21.11.09

O SESQUICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL: A ESCRITA DE UM DISCURSO E A MEMÓRIA COMO SEU FUNDAMENTO

por: Joselia de Castro Silva 1 & Talita Veloso Cerveira 2
Em 1972, foi montada no Rio de Janeiro, no Museu Nacional de Belas Artes, a exposição “Memória da Independência 1808-1825”, cujo objetivo era comemorar a Independência do Brasil. Em meio a diversas comemorações, esse evento oficial tinha como objetivo não apenas homenagear o passado e seus principais personagens históricos, mas construir um discurso bem específico que começava em 1808, tinha em 1822 seu ponto culminante e terminava em 1972 apontando projeções para o futuro. Em um momento bem delicado para a história política do Brasil, a celebração, por meio dessa leitura, pretendia elaborar um discurso histórico e transformá-lo em memória nacional.

Palavras chave- Memória - Comemorações – Ditadura

ABSTRACT: The “Independence Memory 1808-1825” exhibition was designed in 1972 with the purpose to celebrate the Independence of Brazil.Among several commemorations, this official event aimed not only to pay homage to the past and its main historical figures, but also to construct a quite specific discourse, covering a period which began in 1808, reached its climax in 1822 and ended in 1972 pointing at projects for the future. The celebration, interpreted in such a way, meant to elaborate a historical discourse capable of shaping the memory of the nation.


“Trazer à memória; lembrar ou ainda festejar (data, realização etc.). Ato ou efeito de comemorar”. Do latim commemorationis. Comemorar “fazer recordar, lembrar”, “solenizar, recordando” do latim commemorare.
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Em todas as definições que apresentam a origem etimológica da palavra comemoração, encontra-se referência à prática da memória. Não existe comemoração sem reminiscência de repetição do passado. A celebração traz consigo uma memória e, ao mesmo tempo, uma projeção para o futuro, representando de uma só vez a idéia de imortalidade e de indestrutibilidade, num jogo de imagens que acabam pertencendo ao imaginário, à projeção de um desejo, muito mais do que uma antecipação da realidade.
Separar a prática das celebrações e festas do conceito de memória social seria um erro. Toda comemoração requer a valorização de acontecimentos passados comuns a um determinado grupo social: seja um país, uma pequena comunidade ou até a um indivíduo.
As celebrações sempre foram vitais ao bem-estar da sociedade. Elas pontuam a vida com rituais, cerimônias e eventos festivos. Além disso, são uma força de coesão para as tensões e conflitos sociais. Solene ou insignificante, séria ou alegre, elaborada ou simples, comemorações cumprem sobretudo funções normativas, ao mesmo tempo em que são necessárias ao bom funcionamento de algumas sociedades. Entretenimentos, feriados, calendários específicos, ritos religiosos, aniversários de líderes políticos, comemorações nacionais, paradas, festivais e carnavais sempre existiram; contudo, as formas de celebrar um acontecimento ou alguém podem mudar e suas implicações variam com determinada ordem social.
A partir do século XVIII, houve uma expansão das práticas celebrativas, sobretudo na Europa. John R. Gillis afirma que “isso começou a mudar como resultado das revoluções políticas e econômicas do final do século XVIII”. Segundo ele, “a demanda por comemorações veio, principalmente, das classes médias e trabalhadoras urbanas numa gradual expansão. Hoje, a maior parte das pessoas é obcecada em recordar, preservar e lembrar”. Durante o desenvolver do século XX, cada segmento social ansiava por deixar preservada sua memória, utilizando, para isto, a comemoração. Essa prática, entretanto, não impede que as celebrações de caráter nacional permaneçam constantes, pois afinal são responsáveis pelo desenvolvimento de uma memória nacional: fenômeno que agrega diversas pessoas que não necessariamente se vêem, ou ouvem falar umas das outras, mas que as ajuda a construir a idéia de que possuem uma história comum.
