14.11.09

Possibilidades de escrita de uma história indígena


por: Mariana Albuquerque Dantas
Mestranda em História pela Universidade Federal Fluminense

O trabalho de pesquisa empreendido pelo historiador, bem como o resultado dessa operação em forma de narrativa pode ser repensado a partir da análise de Michel de Certeau sobre a escrita da história e as diversas condições em que é realizada. Essa análise vem sendo utilizada por vários historiadores, principalmente ao se tomar a perspectiva do lugar social de produção historiográfica como horizonte na construção e interpretação de objetos de pesquisa. Assim, a contribuição de Certeau, ao meu ver, leva ao enfrentamento por parte dos historiadores com os seus próprios temas de pesquisa e nas condições de produção de sua narrativa.

Uma das questões levantadas pelo autor é o ponto inicial do tema que será aqui abordado, isto é, a operação historiográfica que implica no trabalho em arquivo, na escolha e redistribuição de fontes; e na escrita como processo final de representação do passado. Pensar na operação historiográfica é particularmente frutífero quando nos deparamos com nossa problemática de pesquisa que, no presente artigo, enfoca as possibilidades de se escrever uma história indígena.
Tema não muito abordado na historiografia brasileira, as narrativas sobre populações indígenas são explicadas, em grande parte, através de guerras de extermínio, sejam bacteriológicas ou por intermédio de armas, ou pela resistência heróica de alguns grupos rebeldes, que acabam sendo engolidos pelo projeto colonial. Chega-se a conclusões muito próximas ao se partir dessas explicações, ou seja, o desaparecimento dessas populações da historiografia e, por conseqüência, da formação do país. Diante do problema de construir uma narrativa diferente sobre parte do passado de populações indígenas, deparamo-nos com fontes lacunares e alguns arquivos mal organizados, mas que podem oferecer possibilidades para a apreensão de uma dinâmica social que não corresponde ao desaparecimento propagandeado.

Ao se deparar com suas fontes de análise, sejam manuscritos, impressos, imagens, relatos orais, etc, o historiador inevitavelmente passa a lidar com as lacunas e faltas. Muitas vezes escasseiam dados factuais, como datas, lugares, nomes; em outros momentos as pistas sobre determinada situação não são mais encontradas, como se não tivessem sido registradas. A depender do sistema em que foi organizado o arquivo em que se trabalha, a pesquisa se alonga em vários volumes ou códices, que apresentam informações desencontradas ou mesmo limitadas. Nesse momento, para o trabalho do historiador ser realizado faz-se necessário uma operação técnica, afinal

“em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar esses objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto.” 1

Assim, são escolhidos e reunidos os dados a serem interpretados, sendo organizados de acordo com os interesses do pesquisador e também com as possibilidades oferecidas pela instituição do arquivo. Documentos administrativos, comunicações entre autoridades, processos, cartas, manuais, etc. apresentam-se como escolhas individuais para constituir o corpo documental que vai embasar uma narrativa.

Contudo, Certeau afirma que não se trata de “dar voz a um silêncio”, mas “transformar alguma coisa, que tinha sua posição e seu papel, em alguma outra coisa que funciona diferentemente.”
2 Essa transformação ocorre não só pelo ato de coligir informações e organizá-las, mas também através da curiosidade direcionada do pesquisador, do que precisa e deseja “descobrir” em cada documento, das respostas que elabora a partir das perguntas com as quais segue munido para a leitura da informação.

Entendemos que a análise do pesquisador é direcionada pelo caminho que escolhe para transformar seus dados, pelos questionamentos e interpretações que propõe. É o que podemos perceber da Nota de Orientação dada ao capítulo dedicado à Explicação/Compreensão por Paul Ricoeur:

é quanto à explicação/compreensão que a autonomia da história relativamente à memória se afirma mais fortemente no plano epistemológico. A bem da verdade, essa nova fase da operação historiográfica já estava imbricada na precedente, na medida em que não há documento sem pergunta, nem pergunta sem projeto de explicação. É em relação à explicação que o documento constitui prova. (Ricouer, 2007, p. 193) [grifos meus] 3

As perguntas e o projeto de explicação orientam a constituição não só do objeto de pesquisa, como também da escolha do que deve ser transformado em documento histórico e da maneira de organizá-lo.

