Pequeno reino situado à beira do Oceano Atlântico, Portugal dos começos do século XIX sentia-se como um molusco aturdido entre a violência do mar e a solidez do rochedo. Era uma "orelha de terra" premida de um lado, do lado do mar, pelo Império Britânico, senhor das águas do mundo de então, do outro, o do rochedo, pelo Império Napoleônico, comandado pelo mais brilhante general da história européia. Qual seria o seu destino?
Portugal devia desaparecer
Embarque da Corte, 1807( tela de Nicolas Delerive) |
Decretado o Bloqueio Continental por Napoleão em Berlim, em 21 de novembro de 1806 (visando isolar e levar a Grã-Bretanha a bancarrota em resposta a vitória do almirante Nelson na batalha de Trafalgar, em 21 de outubro de 1805), aguardou o imperador a obediência dos demais estados europeus a que não negociassem mais com Londres.
Portugal, entretanto, tinha históricas ligações com a coroa inglesa, sendo que praticamente naquelas alturas vivia na raia protetora das embarcações inglesas.(*)
Não havia modo do Regente português, o príncipe D.João, aceitar a imposição ordenada por Bonaparte sem que de imediato pusesse em perigo todas as suas colônias do ultramar. Colocou-se frente a uma situação extrema: se traísse os seus velhos aliados perdia o que lhe restava das possessões espalhadas pelo mundo, se desobedecesse a Napoleão seria invadido.
Exatamente isso, de por um fim às hesitações do Bragança, foi o que se tratou em Fontainebleau, em 27 de outubro de 1807, por ocasião do acordo secreto assinado entre franceses e espanhóis tendo em vista a posição de falso neutralismo de D.João. Como deveria ocorrer a ocupação de Portugal?
Antes de tudo a Espanha aceitaria tropas francesas, comandadas pelo Marechal Murat, em trânsito para fronteira de Portugal. Encerrada em seguida a invasão, o território ocupado seria dividido em três partes: o Reino da Lusitânia Setentrional , compreendendo o Porto e seus arredores, seria da rainha regente da Etrúria (como compensação pela entrega da Toscana aos franceses); o Principado do Algarves (com o Alentejo) ficaria para Manoel de Godoy, o Príncipe da Paz, ministro supremo do reino da Espanha; por fim, as Províncias da Beira, Trás-os-Montes e Estremadura, sob controle direto francês estaria à disposição de uma negociação futura.
Davam-se assim os passos para por fim à independência do reino lisboeta( sem que com tudo revertesse à situação de 1580, começo da União Ibérica, quando Portugal foi incorporado ao reino de Filipe II). Deste modo, numa só sentada, o reino autônomo que fora restaurado pelos Bragança em 1640, desapareceu no mapa do Império Napoleônico, subdividido em três minúsculas províncias.
(*) O mais remoto acordo acertado entre a Inglaterra e Portugal remonta ao Tratado de Londres de 16 de Junho de 1373, ocasião em que João de Gante deu a mão de sua filha, Filipa de Lencastre, a D. João I - ato que selou a aliança política. A influência de Filipa de Lencastre foi notável, tanto no ponto de vista da sua descendência (a Ínclita Geração) bem como pela sua intervenção no que diz respeito às relações comerciais entre Portugal e Inglaterra, incentivando as importações de bacalhau e vestuário de Inglaterra e a exportação de cortiça, sal, vinho e azeite, a partir dos armazéns do Porto. Situação que foi mais consolidada pelo Tratado de Windsor de 1386 acertando favores comerciais e defesa conjunta.Esta relação adquiriu caráter definitivo pela assinatura do Tratado de Methuen, de 1703, tão criticado, que trocava produtos portugueses primários por material mecânico e têxtil dos ingleses.
Dependência Ibérica
O eixo Londres-Lisboa contrapunha-se ao de Paris-Madri. Natural fosse que quando ingleses e franceses crescentemente se rivalizavam pelo domínio do império do mundo, metendo-se em guerras (desde o começo da Guerra dos Sete Anos, em 1758, até a derrota de Napoleão em Waterloo, em 1815), arrastavam consigo os reinos ibéricos, forçando cada um deles a alinhar-se a um dos lados.
