24.2.09

Imagens do cotidiano e temporalidades: historiografia e imprensa

Ivanor Luiz Guarnieri[1]
Fábio Lopes Alves[2]

Resumo

O trabalho do historiador envolve ao menos três elementos: metodologia, fontes e narrativa. Abordando inicialmente alguns aspectos historiográficos acerca dos quais foram pontuadas brevemente posições teóricas como o positivismo, o marxismo e a Escola de Annales, o presente artigo se volta para a problemática do uso das fontes pelo historiador e particularmente de periódicos como fontes, com o cuidado necessário na utilização de um tipo de material criado inicialmente para informar, dentro da linguagem própria do jornalismo. Portanto, o uso de fontes, como periódicos, apresentado aqui, considera o desenvolvimento historiográfico, e traz sugestões e cuidados nos procedimentos de pesquisa.

Palavras chaves: Historiografia, Fontes Histórica, Imprensa, imagens


Introdução

No quadro geral das ciências, a partir da chamada Revolução Copernicana, nota-se um contínuo desdobramento, desde a física no século XVII, passando pela química no século seguinte e a biologia no século XIX. Estruturalmente, as pesquisas voltadas para a natureza, com novos procedimentos metodológicos, irão fomentar o desenvolvimento industrial em países como a Inglaterra, França e Bélgica. A ciência caminha junto com a sociedade e traz em seu bojo os interesses e particularidades dos homens de seu tempo.

Tendo construído amplo domínio de técnicas de criação e transporte de objetos dos mais variados tipos, oferecidos no grande mercado capitalista, valendo-se para isso dos estudos físico-químicos, os países europeus, onde os acontecimentos da Revolução Industrial eram mais agudos, viam-se na contingência de conquistar espaços territoriais ricos em minérios para alimentar suas fábricas. A conquista da África se fará sob estes auspícios.

As conquistas não se fazem, e muito menos se mantêm, sem um domínio de conhecimentos. A necessidade de conhecer melhor o espaço dos diferentes territórios, analisando e descrevendo cadeias de montanhas, vales e rios, fará surgir a geografia física, ainda no século XIX, com o objetivo de estudar a disposição físicas dos espaços e cujas características e perspectivas ainda são sentidas em muitos livros didáticos. No mesmo século da geografia, os franceses criarão a antropologia e com ela a tipologia das três raças: branca, negra e amarela, em cujo arcabouço se inscreviam as idéias racistas, usadas como tentativa de legitimação no domínio dos europeus sobre outros povos.

Internamente a Europa vivia a desestruturação da sociedade rural em razão da sociedade industrial, que, com seus inúmeros problemas e desajustamentos, reclamava uma investigação científica para a origem dos males que a afligiam, como resposta a isso criou-se a sociologia.

É nesse quadro mais amplo de sociedade e ciência que a história ganhará foros científicos, procurando aproximar o estudo do passado, tendo como modelo de técnica e método a ciência física, tomada como modelo na construção de métodos para outras ciências.

Até o surgimento da corrente filosófica denominada Positivismo, a história era incumbência de professores de literatura, que, ao comentarem uma obra literária, como um romance, se viam forçados a comentar, mesmo que brevemente, sobre aspectos históricos e sociais onde a obra em análise foi produzida, e em que sentido a narrativa do escritor se aproximava de seu mundo, ou do mundo descrito na obra em foco. A partir do século XIX assiste-se a crescente profissionalização do e no fazer historiográfico, com a disciplina de história ocupando cada vez mais o espaço acadêmico e inserindo-se na grade curricular das escolas.

A propósito da proximidade entre história e literatura, sob um prisma diferente do apontado acima, assiste-se hoje uma crítica segundo a qual haveria pouca diferença entre a história e a literatura, em virtude de um certo relativismo historiográfico que abandonou a pretensão de mostrar a verdade acerca dos acontecimentos passados - se é que algum dia isso foi possível - preferindo alguns falar mais em versão, não assumida como ficcional, mas versão em todo caso.

Por outro lado, a leitura de algumas obras de história, cria um clima narrativo algumas vezes tão ou mais envolvente que de certas obras literárias. Escrever bem, de forma agradável, com prosa elegante, tornou-se indispensável em um mercado editorial abarrotado de livros. Obras de história concorrem com romances no grande balcão de compra e venda de livros. Jornalistas que tenham um certo requinte e algum traquejo se imiscuem no fazer historiográfico, pesquisando e escrevendo sobre assuntos variados, seja sobre acontecimentos passados ou biografias de personagens historicamente famosos.

