Sobre o autor *
Livros didáticos de História são objetos de disputas por excluírem ou representarem de forma preconceituosa heróis e símbolos de grupos minoritários.
O livro didático como fonte de investimento e de preocupações tem suscitado debates dentro e fora das instituições educacionais sobre a sua relevância na construção de identidades e ideologias. É um objeto rico de pesquisa por ser um espaço privilegiado de disputas políticas, uma vez que este é sempre questionado por omissões, produção de caricaturas de personagens históricos e grupos sociais e étnicos, simplificações dos fatos históricos. Nele, existem diferentes personagens e modelos de interpretações em jogo.
O movimento negro, nesta direção, tem acusado constantemente os autores dos livros didáticos de História de oferecerem apenas uma visão branca e eurocêntrica da história do Brasil, deixando em segundo plano a história e a cultura dos povos africanos e afros-descendentes nas suas narrativas. Uma das figuras relegadas ao esquecimento ou à marginalização é o líder negro Zumbi dos Palmares.
Ao compararmos a trajetória da memória de Zumbi e do Quilombo dos Palmares, produzidas pelos livros didáticos de História do Brasil, em um exercício de comparação com as fabricadas sobre Tiradentes e a Inconfidência Mineira, percebemos esta marginalização. A estratégia aqui é perceber como os discursos didáticos forjados ao longo dos séculos XIX e XX constituíram as imagens de Zumbi como um herói racial e as de Tiradentes como um herói nacional.
Durante o período imperial, observou-se na história oficial produzida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), agremiação criada em 1838 responsável pela criação de uma memória nacional, uma certa depreciação do episódio palmarino. As revoltas coloniais eram interpretadas como atentados à unidade da futura nação. Neste caso, deu-se destaque para atuação, por exemplo, dos bandeirantes na destruição de Palmares, garantindo a integridade da Colônia.
Assim como no caso de Zumbi e de Palmares, houve um certo silêncio sobre o movimento dos inconfidentes. Procurou-se apresentar Tiradentes e a Inconfidência Mineira como uma conspiração contra a ordem estabelecida pela Coroa Portuguesa. Destacar a história desta revolta de outra maneira seria incorrer no perigo de alimentar as ameaças republicanas ao Império, uma vez que o país tinha testemunhado uma onda de rebeliões regenciais com traços separatistas que ameaçavam a unidade territorial e o poder da Monarquia.
Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), professor do tradicional Colégio Pedro II, situado no Rio de Janeiro, no seu livro Lições de História do Brasil, ao retratar Zumbi e Palmares, privilegiou os instantes finais dos quilombos, que apareceram ao longo das guerras holandesas, na região da Serra da Barriga, em Alagoas. Na descrição das operações de ataque a Palmares, Macedo ressaltou o valor dos paulistas e a valentia dos atacados e, após muita luta, a vitória da ordem. Quanto aos líderes do quilombo, entre eles Zumbi, o autor anotou que estes preferiram a morte à escravidão, atirando-se do alto de um penhasco. Palmares e a Inconfidência Mineira representavam movimentos de ruptura e contestação do passado colonial português, do qual o Império brasileiro era descendente e tributário. Realçar as lutas da Serra da Barriga e de Vila Rica de forma negativa ou omitir sua memória era uma estratégia para se preservar o discurso de elogio à colonização.
A partir da Primeira República (1889-1930) foi que começou a se pensar Palmares como símbolo da liberdade, e posteriormente o seu reconhecimento como o maior feito da raça africana no Brasil. Zumbi foi retratado como liderança negra, entretanto, representante de um movimento inexperiente de liberdade. Neste contexto houve uma forte leitura abolicionista pelos livros didáticos da história de Palmares e de Zumbi.
Os republicanos criaram uma nova leitura sobre a Inconfidência Mineira, elevada agora à condição de movimento símbolo da luta republicana. A figura de Tiradentes foi entronizada como seu herói e mártir, numa construção épica e nacionalista de fundamentação religiosa bastante evidente. Sua imagem heróica chegou a se aproximar da história de Jesus Cristo em relatos e imagens.