No Brasil, festas e fenômenos comemorativos existem desde os tempos coloniais com a função de sacramentar o domínio metropolitano. Já durante a independência, a instituição oficial de novos calendários fez parte de uma estratégia de recriação da unidade política para combater as tensões regionais e sociais. Na verdade, tais festas configuravam parte de um processo de construção e legitimação tanto do regime imperial brasileiro quanto da dinastia que ocupava o poder político.
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Durante o início do período republicano, as comemorações foram construídas em cima de um imaginário relacionado ao surgimento e à consolidação do novo regime, com grande utilização de fontes iconográficas e monumentos.
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No início do século XX, merecem destaque os investimentos feitos por conta das celebrações dos cem anos da Independência do Brasil, comemoradas em uma exposição internacional denominada “Exposição do Centenário de 1922”. Assim, ao longo do período republicano, houve uma série de construções de eventos comemorativos relacionados às especificidades e necessidades de uma determinada conjuntura.6
Durante o governo militar não poderia ser diferente. A comemoração do sesquicentenário, portanto, é vista aqui como um ato social que representa um fenômeno de necessidade de coesão, organização e ordem, que se expressa através de uma cultura sensorial e persuasória que põe em evidência a complexidade sociopolítica do evento organizado em 1972, momento de reiteração da ordem política militar, mas também de autopromoção para as novas possibilidades de desenvolvimento econômico.
Em espaços públicos museológicos, o ato de comemorar se relaciona à perpetuação e elaboração de uma narrativa. Há, portanto, uma função pedagógica presente nestes espaços.
Ao elaborar uma exposição, estão presentes processos como a criação de conhecimentos científicos a partir de determinado contexto acadêmico político, seleção e priorização de um conteúdo por um grupo social que possui algum marco ou motivo interpretativo. Dessa forma, surge um discurso museográfico. Diferentes saberes estão em diálogo/conflito na constituição de um discurso expositivo. Em cada museu, dependendo da finalidade da exposição, diferentes saberes irão legitimar este discurso.
A exposição comemorativa do sesquicentenário da Independência do Brasil pode ser considerada uma unidade pedagógica, aonde o visitador iria em busca da compreensão de uma mensagem: a compreensão de um sistema didático existente no espaço, neste caso, no Museu Nacional de Belas Artes.
Ao ser elaborada, uma exposição requer seleção de conteúdos, e está condicionada tanto por elementos internos, como a história, quanto a elementos externos, relacionados à forma de apresentação (comunicação visual), aos financiamentos, à administração e gestão do museu, à origem e especificidade do acervo, entre outros. São diferentes os aspectos responsáveis que influenciam a seleção de conteúdos, além da própria construção do discurso expositivo. Estes poderão ser de ordem científica, de ordem política ou econômica, históricas, entre outros. Segundo Michel Foucault,