O fenômeno Dan Brown, por sua vez, parece embaralhar ainda mais a relação/separação entre literatura e história, mas ele não é o único seguramente. Obras de ficção que tomam personagens e fatos históricos na narrativa, acabam confundindo os menos avisados, gerando, às vezes, polêmicas estéreis pela dificuldade em separar o histórico da chamada “licença poética” do autor literário, que cria a partir de elementos tirados da história.

Em resposta aos críticos que perguntam: qual a diferença entre um livro de literatura e um livro de história, poderia ser dito que: o escritor literário tem um método, a partir do qual pode ser classificado, como romântico, naturalista, barroco, etc., e tem também uma narrativa que se apresenta no desenrolar do livro, forma narrativa de conformidade com a escola literária a qual venha pertencer o escritor. Para escrever um livro de história, por sua vez, o historiador também há de seguir um método, conforme seja adepto do Marxismo, da Escola de Annales, ou da Nova História, para ficar só nesses exemplos. E o historiador também deverá apresentar uma narrativa, na qual encadeie os acontecimentos. Diferente, porém, da literatura, exige-se fidelidade às fontes.

É claro que há a interpretação do pesquisador, de conformidade com o método de abordagem que adote, mas ele não pode contrariar ou desmentir as fontes, muito menos inventá-las. O trabalho historiográfico exige tirocínio para buscar em arquivos documentos que possam servir para contar o ocorrido, o mais próximo possível do acontecido. Pois é justamente sobre fontes que se apresenta este artigo.

Fontes históricas: uma discussão preliminar

A discussão concernente às fontes historiográficas é um tema que tem rendido longos e valiosos debates e trabalhos na academia, se tornando permanente não apenas no âmbito da historiografia, mas superando diversas fronteiras de campos de atuação, isto é, pesquisadores de outras áreas também se valem de fontes para estudar seus objetos, como ocorre, por exemplo, com a antropologia e a sociologia, a educação e a economia, para ficarmos em algumas ciências. Claro que, nesses casos, o foco e a tipologia das fontes utilizadas, bem como os métodos e as abordagens variam. A exemplo destes estudiosos, o historiador ao se deparar com as fontes, percebe que elas não falam por si, mas respondem a uma gama de perguntas a serem formuladas procurando obter possíveis respostas presentes nas fontes, o que as tornam dessa forma, a peças fundamentais na operação historiográfica.

Por fonte histórica, grosso modo, entende-se tudo aquilo que foi produzido pela humanidade no tempo e no espaço, isto é, a herança material e imaterial deixada pelos antepassados que serve de base para a construção do conhecimento histórico. Um termo comum para conceituar fonte histórica é “documento”, todavia, o uso dessa denominação pode gerar equívocos, devido às concepções da escola positivista, significando para ela não apenas o registro escrito, mas sim o oficial, pois, documentos passíveis de utilização pelo historiador seriam aqueles originados de autoridades constituídas. Veja-se, por exemplo, o positivismo Rankeano, para o qual a função do historiador seria a de recuperar os eventos, suas interconexões e suas tendências através da documentação e, a partir dela, fazer a narrativa histórica. Para essa tendência, a história era vista no Estado e em suas atividades, sendo assim a mesma se limitaria a documentos escritos oficiais de eventos essencialmente políticos. De acordo com seu método, o historiador deveria apenas dar conta do que realmente passou. Ou seja, para a história alcançar a cientificidade, seria necessário seguir rigorosamente essas e outras recomendações. Dessa maneira, a história científica seria produzida por um indivíduo que se neutraliza enquanto sujeito para fazer aparecer seu objeto.

O caráter ideológico da postura positivista já foi sobejamente denunciado pelos marxistas, pois ao pretender a neutralidade do historiador em relação às fontes e a própria narrativa, acaba ele assumindo, e muitas vezes defendendo inadvertidamente, a posição daqueles que alcançaram o domínio sobre os demais, via poder de Estado. Além disso, quando o chamado positivismo advoga a favor de documentos oficiais, em detrimento de outras fontes históricas, acaba por construir uma história também oficial, não dando voz a outros atores sociais. Em razão desses problemas com a denominação “documento”, alguns historiadores preferem a denominação de “vestígios”, considerando que este termo se refere ao algo que vai além do documento oficial.