Embora próximos nas suas lutas e nos seus destinos trágicos, Zumbi e Tiradentes tiveram destinos diferentes na constituição da memória histórica a partir deste período. Sob a constelação da era republicana, Tiradentes encontraria seu lugar no panteão dos heróis nacionais como símbolo do novo regime, enquanto Zumbi teria participação secundária, quando não omitida, no discurso histórico didático.
Rocha Pombo (1857-1933), professor do Colégio Pedro II e da Escola Normal, no seu famoso livro didático História do Brasil (Curso superior), nos anos 1920, ao abordar o tema da Inconfidência Mineira, num relato dramático, ampliou progressivamente o espaço dedicado a Tiradentes, cuja atuação foi narrada no sentido de torná-lo o líder da conspiração e o herói sacrificado pela pátria, o que não era feito com a figura de Zumbi, rapidamente comentado na parte sobre os quilombos de Palmares.
Mesmo valorizando a luta dos palmarinos, para o autor, o episódio de Palmares era o lamentável exemplo que poderia separar ao invés de unir por ser um conflito de uma raça. No entanto, na sua leitura, era necessário relatar eventos como este para fazer justiça à História. Trazer a tragédia de Palmares para o palco da História era o caminho para mostrar aos seus leitores-alunos os males que a colonização portuguesa provocou com a instituição da escravidão e a ausência de uma unidade entre as partes em nome da pátria. A violência dos quilombolas, na visão do abolicionista Rocha Pombo, surgia em decorrência do mal maior que era a escravidão. Por isso o projeto de Tiradentes, para ele, era mais completo, uma vez que propunha a construção de um projeto nacional.
O período pós-1930 foi de consolidação do discurso da “democracia racial” pelo Estado, o que influenciou a produção didática. Houve um certo silêncio sobre as revoltas populares como a de Zumbi dos Palmares. A idéia era defender o Brasil como a mistura harmônica das três raças. A ausência das revoltas populares do passado era uma forma de se calar sobre as do presente.
Foi a época de consolidação da figura de Tiradentes no panteão dos heróis nacionais como símbolo da República. Figura cultuada e amplamente representada na memória nacional, recebeu destaque nos livros didáticos, visto como o mártir da Inconfidência Mineira, defensor do projeto republicano e nacional-desenvolvimentista, retardados pela obra colonial. Sua imagem oscilava entre Jesus Cristo e um militar nos relatos e na iconografia.
Escrevendo nos anos 1940 sua História do Brasil para a primeira série ginasial, livro didático amplamente adotado até o período militar pós-1964, Joaquim Silva, professor dos Colégios Andrews e São Luiz, ao narrar a luta contra a Coroa portuguesa, apontou a Inconfidência Mineira como seu ápice, bem de acordo com a tradição republicana. Todo o seu discurso caminhou para a exaltação do martírio de Tiradentes, sacrificado pela violência e crueldade da (in)justiça portuguesa.
Ao tratar da história da escravidão e de Zumbi e Palmares, Joaquim Silva afirmou que não era a escravidão que provocava a rebeldia dos negros, e sim os excessos cometidos pelos feitores a mando dos senhores. Neste sentido, o autor tratou bem superficialmente a história dos quilombos no Brasil, em especial Palmares. Os conflitos entre senhores e escravos apareciam de forma marginal no seu texto didático, preferindo pensar uma imagem menos nociva e pesada da instituição da escravidão. A opção por passar este tipo de imagem estava vinculada à forte imagem do país como paraíso racial presente na cultura brasileira, em especial nas propagandas do Estado tanto na era Vargas, quanto na ditadura militar pós-1964.
Inspirados nas lutas da militância contra a ditadura militar no Brasil e nas proposições de autores de tradição marxista como o intelectual uruguaio Eduardo Galeano e o jornalista e professor Léo Huberman, a produção didática a partir dos anos 1980 privilegiou Zumbi como o rei palmarino, que imprimiu uma resistência quilombola contínua contra o poder colonial. Priorizou-se a história de Palmares mediante os aspectos político e revolucionário. Zumbi constituiu-se muito mais como um herói da raça negra do que nacional. Era um símbolo de uma história didática engajada e militante.