Ainda que a Espanha de Carlos IV, por razões ideológicas e de sangue (tinha parentesco com os Bourbon franceses), tivesse reagido à execução de Luis XVI, em 1793, enviando tropas juntamente com Portugal para assolar a jovem República Francesa na região do Languedoc-Roussillon (na campanha do Rossilhão, de 1793-5, desbaratada pelos generais republicanos que aplicaram derrota aos luso-espanhóis), Madri logo se deu conta que não podia voltar-se contra Paris, não importando o regime radical que de lá governasse, pois justamente a França era a principal fiadora do seu império ultramarino, permanentemente ameaçado pela cobiça britânica.
Fez então o acordo franco-espanhol de 1795, o Tratado de Basiléia, assinado em 22 de julho daquele ano, que projetou o nome de Manoel de Godoy, o plenipotenciário que representava o rei Carlos IV, e que logo ostentou o título de Príncipe da Paz. Por ele, a Espanha voltava a pôr-se ao abrigo de Paris, entregando em troca metade da ilha de São Domingos (Haiti).
Portugal, apesar de ter acolhido tropas inglesas em seu território, insistia retoricamente em manter-se neutro, tentando equilibrar-se em meio aquela confusão. Situação que conseguiu prolongar com estratagemas por mais doze anos com artifícios de toda ordem.(*)
(*)com exceção da curta invasão sofrida desde o Alentejo, liderada por Manoel de Godoy, no conhecido episódio chamado jocosamente de Guerra das Laranjas, de 1801, e que veio assinalar o começo da longa Guerra Peninsular, travada entre os reinos ibéricos, a Grã-Bretanha e a França, que se estendeu até 1814. Portugal safou-se do pior assinando o Tratado de Badajoz, de 6 de Junho de 1801.
O Brasil, por sua vez, fechado para o mundo desde 1605, como grande parte das possessões ultramarinas, passou a ser alvo do interesse britânico, ferindo o monopólio luso, arrancando aqui e ali concessões da metrópole Lisboeta.
Uma corte infeliz
D.João e Carlota Joaquina, um casal infeliz (tela de Manuel Dias de Oliveira) |
Em 1792 cedera de fato a autoridade ao seu filho D.João, seu secundogênito, um príncipe de escasso humor, com tendência a engordar, baixo e muito feio, que "dormia no teatro e deliciava-se na igreja".
Para o cúmulo da desdita ele casara com D.Carlota Joaquina, infanta espanhola de gênio temperamental, uma quase anã sem atrativo de beleza, manca e belicosa, "com os impulsos do sexo alvoroçados", que, entre outras coisas, conspirava contra o poder do próprio marido.
Situação que fez com que ambos vivessem separados, ela no Palácio de Queluz, o marido no Palácio-convento de Mafra (apesar disso, o casal teve uma ninhada de nove príncipes e princesas). Tudo isso envolto num cenário de beatice resignada, de procissões, de jejuns e flagelações, de missas em favor a quantidades infinitas de santos e santas, num um ar de tristeza mórbida. A Coroa infeliz reinava sobre "uma infeliz nação", distante do restante da Europa em usos e costumes, "que se julga andarem os portugueses ter séculos atrás das demais nações" (Hipólito da Costa – Correio Brasiliense, vol III, 146).