Diferente do positivismo, a crítica marxista abrirá as portas da história aos trabalhadores de diferentes épocas, vistos em relação dialética com os donos dos meios de produção, na perspectiva de que “a história de todas as sociedades que existiram até hoje tem sido a história das lutas de classes”,[3] lutas que, para Marx, ocorrem antes de tudo, na forma como os homens se organizam para produzir os bens necessários à existência, tendo de um lado os donos dos meios de produção, os barões feudais, ou os burgueses no moderno capitalismo, etc., que exploram os despossuídos de tais meios, como os servos medievais ou os proletários, em relações historicamente tensas, cujo desenvolvimento das forças produtivas no interior dos modos de produção historicamente situados, engendra o novo. O pensamento marxista possibilitará o uso de outras fontes, e, notadamente, uma leitura diferente dos documentos emanados da autoridade pública.

Se o positivismo enfoca a história política e o econômico é destacado pelo marxismo, este, por seu turno, fará a contestação da objetividade imparcial na história, ainda no séc XIX. Segundo Marx, todo historiador está ligado a sua classe social, portanto, aí reside a impossível imparcialidade, pressuposto básico que conduziu a pesquisa dos materialistas históricos e dosAnnales, para o campo da interpretação e da análise, alterando desse modo, o conceito de documento.

Com os trabalhos iniciais de Marc Bloch e Lucien Febvre, fundadores da Escola de Annales,nos anos 30, os estudos históricos receberam novos ares, aumentando a amplitude das pesquisas que passam a tratar com novos objetos, sob novos enfoques e métodos, e com outras fontes capazes de responder a este novo problematizador, numa perspectiva historiográfica preocupada com um passado humano mais amplo, uma história-problema que vai além do político e do econômico.

A partir das possibilidades de análises históricas, apresentadas pelos materialistas históricos e os annalistas, o fato histórico deixa de ser compreendido como algo real e verídico através do documento. Isto é, ele já não era mais o mensageiro da verdade absoluta do passado. Nessa esteira, a noção do que se constituía como fonte histórica ampliou-se e o documento deixou de ser apenas o registro político e administrativo, uma exclusividade dos povos com escrita. Pois para a história interpretativa mais que a veracidade do documento, importam as questões que o historiador lhe remeta.

Desde então, a fonte histórica, passou a ser construção do historiador e de suas perguntas, sem deixar de lado, a crítica documental, pois questionar o documento não era apenas construir interpretações sobre ele, mas também conhecer sua origem, sua ligação com a sociedade que o produziu, entre outros.[4] Após o impulso dado pela Escola dos Annales, posteriormente os adeptos da Nova História, modificaram ainda mais o conceito de documento. As mudanças foram de tal ordem que a imagem passa a ter valor para a pesquisa histórica. A imagem como fonte é trazida para a luz das pesquisas, o que é algo improvável se fosse tomado para análise o antigo paradigma positivista. A chamada Nova História, originada na década de 60 do século passado, inserida que está na pós-modernidade, elegerá cada vez mais como fontes fragmentos do passado, podendo ser estes os mais diferentes objetos e escritos, desde que capazes de indicar acontecimentos específicos, às vezes sobre uma única personagem ou um fato particular.

Seja uma perspectiva positivista, marxista, de Annales ou da Nova História, sabe-se que a escolha das fontes depende não apenas do objeto e dos objetivos da pesquisa, mas também da delimitação, problemática, entre outros, isto é, dos recortes efetuados. É sobre um tipo de fonte que se irá discorrer a seguir.

Os periódicos da imprensa como fonte histórica

Na década de 70, poucos historiadores brasileiros utilizavam a imprensa escrita enquanto fonte historiográfica. O que não é de admirar em razão da demora na entrada de novas metodologias de pesquisas em nosso País, como a Nova História e mesmo em relação às idéias dos Annales, metodologias que aceitam mais facilmente o jornal como fonte. Apesar disso, a imprensa nacional desfrutava de prestígio junto à nação, sendo que o valor dos impressos era um fator indiscutível. Alguns trabalhos já demonstravam a importância de escrever a história da imprensa, o que obrigava a tomá-la como fonte, apesar de uma certa dificuldade em aceitar e/ou até mesmo fazer história por meio da imprensa.

