho fica facilmente perceptível o quanto à rigidez metodológica sacrifica suas idéias. Assim, o autor parece estar sempre mais interessado em comprovar uma doutrina pré-estabelecida, do que analisar historicidades. Sodré fala, por exemplo, em feudalismo como etapa de colonização brasileira e quanto à presença indígena, quando aparece em sua obra, são estes citados como meros coadjuvantes da “Conquista do Sertão”. Todo o conflito interétnico fica explicito pelo autor na aparente simplicidade de uma incompatibilidade de convivência entre a economia natural dos índios e a produção de estágio escravista (Sodré, 1976: 58).

Ainda da década de quarenta, o trabalho solitário de Alexander Marchant, um dos pioneiros na produção de trabalhos dos chamados “brasilianistas”, ou seja, os intelectuais estrangeiros dedicados ao estudo de aspectos da história e cultura brasileiras. Nesse caso, com a produção de uma obra que aponta para as possibilidades de recortes históricos específicos, onde a temática indígena é eleita como caminho para compreensões e interpretações de certos momentos. Seu Do Escambo à Escravidão é de 1943 (Marchant, 1980), nele, são focados aspectos econômicos do usufruto da mão-de-obra indígena no Brasil quinhentista. A primeira edição desse livro sendo publicada em inglês.

Nos anos 1950 David Hall Stauffer apresentou à Universidade do Texas (Austin) a tese de doutoramento intitulada “The Origin and Establishment of Brazil's Indian Service, 1889 -1910. A exemplo do trabalho de Marchant, este texto é também um testemunho de pesquisa onde se aprofunda a temática da História sobre as relações com as populações indígenas, nesse caso, das origens da política indigenista brasileira do século XX. Com copiosa utilização de fontes documentais, a obra, no entanto, não foi traduzida para português, se não a parte correspondente aos cinco primeiros capítulos, editados naRevista de História da Universidade de São Paulo. (Stauffer, 1959, 1960,1961 Revista de História da Universidade de São Paulo nº 37,42,43,44e 46). O trabalho de Stauffer demarca a questão da ocupação territorial no Brasil, em momento de expansão das fronteiras econômicas principalmente no período de transição entre os séculos XIX e XX, acompanhando os debates acirrados em torno dos que se posicionaram a favor e contra o extermínio dos índios que “impediam o progresso”. A obra acompanha a ação governamental brasileira até apresentar a trajetória de Rondon e a criação do SPI.

As críticas impetradas a obra de Stauffer, apontam para os limites de sua “História-Narrativa” e à apologia quanto à “prática rondoniana”. Antônio Carlos de Souza Lima, na dissertação de mestrado em Antropologia - Aos Fetichistas Ordem e Progresso: em estudo do campo indigenista no seu estado de formação, dedica um longo capítulo ao trabalho desse brasilianista, classificando sua obra como uma história “interna” do SPI, isto é, sem a crítica necessária à sua contextualidade. (Lima, 1985 e 1995).

Só mais recentemente, com o advento da chamada “Nova-História”, quando o olhar do historiador se adequa a uma perspectiva ampla de questões e mediante o predomínio da chamada história cultural, a temática indígena parece ter sido despertada. Ainda é pequeno o número de obras publicadas,algumas teses e dissertações acadêmicas aparecem timidamente. É possível apontar nesse caso, o trabalho vigoroso de John Monteiro - Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo (Monteiro, 1994), que lança uma nova luz sobre os estudos da relação entre mão-de-obra indígena e escravidão, fazendo repensar o processo de formação da região bandeirante paulista. Destaca-se ainda o trabalho de Ronaldo Vainfas - A Heresia dos Índios - Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial (Vainfas, 1995). Nesse caso, trata-se de obra bastante instigante, percorrendo a tendência mais atual da história cultural e apresentando o processo de formação e destruição das “santidades” - manifestações religiosas praticadas por índios, mamelucos e indianizados, e onde afere simbologias de sincretismos culturais, no caso especialmente localizados já nos primeiros séculos da colonização brasileira. Também recente, o livro Imagens da Colonização. Representação do Índio de Caminha a Vieira, de Ronald Raminelli (Raminelli, 1996), igualmente envereda pelo campo das representações indígena, desta feita buscando na iconografia e nos registros descritivos dos primeiros séculos da colonização, o olhar de quem retratou sua presença e daí partindo para uma análise da natureza, estereótipos e conflitos do período.

O processo historiográfico parece ter sido esse. Apontam-se lacunas e limites e deve ser percebido como diálogo e complemento à considerável produção da linha de Etno-História mais recentemente desenvolvida pelos antropólogos. O desafio do conhecimento sobre culturas e histórias das populações indígenas no Brasil tem o tamanho e a simbologia do próprio desafio contemporâneo de sobrevivência dessas populações, diante da luta para preservar seus espaços territoriais, a organização social e política e suas especificidades de identidade cultural e étnica. Tem-se o alento e a esperança de se estar pouco a pouco alargando o espaço do conhecimento da História Indígena Brasileira. Alguma mudança qualitativa nesse campo tem ocorrido. Muitos outros passos deverão ainda ser dados.


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* Doutor em História Social pela USP. Professor do Departamento de História da UNIR

Fonte: Labirinto

Disponível em: http://www.cei.unir.br/artigo103.html