Na outra ponta da operação historiográfica, encontra-se a construção da escrita, que conduz da prática ao texto. Levando-se em conta que o tema escolhido pode levar a várias interpretações, ao escolhermos um caminho específico para a narrativa, dispomo-nos a representar o passado de acordo com algumas normas tácitas de inteligibilidade. Devemos fazer o relato de forma cronológica, impondo como início o que seria o ponto de chegada da pesquisa, “enquanto esta dá os seus primeiros passos na atualidade do lugar social, e do aparelho institucional ou conceitual, determinados ambos, a exposição segue uma ordem cronológica. Toma o mais anterior como ponto de partida.” Além disso, o texto precisa ter um fim, enquanto a pesquisa é interminável, sendo preenchido de recursos que constroem a coerência e unidade através de conceitos históricos e regras. (Certeau, 2007, p. 94)

Mas, o que nos chama atenção para o presente texto é a complementaridade (que também pode ser entendida como oposição) entre a prática e a escrita, no que diz respeito às lacunas e necessidade de inteligibilidade do discurso histórico. Certeau afirma que o texto é pleno e preenche as lacunas, as quais constituem o princípio da pesquisa, aguçada pela falta.

Dito de outra maneira, através de um conjunto de figuras de relatos e de nomes próprios, torna presente aquilo que a prática percebe como seu limite, como exceção ou como diferença, como passa. Por estes poucos traços – a inversão da ordem, o encerramento do texto, a substituição de um trabalho de lacuna por uma presença de sentido – pode-se medir a ‘servidão’ que o discurso impõe à pesquisa. (Certeau, 2007, p. 94).

Sendo o texto histórico, um produto coeso, que possui uma unidade, uma ordem cronológica, composto de pesquisa realizada em fontes descontínuas, passamos a tocar num questionamento pertinente para a escrita de uma história indígena. Quais caminhos são possíveis para escrever sobre as histórias de populações nativas? Um dos principais problemas levantados para esse projeto é a falta de documentos escritos pelos próprios agentes sociais, que representariam uma alternativa para não reafirmar uma história calcada no discurso colonial. Mesmo documentos de missões religiosas e administração colonial, apresentam-se com as supracitadas descontinuidades.

A produção de testemunhos indígenas em suas respectivas línguas e representações pictóricas, foi significativa na América de colonização espanhola, permitido uma leitura historiográfica que tenta atribuir uma voz própria às populações autóctones. No entanto, segundo o historiador John Monteiro, no caso da América portuguesa,

a ausência quase total de fontes textuais e iconográficas produzidas por escritores índios por si só impõe uma séria restrição aos historiadores. No entanto, o maior obstáculo impedindo o ingresso mais pleno de atores indígenas no palco da historiografia brasileira parece residir na resistência dos historiadores ao tema, considerado, desde há muito, como alçada exclusiva dos antropólogos. (Monteiro, 2001, p. 2).

Essa restrição, no entanto, não é absoluta, como bem explica Monteiro, pois em finais do século XIX, quando o cerceamento do acesso à terra se torna mais intenso com a Lei de Terras de 1850 e extinção dos aldeamentos, vários grupos indígenas e seus representantes escrevem petições e fazem visitas aos presidentes de província e mesmo ao Imperador, solicitando ações contra a fragmentação e espoliação de suas posses.

O outro problema levantado por Monteiro (falta de interesse de historiadores) resulta de limites instituídos entre a história e a antropologia enquanto disciplinas. Mas, para analisar identidades indígenas é imprescindível uma abordagem histórica de forma a trazer ao debate o processo de constituição e reelaboração dessas identidades. Principalmente, tendo em vista que atualmente vários povos indígenas no Brasil recorrem ao Estado para que o processo de regularização de suas terras seja iniciado ou que tenha continuidade, bem como os direitos de assistência à educação e saúde diferenciadas sejam garantidos de acordo com a Constituição de 1988.
4 Essas são situações que precisam ser levadas em consideração no trabalho do historiador, embora permaneça o questionamento de como escrever uma história indígena diante das lacunas documentais e da ausência de relatos escritos pelos próprios índios em períodos passados.

Antes de sugerir um caminho possível para tentar responder a essas interrogações, precisamos entender alguns caminhos já percorridos e a ênfase que ofereceram à historiografia.