Verifica-se dessa forma, uma hierarquia qualitativa dos documentos, onde os jornais apareciam como pouco indicados para possíveis investigações historiográficas. A justificativa para tal desprezo residia no fato de os jornais e revistas serem acusados de subjetivismo em função dos interesses de quem os produzia e por serem elaborados sob o influxo de interesses, compromissos, paixões entre outros, quer seja dos jornalistas que davam o tom das matérias a favor ou contra determinados grupos econômicos e políticos, quer dos próprios donos dos veículos de comunicação. Em razão dos interesses ou da censura havida no período militar (1964-1985), não se estranhe a acusação de historiadores positivistas ou marxistas, contra uma imprensa sabidamente não independente.

Tais circunstâncias não impedirão que gradativamente a imprensa pudesse ser tomada como importante fonte, e mesmo como objeto, para se fazer análise dos discursos e procurar desnudar o jogo de interesses que regem a sociedade e que ela, a imprensa, de modo velado, seguidamente procura atender.

Sabe-se que houve uma intrínseca relação entre a diversificação das temáticas historiográficas e a tomada da imprensa como fonte histórica, na segunda metade do séc XX. Buscando imprimir sua contribuição no tocante a utilização da imprensa como fonte, bem como oferecer indicações teórico-metodológicas para o caso em questão, Tânia Regina de Luca,[5] discorre sobre os passos que devem ser seguidos por quem se dispuser a debruçar sobre os arquivos periódicos. Segundo a autora, um primeiro passo a ser dado, é a observação da materialidade do impresso, devendo ter em vista que a grande variação na aparência, imediatamente apreensível pelo olhar diacrônico, resulta da interação entre métodos de impressão disponíveis num dado momento e o lugar social ocupado pelos periódicos. No que diz respeito ao primeiro aspecto, nas páginas dos exemplares, inscreve-se a própria história da indústria gráfica, dos prelos simples às velozes rotativas até a impressão eletrônica. O mesmo poderia ser dito em relação ao percurso das imagens, que se insinua de forma tímida nos traços dos caricaturistas e desenhistas, e chega a açambarcar o espaço da escrita com a fotografia e o fotojornalismo. É por essas e outras razões que é de extrema importância estar atento para os aspectos que envolvem a materialidade dos impressos, já que eles nada têm de natural.

Historicizar a fonte, requer ter em conta as condições técnicas de produção vigentes e a averiguação, dentre tudo que se dispunha, do que foi escolhido e por quê, bem como os fatos históricos do momento. É óbvio que as máquinas velozes que rodavam os grandes jornais diários do início do século XX, não eram as mesmas utilizadas pela militância operária, o que conduz a outro aspecto do problema: as funções sociais desses impressos. [6] Dessa forma, o historiador que se utilizar desse tipo de fonte, deverá dentre outros aspectos, investigar: de que forma os impressos chegaram as mãos dos leitores, qual a aparência física do mesmo (formato, tipo de papel, qualidade de impressão, capa, presença/ausência de ilustrações), a estruturação e divisão do conteúdo, as relações que manteve (ou não) com o mercado, a publicidade, o público a que visava atingir, os objetivos propostos, entre outros. Condições materiais e técnicas em si dotadas de historicidade, mas que engatam a contextos sócio-culturais específicos, que devem permitir localizar a fonte escolhida numa série, uma vez que esta não se constitui em um objeto único e isolado. Dito de outra maneira, o conteúdo em si não pode ser dissociado de lugar ocupado pela publicação na história, sendo essa a tarefa primeira e passo essencial das pesquisas com fontes periódicas.[7]

O pesquisador que se utiliza dos periódicos trabalha principalmente com aquilo que se tornou notícia, ou propaganda, dependendo do objeto da pesquisa. Logo, alguns pontos devem ser observados, tais como: quais foram os critérios que a matéria teve que satisfazer para se tornar notícia? Isto é, quais as motivações que levaram à decisão de dar publicidade alguma coisa? Nesse caso, deve ser conferido o destaque dado ao acontecido, ou seja, em que espaço do periódico se deu a publicação, pois se deve estabelecer as diferenças entre as publicações de manchetes e o que é relegado às páginas internas, bem como suas posições nas referidas páginas, pois a ênfase em certos temas, linguagens, natureza de conteúdo, está associado aos interesses do órgão, público que visa atingir. Numa palavra, o espaço ocupado pela notícia informa muito da intencionalidade dos agentes responsáveis por sua publicação.