em toda sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhes os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua temível materialidade. 7

Trazendo à tona imagens que rememorassem os tempos da transferência da corte portuguesa ao Brasil até os primeiros anos da independência política do país, o Governo Federal, baseado em uma idéia de unidade política e ideológica, elaborou um projeto no qual as comemorações oficiais do sesquicentenário foram, ao mesmo tempo, transformadas em lembrança, documento e narrativa histórica, portanto discurso e, principalmente, ato político. Cabe mais uma vez lembrar as análises de Foucault relacionando o discurso e sua construção à vontade de poder, neste caso a perpetuação do poder político militar, o único capaz, como será mais tarde analisado, de perpetuar um desenvolvimento econômico digno do Brasil.
As festas em torno das comemorações possuíam, entre suas principais funções, a celebração do passado com a intenção de legitimação do regime e a abertura para o futuro através da projeção de expectativas. Com a celebração, mobilizavam-se os indivíduos, pois estes deveriam se sentir como peças fundamentais do processo pelo qual o país atravessava. O futuro dependia – como dizia uma peça publicitária da época – da “união de todos”.
Essas celebrações não possuíam um caráter de festa apenas com o sentido de uma reunião alegre com um fim de divertimento, mas com significado mais relacionado a um conjunto de cerimônias com as quais se celebra qualquer acontecimento, solenidade ou comemoração. Assim, em função da intenção de se legitimar ações e enfatizando uma coesão grupal por meio de uma amálgama de elementos patrióticos evocados por apelações emocionais, a população, ao acompanhar a organização e visitar as comemorações do sesquicentenário da independência, era imbuída da importância que o governo atribuía à história. O Brasil deveria festejar o sesquicentenário; para tanto, o amor e a participação foram salientados. Assim, a história e alguns de seus fatos eram vistos como determinantes para a riqueza da nação, e sua lembrança garantia uma boa cidadania.
A partir da memória que se queria resgatar, construiu-se uma narrativa histórica, que hoje proporciona uma vasta e importante análise das relações de poder da sociedade da época.
É pertinente aqui a afirmação de Roger Chartier de que o objetivo da história é identificar o modo como, em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. “Memória da Independência 1808-1825” nos possibilita hoje a visualização da singularidade de uma sociedade, no que diz respeito a seu contexto social, temporal, econômico, cultural e político.
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No caso das comemorações dos cento e cinqüenta anos de independência política do Brasil, que conceito de memória está sendo trazido à sociedade? Antes de responder a tal pergunta é preciso ter em mente que não há como negar que toda lembrança está associada ao esquecimento. Mas como não esquecer? De acordo o filósofo Bergson, nas palavras de J. C. Filloux, a lembrança jamais pode nascer, se não se cria à medida que é criada a própria percepção.
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Mesmo nas sociedades nas quais a memória individual era transmitida ao coletivo, à sociedade, por via oral, havia a necessidade de regras – a língua – e de suportes – o indivíduo – para que acontecimentos passados fossem transmitidos.
Atualmente, com a rapidez na produção de informações trazidas sobretudo pelos avanços tecnológicos, o fantasma do esquecimento parece muito mais presente. Sobre este fenômeno, afirma John R. Gillis: “Enquanto o mundo implode sobre nós, sofremos uma pressão ainda maior, como indivíduos, para registrar, preservar e coletar”.
10 Onde e como arrumar suportes para a transmissão da memória? Nos dias de hoje, a memória social depende de suportes para que possa se reproduzir. De acordo com José Neves Bittencourt: “A construção de tais suportes é uma operação de memória, tanto quanto lembrança e esquecimento também o são. E, enquanto operação de memória, a construção de suportes é um ato social”.11
Ao resgatarmos o passado na intenção de recuperar uma memória, ele passa a possuir algum significado. Não se pode reconstruir o mundo; pode-se abrir caminho para as informações que, recuperadas, serão investidas na realidade.
Ainda segundo Bittencourt:

O conteúdo da lembrança é uma informação; a memória é continente de informações – elementos capazes de regular as relações do sujeito com a realidade objetiva. Informação/memória – é, de fato, uma relação, capaz de recolocar o sujeito, ou o grupo de sujeitos, com respeito ao meio ambiente em que se encontram inserido. A rede assim tramada é extremamente complexa, pois não se limita simplesmente ao par ao qual acabamos de nos referir. Do ponto de vista do indivíduo, dos grupos e das sociedades, a realidade apresenta-se sob a forma de um sistema simbólico, no qual os signos que o compõem nunca são plenos, quer dizer, nunca cumprem plenamente a função de indicar ou representar alguma coisa. O símbolo traz sempre um certo grau de ambigüidade […]. Mas os conteúdos inerentes a um sistema simbólico são informações, e estas são menos ambíguas […].12