A grande preocupação em encontrar documentos escritos pelos próprios índios, tendo como comparação a história da colonização espanhola nas Américas, une-se à tentativa de escrever uma “história nativa”, ou seja, uma história que pudesse trazer à tona os relatos dos próprios grupos sobre determinados acontecimentos. Mesmo ao utilizar uma perspectiva que associa história e antropologia para, por exemplo, estudar mitos e rituais indígenas, incorre-se no desejo de “captar as categorias indígenas de apreensão e construção de temporalidade, expressa através de narrativas, ritual e oratória indígena.” (Pompa, 2003, p. 166) A intenção é a de abordar uma visão dinâmica do encontro entre nativos e europeus, e entender a interpretação indígena da realidade.

No entanto, segundo Keith Jenkins, existem problemas em relação a esse tipo de abordagem na história social, inclusive filosóficos. Jenkins denomina de “empatia” essa tentativa de historiadores e antropólogos em se aproximar de pessoas do passado ou de grupos sociais distintos, percebendo o seu ponto de vista para adquirir uma compreensão histórica “real”. O que entendemos, em conjunto com Jenkins, é que a distância espacial e temporal do pesquisador em relação ao seu objeto se impõe na análise, impossibilitando uma aproximação a ponto de saber qual seria a interpretação de uma situação de acordo com um agente social. Aprofunda esse problema o fato de que o pesquisador realiza a análise do passado imbuído de pressupostos enraizados no presente, ou seja,

visto não existirem interpretações do passado que dispensem pressupostos, e visto serem as interpretações do passado elaboradas no presente, parece remota a possibilidade de que o historiador consiga despir-se do presente para chegar ao passado de alguém nos termos desse alguém. (Jenkins, 2007, p. 70).

Assim, vemos que é impossível percebermos o passado despojados do presente, para ver o mundo tal qual os agentes sociais o viram.

Por outro lado, ao tentar escapar do problema da “empatia”, podemos passar a recriar o discurso da resistência de populações “dominadas” em relação aos sujeitos “dominantes”, trazendo à tona uma interpretação baseada em pares opostos que isolam os agentes históricos. É então que são tratados os conflitos violentos como, por exemplo, a “Guerra dos Bárbaros” no Nordeste de finais do século XVII. Nessa guerra, teriam resistido os índios conhecidos como “tapuias” do sertão ao domínio colonial português, logo após a expulsão dos holandeses da capitania de Pernambuco.
5 O que a maioria das narrativas atesta é o desaparecimento das populações indígenas envolvidas em várias guerras, seja porque foram aniquiladas ou porque foram submetidas ao projeto colonial da Coroa portuguesa.

Dessa forma, os diversos conflitos entre índios e europeus são abordados colocando-os em esferas radicalmente opostas da sociedade colonial, sendo essa perspectiva descrita por Eric Wolf, já que

Al atribuir a las naciones, sociedades o culturas, la calidad de objetos internamente homogêneos y externamente diferenciados y limitados, creamos um modelo del mundo similar a uma gran mesa de pool em la cual las entidades giran una alrededor de la outra como si fueran bolas de billar duras y redondas. (Wolf, 2005, p. 19).

Wolf usa a metáfora da mesa de pool para fazer uma crítica a um posicionamento de historiadores e antropólogos que insistem em isolar seus objetos de pesquisa, sejam nações, sociedades ou culturas, sem atentar para as trocas ou negociações entre os agentes envolvidos. E ainda, atribuem a esses agentes uma homogeneidade interna que delimita claramente as suas fronteiras, tais quais as “bolas de billar duras y redondas”, construídas com o intuito de tornar o estudo mais didático, não levando em consideração as mudanças que podem ocorrer a essas “unidades” durante o contato com outros povos.

De outra forma, podemos perceber essas “unidades” de análise como participantes de processos interconectados e dinâmicos. Ao invés de abordar apenas a resistência e a dualidade “dominados x dominantes”, passa-se a tratar das ligações, alianças, negociações entre diversos agentes históricos, como as vivenciadas por grupos indígenas diversos (Caeté, Tupinambá, Tupiniquim, Temiminó, etc.) e portugueses, holandeses e franceses, nas primeiras décadas da colonização. É dessa forma, por exemplo, que se pode abordar os vários conflitos que depois passaram a ser chamados genericamente de “Guerra dos Bárbaros”, como fez Cristina Pompa (2003), ao trabalhar com as representações dos índios elaboradas por cronistas e missionários da época e como os índios reagiram à nova dinâmica colonial.