Outro aspecto que merece atenção é a importância de se identificar cuidadosamente o grupo responsável pela linha editorial, visando compreender quem são os colaboradores mais assíduos, atentar para a escolha do título e também para os textos pragmáticos, que dão conta de intenções e expectativas, além de fornecer pistas a respeito da leitura de passado e de futuro compartilhado por seus propugnadores, que representação fazem do passado, ou que expectativas aguardam do futuro, como compreendem a realidade presente e, amarrando isso tudo, que idéias defendem.

Igualmente, importante é inquirir sobre as ligações cotidianas com diferentes poderes e interesses financeiros, aí incluídos os de caráter publicitário. Isto é, à análise da materialidade e do conteúdo é preciso acrescentar aspectos nem sempre imediata e necessariamente patentes nas páginas desses impressos. Da mesma forma, as redações podem ser tomadas como espaços que aglutinam diferentes linhagens políticas e estéticas, compondo redes que conferem estrutura ao campo intelectual e permitem refletir a respeito da formação, estruturação e dinâmica deste. Assim o sumário, por exemplo, resulta de uma intensa atividade de bastidores que não estão ali por acaso. Logo, cabe ao pesquisador recorrer a outras fontes de informações para dar conta do processo que envolveu a organização, lançamento e manutenção do periódico.[8]

Verificou-se até aqui, que a utilização da imprensa como fonte, não se limita a pesquisar um ou outro texto isolado, por mais importantes que sejam, mas antes requer uma análise detalhada do seu lugar de inserção e delineia uma abordagem que faz da imprensa, fonte e objeto de pesquisa ao mesmo tempo. A variedade de fontes impressas é enorme, e as suas possibilidades de pesquisa são amplas e variadas. Assim, não é aconselhável prender-se a um único procedimento metodológico, de forma rígida, para a verificação empírica, ou tomar determinada técnica como se fosse um dogma exclusivo de acesso à fonte, pois a variedade de impressos confere um número variado de possibilidades de abordagem, o que exige uma postura atenta para o surgimento do inusitado, que como tal não pode ser previsto por nenhuma técnica friamente constituída. Saliente-se: é importante ter em mãos um ferramental teórico, capaz de apontar procedimentos na condução da pesquisa, mas não se aferrar a ele a tal ponto de deixar passar despercebido algo que brota da fonte impressa e é capaz de elucidar uma série de questões, nem sempre claras quando do início das investigações. Por isso não é viável sugerir um procedimento metodológico ou mesmo técnicas de pesquisa que dêem conta de tantas possibilidades.

Antes de passar ao último tópico do presente artigo, parece oportuno lembrar a importância das críticas interna e externa aos documentos impressos, procurando observar o ambiente em que foram produzidos, a que tipo de sociedade está vinculado, quais os valores e circunstâncias da época, em síntese, entendê-lo no seu contexto para evitar um dos piores pecados do historiador: o anacronismo. Tal crítica ajuda a evitar o imperdoável erro de julgar sociedades do passado tomando como referência o contexto e os valores de hoje.

Em relação à crítica interna, as observações acerca da coerência no trato dado ao assunto por parte do periódico. Questionar-se sobre como o jornal abordou o assunto, por quanto tempo foi veiculado, se houve mudança de posição ou alteração de posturas sobre o tema, quando o assunto em estudo deixou de ser abordado pelo veículo de comunicação, e de que modo fez-se a interrupção das matérias. Estes, entre outros cuidados, são necessários aos que pretendem lidar com periódicos como fonte para a história.

Feito isso, passa-se agora a compreender as dimensões da imagem na pesquisa historiográfica, tendo em vista que a fotografia de imprensa, de igual modo, se constitui em fonte primária para as pesquisas com os periódicos, pois não só as palavras informam, as imagens também tem a propriedade reveladora de expressar muitos posicionamento sobre o assunto que se queria historiar.