A partir do momento em que um grupo em exercício do poder se autodelega a função de julgar o passado e o que deve ou não ser esquecido ou lembrado, sacramenta-se então um lugar a partir do qual se deve ler a História. Assim, foi a partir da dialética entre rupturas e continuidades em relação ao passado, presente e futuro, que se elaborou um discurso que pretendia marcar na sociedade concepções e conceitos, onde a história foi transformada em memória.
A afirmação e reafirmação da nacionalidade a todo o momento destacada pelos organizadores do evento, relacionando memória, nação e símbolos, tornam pertinentes as análises feitas por Nora sobre os meios de organização da memória na sociedade moderna, que necessita conservar informações utilizando-se de instrumentos que sacralizam o passado em si, através de monumentos, museus, imagens, exposições. Infere-se, dessa forma, o que o autor conceituou como “lugares de memória”, que resultam da necessidade de preservação da identidade.
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Ainda seguindo as análises de Nora: “Quando a memória não mais está em todo lugar, ela não estará em lugar algum a não ser que se tome a responsabilidade de recapturá-la através de meios individuais”.
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Toda funcionalidade presente nos espaços simbólicos possuía então uma interpretação do passado montada pelo grupo de intelectuais eleitos pelo governo, em um esforço de construção de uma memória histórica nacional, pelo exercício da lembrança, a partir da elaboração de um discurso que se pretendia hegemônico. Os objetos selecionados para a exposição, um lugar de memória, não eram apresentados para a transmissão de qualquer informação. Na medida em que o Museu Nacional de Belas Artes representava um lugar de preocupação com o passado, preservando-o, seus objetos não eram vistos apenas como coleções ou relíquias, mas como fontes de interpretação. Representavam, portanto, a transformação de monumentos em documentos. Sobre essa transformação, afirma Jaques Le Goff:

[...] o que sobrevive não é um conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam a ciência do passado, os historiadores.
Esses materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador.
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A memória que se pretendia construir e perpetuar quando das comemorações dos cento e cinqüenta anos de independência não era qualquer uma. A organização, escolha e disposição dos objetos trabalhados nas exposições muito têm a revelar sobre que produção do conhecimento histórico era pertinente à realidade política da época. Dessa maneira, mais uma vez citando Le Goff :

A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual, e coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje...; mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e objeto de poder.16

A partir destas observações feitas por Le Goff, vê-se que esses materiais de memória existem sob duas formas principais: o monumento, que Le Goff classifica como “herança do passado”; em contraponto ao documento, que seria uma “escolha do historiador”.
O documento enquanto um suporte de informações só é preservado e colocado em exposição mediante a vontade de alguém: historiador, museólogo. Os objetos não nascem como documentos. Não surgem com uma função documental nem representacional; isto só ocorre mediante a vontade de um indivíduo ou grupo, ou seja, mediante uma intervenção social.
A Escola dos Annales, desde seu surgimento, amplia o conceito de documento, sugerindo ao historiador que utilize os textos escritos quando estes existirem; caso não existissem, a história poderia ser feita a partir de outras informações pertinentes pesquisadas com habilidade pelo historiador.

Paisagens e telhas. Com as formas do campo e as ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo que, pertencendo ao homem demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.17

A palavra documento passa a ser entendida de modo a compreender não apenas o documento escrito, mas também o ilustrado, sonoro, transcrito pela imagem ou de qualquer outra forma.
Dessa maneira, os dois conceitos se aproximam. O monumento pode ser considerado como um documento não escrito. Para isto, basta a atitude do historiador de colocar à parte, como documento, um objeto antes classificado de outra maneira. Da mesma forma, o documento também tem função de monumento, uma vez que sua existência não aparece do acaso, mas da ação deliberada da sociedade que o fabricou como legado às gerações futuras, de acordo com uma correlação de forças no poder, ou em luta pelo poder. Não existe um documento objetivo, primário, sem intenções.

O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas de impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe documento verdade. Todo documento é mentira.18

O documento/monumento é um material de memória que precisa ser desmontado. Somente esse desmonte, a análise do documento enquanto monumento, permite que ele seja compreendido dentro do processo de construção da memória coletiva. Somente uma análise da exposição enquanto documento/monumento permitirá uma compreensão das pretensões políticas e sociais presentes na narrativa histórica elaborada pelo regime.
No espaço do Museu Nacional de Belas Artes, um contingente de informações que deveria se transformar em memória aparecia na medida em que era recolocado no presente através de identificação, classificação e exposição do testemunho: os objetos/documentos. O processo desenvolvido não inaugura caráter de suporte de memória no objeto – este já chega à exposição com tal qualidade. O que o trabalho desenvolvido pelos especialistas faz é devolver o suporte de memória a um contexto: historicizá-lo. Isto significa colocá-lo em sintonia com o discurso histórico construído pela exposição: um discurso que buscava recuperar a tradição, entendida como a glorificação do passado. Promover a propaganda não só de pessoas exemplares como D. João VI ou o Príncipe D. Pedro, mas da estrutura da qual fizeram parte: a mobilização para o ideal do passado como fonte do presente.
Citando mais uma vez José Neves Bittencourt:

Colocar objetos em um museu é, pois, como pendurar quadros em uma parede. Vistos, eles forçam a lembrança, ou pelo menos forçam a uma interrogação, que é melhor do que o total esquecimento. Os museus são lugares de memória, lugares de lembrança. Lembranças que afloram, e que apontam para o passado, não como ele foi, mas como ele é lembrado, e, assim, reconstruído. É esta sua parte na negociação – executar um trabalho que está além das forças do possuidor do objeto, seja ele gerador ou doador. Sua exposição, ou mesmo suas reservas técnicas garantirão a conservação da memória de forma não inteiramente aleatória. E isto será feito pela operação dos suportes de memória, tratados como suportes de informações.19

O museu começa então um trabalho de sedução do público, que busca conduzi-lo a conclusões, apresentando-lhe um discurso elaborado pela instituição. Este pode ser lido por meio da disposição dos itens materiais, com relação às informações que o observador traz ou até aos objetos selecionados para figurar o evento, construindo dessa forma um discurso que deve se transformar em memória histórica.
O discurso histórico construído para o evento oficial aspirava proporcionar aos indivíduos uma idéia de continuação em relação ao passado, de continuidade com antigas tradições, embora o Estado tenha rompido com o conceito da democracia moderna liberal. O voto não era mais um direito. O exercício eleitoral estava vetado à população. Este fato, contudo, em épocas de festejar, acabava por ser praticamente esquecido, até porque era isso que o governo desejava. Entretanto, para suprir esta perda, foi então “oferecida” uma importância participativa ao público nas celebrações. A este não caberia apenas o papel de visitar a exposição e acompanhar seus preparativos pacificamente, ele era também peça fundamental na construção de uma nova nação. Mesmo que não através de direitos políticos, os indivíduos eram convidados enquanto sujeitos históricos a participarem como responsáveis na elaboração de um Brasil melhor que se projetava estar surgindo, embora suas participações fossem restritas, já que os passos que seriam dados já estavam traçados, e os que ainda não estavam não eram de competência do povo, mas do Estado militar.
Enquanto parte das comemorações dos cento e cinqüenta anos de independência do país, a exposição “Memória da Independência” foi um espaço de perpetuação, divulgação e construção de memória histórica subsidiado pelo governo de Médici, em seu próprio benefício.
Na intenção de reforço da memória, a comemoração chama o povo e faz com que este se sinta ativo em meio a um processo em que, na verdade, não tem grande participação na elaboração do discurso que se pretendia difundir, mas apenas, estrategicamente, na difusão e perpetuação da memória, através da história, pois servem como alvos para a popularização do passado.
A participação do presidente da República em festejos por todo país, como em desfiles, torneios e conferências, era um incentivo à participação das demais pessoas, pois servia como um elo de identificação ao nacionalismo. A celebração não explicitou apenas uma continuidade com o passado, mas também o trouxe para o dia-a-dia, ou melhor, para o cotidiano; ela foi também um momento privilegiado de utilização do espaço público como símbolo de expectativas.
Em um processo de seleção dos registros da tradição e da história a partir da idéia de continuidade, ordem e desenvolvimento, a elaboração dos festejos para as comemorações do sesquicentenário em 1972 tornou o evento um grande difusor da ideologia da consciência nacional, patriotismo, nacionalismo e identidade nacional.
Sobre a relação entre comemorações, identidade e memória, John R. Gillis acrescenta:

Hoje, parece que todos reclamam o direito a sua própria identidade […]. Ironicamente, intensas lutas por identidade e memória eclodem no exato momento em que psicólogos, antropólogos e historiadores cada vez mais se dão conta da natureza subjetiva de ambos. Tais lutas tornam mais aparente o fato de que identidades e memórias são altamente seletivas, inscritivas, ao invés de descritivas, servindo a interesses e posições ideológicas particulares. Assim como memória e identidade apóiam uma a outra, também sustentam certas posições subjetivas, fronteiras sociais, e, certamente, poder. […] A relação entre memória e identidade e histórica; e o registro dessa relação pode ser traçado através de diversas formas de comemorações. A atividade de comemorar é, por definição, social e política, pois envolve a coordenação das memórias individual e coletiva, cujos resultados podem parecer consensuais quando são, na verdade, produto de processos de intensa contestação, luta e, em alguns casos, aniquilação.20