No estudo sobre as representações de índios feitas por europeus, existem trabalhos bem conhecidos como o de Tzvetan Todorov e Michel de Certeau. O primeiro trata do encontro entre espanhóis e índios na América
6, e o segundo analisa o texto de Jean de Léry e as representações que este fez dos índios que encontrou na Baía da Guanabara 7. Ambos abordam a alteridade indígena através de relatos, mas a sua busca vai na direção da construção do “eu” ocidental através da conceitualização do “outro” indígena. Assim, vemos no texto de Certeau, que as representações indígenas em relatos fazem uma operação dinâmica de retorno, ou seja, um movimento que mostra mais da realidade européia através da idealização e construção do Novo Mundo e de seus habitantes.

Bem, dessa forma, tentamos mostrar algumas perspectivas já bem trabalhadas sobre a escrita de uma história indígena: a tentativa de narrar uma história a partir da visão nativa, a resistência contra o domínio colonial que leva à extinção dessas populações e as representações ocidentais de autóctones no momento do contato. Sem descartar a importância em analisar os vários conflitos entre índios e não-índios ou os discursos e imagens criados para representar povos autóctones, entendemos que a crítica a esses modelos pode ajudar a construir um horizonte diferente para a percepção da dinâmica social, no qual diversas populações indígenas encontraram espaços para interagir com a sociedade envolvente.

Mais uma vez, Michel de Certeau oferece possibilidades para a interpretação e escrita de uma história, que pode ser ampliada para o estudo das histórias de populações indígenas. O autor empreende uma crítica a um tipo de história social baseada em modelos pré-concebidos e numa análise quantitativa pela constituição de séries e de suas combinações. Nesse tipo de história social, o trabalho teórico é desempenhado na construção de modelos e na atribuição de significados dos resultados através de combinações informáticas. No entanto, Certeau chama atenção para a utilidade desse modelo no que diz respeito aos desvios que proporciona:

O importante não é a combinação de séries, obtidas graças a um isolamento prévio de traços significantes, de acordo com modelos pré-concebidos, mas, por um lado, a relação entre estes modelos e os limites que seu emprego sistemático faz aparecer e, por outro lado, a capacidade de transformar estes limites em problemas tecnicamente tratáveis. (Certeau, 2007, p. 86)

O que nos interessa aqui, além da crítica a uma história social baseada em séries, é a insinuação de um caminho baseado nos desvios proporcionados a modelos e conclusões elaborados por uma historiografia, que evidencia o desaparecimento de povos indígenas num processo que se desenvolve ao longo da colônia e do período monárquico. Quando Certeau afirma que “o historiador não é mais um homem capaz de constituir um Império. Não visa mais o paraíso de uma história global. Circula em torno das racionalizações adquiridas. Trabalha nas margens.” (p. 87), indica um caminho em que se pode conferir visibilidade a uma dinâmica social que não seja dependente de generalizações ou grandes contextos. Ou ainda, que mostre desvios em relação aos grandes modelos, a uma história elaborada numa perspectiva macrossocial, diferenças que permitem o retorno aos modelos para corrigi-los.

Ao ampliarmos essas assertivas do autor, podemos perceber que ao não nos prendermos em explicações generalizantes ou baseadas apenas em documentação farta o suficiente para produzir séries, percebemos uma dinâmica social, na qual grupos indígenas participavam de modo ativo, interagindo com diferentes fluxos, negociando e fazendo alianças em diferentes esferas. Mesmo através de informações lacunares, como é o caso da documentação administrativa relativa aos aldeamentos em finais do século XIX, podemos perceber as estratégias locais de índios para interagir socialmente e alcançar seus interesses.

É o que também nos mostra o que Jacques Revel chama de “jogo de escalas” ou variação de escalas. Numa crítica ao mesmo tipo de história social de caráter serial ou generalizante, Revel trata de uma abordagem micro-histórica, que sugere reformular concepções e procedimentos historiográficos. Nesse caso, variar a objetiva, atentar para estudos num nível microssocial, não significa apenas aumentar ou diminuir o objeto no visor, mas modificar sua forma e sua trama, mostrar diferenças em relação à outra abordagem. Nessa linha, não é a preferência sobre uma escala que conta, mas sim a variação entre elas.