Imagens do cotidiano e temporalidades

Sabe-se que no bojo das diversas contribuições dos Annales, está a abertura da gama de fontes a serem trabalhadas pelo historiador, onde a história não se faz mais somente com fontes oficiais e textos impressos, uma vez que, qualquer objeto que traga informações das atividades humanas, seja ele escrito ou não, se constitui como fonte histórica. É por essa razão, que a presente pesquisa não tomará a fotografia jornalística como algo subsidiário, como ilustração do texto escrito, ou em substituição da linguagem escrita, mas sim, enquanto fonte primária, tendo em vista que os mesmos são portadores de discursos passíveis de investigação histórica, obviamente requerendo tais documentos, assim como as outras fontes, procedimentos teórico-metodológicos próprios. Esse alargamento da concepção de fontes trouxe, para a produção historiográfica, uma ampliação das possibilidades de investigação. Conseqüentemente há necessidade de reflexão e problematização dessas alternativas. Entre as alternativas destaque-se a importância do trabalho com as fontes imagéticas que traz, subjacente aos procedimentos de levantamento de documentos e sua análise, a urgência da discussão de suas especificidades materiais, funções e o próprio repensar das noções de imagem.

Não obstante, tem-se todo um universo adicionado à dificuldade, por parte do historiador, de superar a concepção positivista de documento, que privilegia dos textos escritos. As imagens visuais – ainda – não têm o mesmo estatuto do texto escrito, porém a mesma pode ser amplamente utilizada como fonte primária, o que dependerá da problemática e objetivos traçados pelo pesquisador. Muitas pesquisas historiográficas têm avançado nesse campo, elaborando o que poderíamos chamar de uma verdadeira “história da imagem ou visualidade”.

Nesse sentido, é mister considerar a proeminente contribuição deixada pelos autores de: As dimensões da imagem: interfaces teóricas e metodológicas,[9] e que aqui se vai comentar brevemente, provando através de um vasto e diversificado referencial teórico, a superior qualidade que essa fonte oferece ao pesquisador, trabalho este que ajuda romper as fronteiras da história, caracterizando-se pela interdisciplinaridade ao reunir num mesmo espaço historiadores, cientistas sociais e literatos, ambos com um ponto em comum que é o interesse pela linguagem visual. Dimensões da imagem é indicado tanto para quem já realiza pesquisas, quanto para quem pensa em pesquisar documentos imagéticos nas diversas áreas. A obra se divide em três partes. Na primeira, reúne os trabalhos que versam sobre a fotografia e o fotojornalismo, visando apresentar as possibilidades e procedimentos de trabalho com essa material. Num segundo momento, trata-se de observar as discussões concernentes às imagens cinematográficas. Já na terceira, investiga as possibilidades de análises de diversos tipos de produção imagética, destacando a caricatura, o Cartum, o outdoor e a pintura. É por essas razões que o presente estudo elege o referido livro como um dos referenciais teórico-metodológico, para trabalhar os procedimentos de investigação histórica das fotografias jornalísticas, tendo em vista que o mesmo oferece os subsídios necessários para tal abordagem.

No primeiro capítulo, em “a fotografia de imprensa: modos de ver” Sílvia Zanirato, aponta para a necessidade de se trabalhar a fonte imagética não como algo secundário, tendo em vista que a imagem é portadora de discurso, sendo necessário sua decodificação. Para tal, num primeiro momento faz uma discussão conceitual de imagem, estabelecendo um diálogo a partir das idéias de Roger Chartier quando se preocupa em perceber:

o modo como em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler, ou seja, a necessidade de perceber as classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo cultural, os esquemas intelectuais que levam o presente a adquirir sentido, o outro se tornar legível, e o espaço a ser decifrado.[10]

Em seguida, objetivando discutir a fotografia na imprensa, refere-se ao contexto do nascimento da fotografia. Observa-se também, que a imagem captada pela máquina, não se trata de um mero jogo de espelhos, mas sim de um resultado de um processo bem mais elaborado e complexo, que envolve mundo de signos, códigos, ideologia, mitos, histórias, tradições, linguagem, cultura etc. Além disso, outro aspecto que segundo a autora, é digno de consideração é o fato de a fotografia vir sempre acompanhada de algum texto, tendo em vista que essa escrita influi na percepção, leitura e apreensão da imagem fotográfica, a esse respeito acresce-se o fato de nem sempre o texto e imagem encontrar-se em conciliação.