O jovem regente era famoso por apavorar-se com trovoadas e com as "conspirações jacobinas" que estavam a atentar contra ele, a maioria delas supostas ou inventadas por Pina Manique (1733-1805), um intendente-geral da polícia, feroz perseguidor de liberais e "pedreiros-livres" (maçons), explorava a inclinação assustadiça do soberano com pavores mil, fazendo-o acreditar estar Lisboa, quando não a própria Barraca Real, o Palácio da Ajuda, apinhada de punhais de Bruto, de doidos ou de revolucionários, prontos a abatê-lo em cada canto ou por detrás das cortinas. (*)
(*) A paranóia de D.João, o pavor a ser atacado das sombras, é que determinou uma curiosa reforma nas janelas do Rio de Janeiro. Quando a corte por lá se fixou em 1808, temeroso que pudessem embosca-lo de alguma delas, cobertas por rótulas de madeira, autorizou ao intendente-geral da polícia, o ouvidor e desembargador Paulo Fernandes Viana, que ordenasse que elas devessem ter vidraças para desse modo expor e assim desestimular um possível regicida. (ver Laurentino Gomes "1808", pág.230).Transferir o trono de lugar
O plano de levar o trono para a outra beira longínqua do Atlântico Sul não era novo entre os portugueses. Em ocasiões outras, monarcas premidos pelas circunstâncias infelizes, como foi o caso de d.João IV (1604-1656), na época do padre Vieira, já haviam cogitado em transferir-se para os trópicos, pelo menos como uma solução transitória no intuito de escapar ao sufoco de algum invasor.
Na época do regente D.João, a mais clara exposição de motivos para realizar a operação foi dada pelo Marquês de Alorna num arrazoado escrito seis anos antes da retirada, por ocasião da Guerra das Laranjas, em que dizia:
"A balança na Europa está tão mudada que os cálculos de há dez anos saem todos errados na era presente.Em todo caso o que é preciso é Vossa Alteza Real continue a reinar, e que não suceda à sua coroa, o que sucedeu à da Sardenha, à de Nápoles e o que entra no projeto das grandes potências que sucede a todas as coroas de segunda ordem na Europa.
V A .R. tem um grande império no Brasil, e o mesmo inimigo que o ataca agora com tanta vantagem, talvez trema e mude de projeto, se V.A .R. o ameaçar de que se dispõe a ir ser imperador naquele vasto território adonte facilmente pode conquistar as colônias espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as potências da Europa.
Portanto é preciso que V. A .R. mande armar com toda a pressa todos os seus navios de guerra, e todos os de transporte, que se acharem na Praça de Lisboa – que meta neles a princesa, os seus filhos,e os seus tesouros, e que ponha tudo isto pronto a partir sobre a Barra de Lisboa(...) (carta de 30 de maio de 1801, citada por Oliveira Lima- D.João VI e o Brasil)
Sem alternativas
O general Junot entrando em Lisboa (27/12/07) |
O exército português, reduzido a uns 10 ou 12 mil homens mal armados e pior adestrados, não era páreo para nenhuma das divisões de Napoleão (independente do fato de observadores terem apontado o estado lastimável dos regimentos franceses que chegaram à capital). Por conseguinte, o príncipe que se sabia pouco talhado a ser herói, não podia enfrentá-lo. D.João não tinha inclinação em se fazer de Davi para abater o Golias napoleônico. Ficar e resistir era perder o trono e a liberdade. Dele, da sua família e do reino inteiro.
Escafeder-se pelo oceano com tudo o que pudesse carregar pareceu-lhe o mais sensato, e de fato o foi. Pouco importa que chamassem isso de "fuga", ou de "ato covarde", pois o que imperou foi o bom senso. Quando, por fim, as vanguardas esfaimadas do exército o general Junot adentraram em Lisboa em 30 de novembro de 1807, vindos de uma campanha rápida e sem resistências, o comboio naval lusitano já inflara as velas. Levando umas 15 mil pessoas expremidas a bordo de 35 embarcações, apoiado por reforços ingleses da esquadra do almirante Sidney Smith, já fazia três dias que se desferrara do cais de Belém. O preço desse amparo à corte em retirada era a abertura dos portos do Brasil ao comércio britânico.
Somente na manhã do dia 29 de novembro conseguiu os ventos necessários rumando então para o alto mar, emproado em direção ao Brasil. Era o estado português inteiro, fundado 664 antes por D.Afonso Henriques, que se transladava para o exílio. Deixava atrás de si um povo pasmo e indignado com aquele abandono do que chamaram de "rei fujão".
Da barra do Tejo, qualquer francês com lunetas podia vislumbrar alguns mastros ao longe se indo embora; impotentes, outros viram-nos de cima dos morros da capital.
Bibliografia
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Fonte: Voltaire e Shilling
Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/