As comemorações dos cento e cinqüenta anos de independência serviram para subjetivar nos brasileiros idéias que lhes permitissem reconhecer o potencial do país para seu progresso, suas propriedades, assim como para desenvolver e implantar um comportamento em sintonia com a tradição e com o futuro.
O patriotismo do povo brasileiro, na década de 1970, sinônimo da solidez moral iniciada politicamente em 1808, viria a ser o fim do desbravamento para a entrada do Brasil, e conseqüentemente dos brasileiros, no cenário desenvolvido e civilizado internacional. A busca dos primórdios da independência se justificava com a invocação de um tempo de referência histórica que atendia aos propósitos de nacionalidade naquele momento.
A nomeação dada como título ao evento oficial fundamenta a construção de um ato discursivo e sua relação com a elaboração de uma memória histórica. Não é de se estranhar que a exposição foi denominada “Memória da Independência 1808-1825”. Comemorações e festividades, sobretudo as públicas, nunca são acontecimentos desprovidos de sentido, pois selecionam fatos, datas, palavras e objetos para a constituição de um discurso a ser difundido. A utilização, como título do projeto, da expressão “memória da independência”, em vez de “história da independência”, revela alguns dos objetivos buscados pelos patrocinadores – o governo militar: a manipulação da lembrança que a sociedade tinha de um passado específico e sua articulação com o presente. A memória histórica dá à lembrança, baseada em suportes oficiais, aparência de respeitabilidade, que torna possível à memória se fazer passar por história. O discurso construído presente na exposição do sesquicentenário se apresenta, dessa forma, como um discurso ideológico.
Assim, nos cabe refletir sobre as apropriações que são feitas a partir da história de forma a consolidar o ideal de nacionalismo e construção de uma memória nacional durante os anos do governo militar no Brasil, ressaltando que essa construção era importante para o fortalecimento do governo e para a manutenção de sua posição de liderança.
NOTAS
1 Mestre em História Comparada – UFRJ e Professora Docente da Universidade Estácio de Sá – RJ.
2 Mestre em História Política e Social – UERJ e Professora Docente da Universidade Estácio de Sá – RJ.
3 Ver: CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
4 Sobre as festas realizadas no Brasil na América portuguesa consultar: JANCSÓ, István e KANTOR, Iris. A festa – cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: EDUSP, 2001, volume 1.
5 Sobre o assunto ler: CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
6 Sobre o assunto pesquisar em: MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos – a questão nacional no centenário da independência. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 1992.
7 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2000, p. 16.
8 Ver: CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988.
9 Ver: FILLOUX, J. C. A memória. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966, p. 78.
10 GILLIS, John R. Commemorations – The Politics of National Identity. Pricenton: Pricenton University Press, 1994, p. 14.
11 BITTENCOURT, José Neves. “A parede da memória – algumas observações sobre nobreza, memória e perenidade no Museu Histórico Nacional”. Anais do MHN, volume 33, 2001, p. 4.
12 Idem, p. 12.
13 NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo: UNICAMP, 1993, volume 10, pp. 37-44.
14 Ver: NORA, Pierre. “Betwen Memory and History”. In: Gillis, op. cit., p. 14.
15 LE GOFF, Jaques. História e memória. 4. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996, p. 535.
16 Idem, p. 476.
17 Idem, p. 536.
18 Idem, p. 548.
19 Bittencourt, op. cit., p. 11.
20 Gillis, op. cit., pp. 4-5.
CERVEIRA, Talita Veloso & SILVA, Josélia de Castro. O sesquicentenário da Independência do Brasil: a escrita de um discurso e a memória como seu fundamento. Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 4, Nº33, Rio, 2009 [ISSN 1981-3384]

Fonte: Tempo