Ler uma foto além do que a legenda sugere, implica olhar para a superfície da fotografia, relacionar suas cores, seu formato, sua disposição na pagina do jornal, perceber a perspectiva de profundidade, identificar gestos, movimentos, operações que se fazem em um aprendizado, que variam conforme a idade e a cultura do leitor.[11]

A contribuição da autora vai além do exposto, investigando algumas fotografias de imprensa, apontando para as competências e habilidades necessárias de leitura dessa fonte imagética. É por essas razões que a aludida obra não pode deixar de ser consultada por quem se interessa pela imagem.

Ainda sobre a questão da imagem, queremos levantar duas questões. Uma de caráter filosófico e outra sociológica.

Filosoficamente a imagem e o imaginário foram vistos no ocidente como de menor valor para os estudos, quando não, desqualificada. Desde Aristóteles, e em razão da própria lógica aristotélica, o raciocínio se apresenta como binário, no sentido de que algo é ou não é. É a lei lógica do terceiro excluído. Desse modo, o ser é ou não é, sendo considerado contraditório que algo possa ser e não ser ao mesmo tempo. Ora, que é a imagem? Ela é o ser, mas ao mesmo tempo não é, pois é representação.

Só mais recentemente, com os estudos de Gaston Bachelard a imagem, a imaginação e o imaginário começaram a ganhar um certo status de cientificidade ou próximo disso. Mas isso se prende, e de modo mais acentuado às características da sociedade atual.

Sociologicamente encontra-se na sociedade de hoje uma explosão de imagens. Seja pelo desenvolvimento do cinema, que deu uma dimensão reprodutiva as artes cênicas inimaginável até um século atrás, seja pelo uso cada vez mais corriqueiro de fotografias que se multiplicam no ciberespaço, seja também pelo próprio desenvolver-se e incrementar-se do mundo virtual, desde as imagens das partes internas do corpo humano, criadas pela medicina, até a virtualização da economia. Tudo parece remeter a uma acentuada valorização e presença da imagem no cotidiano das pessoas.

Caminhando com a filosofia e com a sociedade, a história tem aceitado ocupar-se das imagens que pululam no meio social, considerando-a como objeto de estudo e como fonte, passível de uso para descrever o passado e que o presente trabalho quis observar, pois ocupar-se da imprensa como fonte para a história é levar em conta a onipresença de imagens que retratam o cotidiano e as facetas do tempo.


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Notas

1] Formado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Palmas, Pr., especialista em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná., especialista em História pela UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do Grupo de pesquisa “Imaginário, Complexidade e Educação”, desenvolve estudos nas áreas de Filosofia Política e Epistemologia. Professor da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel e da Universidade Paranaense - UNIPAR, em Cascavel, Pr. E-mail: ivanor@unipar.br ouivanor@univel.br

[2] Mestrando em Estudos de Gênero e Prostituição pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá – PR, sob orientação da Profº Dra. Hilda Pívaro Stadniky. Pesquisador nos grupos de Estudos e Pesquisas, Fronteiras e Populações – Universidade Estadual de Maringá; História Política – Universidade Paranaense e História Sociedade e Educação no Brasil – GT Região Oeste do Paraná – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Correspondente da YBNews Agência de Notícias, Brasília – DF e Consultor Juvenil da área de História do Instituto Internacional para o Desenvolvimento da Cidadania. Bolsista da Capes. E-mail: fabiobidu@hotmail.com

[3] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo : Global, 1988. p. 75.

[4] SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005. p. 159. (verbete fonte histórica).

[5] LUCA, Tânia Regina. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas.São Paulo: Contexto, 2005.

[6] Ibidem. p. 132.

[7] Idem. p.132-139

[8] Idem. p. 140-1

[9] PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo; ZANIRATO, Silvia Helena. (orgs.). As dimensões da imagem: interfaces teóricas e metodológicas. Maringá: Eduem, 2005.

[10] CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. p. 16-7.

[11] ZANIRATO, Silvia Helena. A fotografia de imprensa: modos de ler. In: PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo; ZANIRATO, Silvia Helena (orgs.). As dimensões da imagem: interfaces teóricas e metodológicas. Maringá: Eduem, 2005. p. 23.

[12] As obras relacionadas, embora nem todas sejam citadas ao longo do texto, inscrevem-se no contexto da presente discussão e contribuem para a temática aqui desenvolvidas.

Fonte: Labirinto

Disponível:http://www.cei.unir.br/artigo104.html