Os livros didáticos desse período trouxeram um forte discurso de exaltação do martírio de Tiradentes, sacrificado pelas atrocidades do poder colonial. Houve a construção de um herói popular nacional traduzido na figura do pobre alferes. Era o símbolo da nova República, que procurava se identificar com heróis populares. Tiradentes era restaurado como o herói da abertura e da redemocratização, traduzindo a esperança de um povo.
O livro didático História & Vida, dos irmãos e professores de História Nelson e Claudino Piletti, publicado nos anos 1980, lamentou a violência praticada em Palmares porque este era um exemplo de espaço de liberdade e respeito dentro da Colônia corrompida. Ao contrário de outros autores, os Piletti ressaltaram com maiores detalhes a figura de Zumbi, o líder dos quilombos, reforçando sua imagem heróica, por meio de sua bravura e da forma como este morreu lutando por seus ideais. A narrativa da morte de Zumbi aproximou-se muito, em alguns aspectos, da feita sobre Tiradentes.
Na leitura dos Piletti, Zumbi e Palmares representavam exemplos de luta contra as injustiças presentes no passado colonial nacional que precisavam ser exaltados. Narrar sua história seria denunciar o mito da “democracia racial” e a idéia da escravidão amena e benigna. Tiradentes e a Inconfidência Mineira continuariam, para eles, a ser um exemplo por excelência de luta contra a colonização portuguesa e as suas atrocidades.
Diante da exaltação da figura de Tiradentes, eleito o representante do sentimento nacional no passado colonial brasileiro, restou o silêncio ou um papel secundário ao líder dos quilombos de Palmares por parte da memória oficial nacional do século XX presente nos livros didáticos de História do Brasil.
Zumbi estaria ligado ao heroísmo de uma raça e de um modelo de rebeldia que incomodava a ordem estabelecida. Ele seria a lembrança de um passado de conflito racial, uma mácula para o mito da “democracia racial”. Zumbi e Palmares não seriam um exemplo de luta necessário à construção da idéia harmônica de nação. Eles separavam, não uniam. Tiradentes e a Inconfidência Mineira uniam, não separavam. Era o interesse nacional acima de todas as diferenças. Era a libertação da colônia do jugo da Coroa portuguesa.
Em produções didáticas mais recentes inspiradas nas novas propostas dos Parâmetros Curriculares Nacionais e da historiografia contemporânea, identificamos a preocupação em trabalhar com os alunos a idéia de como os heróis e mitos são historicamente construídos. Os professores Andrea Montellato, Conceição Cabrini e Roberto Catelli Junior, na Coleção História Temática, no volume “Diversidade Cultural e Conflitos” (6ª série), trazem textos e atividades que ajudam os alunos compreenderem o que são os mitos e heróis e como eles são interpretados de acordo com cada época. A imagem do Tiradentes é abordada no contexto da Inconfidência Mineira, mas também como parte da invenção do panteão nacional republicano. Há um capítulo neste volume dedicado às resistências à escravidão por parte dos escravos, com destaque para a história do Quilombo dos Palmares. A figura de Zumbi ganha relevo na narrativa e é destacado como a sua história é apropriada como símbolo da luta contra o racismo pelo movimento negro. No entanto, as disputas simbólicas não se encerram nestas páginas.
Um exemplo destes conflitos de reconhecimento pode ser percebido na polêmica sobre a oficialização ou não do 20 de novembro como feriado nacional. Não há um consenso quanto a oficialização da data dentro do calendário oficial nacional, delegando-se todos anos o seu cumprimento ou não aos governos estaduais e municipais. Este impasse tem sido motivo de contestação pelo movimento negro que definem o 20 de novembro e a figura de Zumbi dos Palmares como símbolo de luta de seu povo contra a discriminação e o racismo, um legítimo herói nacional.
Referências Bibliográficas:
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* Professor Assistente Mestre do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) – Campus Universitário de Rondonópolis; Doutorando em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); organizador dos livros O negro em folhas brancas (IFCH/UNICAMP, 2002) e Ensino de História: trajetórias em movimento (Editora da UNEMAT, 2007). Este texto, originalmente, foi apresentado no V Encontro Regional de História – ANPUH/Seção Mato Grosso, realizado na Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Universitário de Cáceres no mês de novembro de 2008. Contato: rrrenilson@yahoo.com
Fonte:História e-História
Disponível em:http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=78