De acordo com o autor

O recurso à micro-análise deve, em primeiro lugar, ser entendido como a expressão de um distanciamento do modelo comumente aceito, o de uma história social que desde a origem se inscreveu, explícita ou (cada vez mais) implicitamente, num espaço “macro”. Nesse sentido, ele permitiu romper com os hábitos adquiridos e tornou possível uma revisão crítica dos instrumentos e procedimentos da análise sócio-histórica. (Revel, 1998, p. 20).

Assim, a intenção é analisar as estratégias sociais desenvolvidas pelos diferentes agentes sociais em função de sua posição e de seus recursos respectivos em unidades de análise muito específicas, como uma aldeia, uma cidade, uma família ou mesmo, um indivíduo. A vantagem da variação de escalas, segundo Paul Ricoeur, está em

poder deslocar a ênfase para as estratégias individuais, familiares ou de grupos, que questionam a presunção de submissão dos atores sociais da classe mais baixa às pressões sociais de todo tipo e principalmente àquelas exercidas no plano simbólico. Com efeito, tal presunção não deixa de ter ligação com a escolha de escala macro-histórica. Nos modelos dependentes dessa escolha, não apenas as durações parecem hierarquizadas e encaixadas, mas também as representações que regem os comportamentos e as práticas. Na medida em que uma presunção de submissão dos agentes sociais parece solidária com uma escolha macro-histórica de escala, a escolha micro-histórica induz uma expectativa inversa, a de estratégias aleatórias, nas quais são valorizados conflitos e negociações, sob o signo da incerteza. (Ricoeur, 2007, p. 230)

É nesse sentido que a apropriação de idéias, fluxos culturais, alianças e trocas fazem sentido, principalmente quando trabalhamos tanto com documentação variada como com os aspectos mais diversificados da experiência social. Assim, ao conferir importância às estratégias locais de grupos indígenas e a sua participação na formação da sociedade envolvente, seja como mestiços ou caboclos, pode-se indicar diferenças e desvios numa narrativa historiográfica que se prende unicamente a generalizações.

No entanto, Revel mostra que existem limites no que chamou de “individualismo metodológico”, já que é em relação a um conjunto social ou experiência coletiva que é preciso procurar definir as regras de constituição de funcionamento. Rebatendo a narrativa que tenta reconstituir a narrativa dos agentes sociais, o autor afirma que a linguagem dos atores que se estuda seja tomada como o indício mais amplo e mais profundo: “o de construção de identidades sociais plurais e plásticas que se opera por meio de uma rede cerrada de relações (de concorrência, de solidariedade, de aliança, etc.).” (Revel, 1998, p.25). E é essa operação que os micro-historiadores transformam em princípio epistemológico, já que é a partir dos comportamentos dos indivíduos que eles tentam reconstruir as modalidades de agregação (ou desagregação) social.

É dessa forma, que se trata de desnaturalizar os mecanismos de agregação e de associação, e opera-se com as modalidades relacionais que os tornam possíveis, recuperando as mediações existentes entre a “racionalidade individual e a identidade coletiva”. (Revel, 1998, p. 25). Esse é um caminho para evitar partir de definições pré-concebidas sobre uma população indígena estudada, passando a analisar a elaboração de sua identidade em situações históricas específicas e em relação com outros grupos sociais, tanto indígenas quanto não indígenas.

Ao aproximar História e Antropologia, passa-se a interpretar as trocas e mudanças contínuas que contribuíram para a elaboração de uma determinada identidade indígena e também na construção de espaços como aldeamentos e povoados próximos, que se tornaram cidades com base nas relações vivenciadas com esses núcleos missionários. Um estudo nesse sentido é o de Maria Regina Celestino de Almeida, que ao analisar vários aldeamentos indígenas no Rio de Janeiro no período colonial, afirma que

além das perdas culturais e étnicas, os índios aldeados puderem aprender ali [no aldeamento] novas práticas culturais e políticas que lhes permitiam colaborar e negociar com a sociedade colonial em busca das possíveis vantagens que sua condição lhes permitia. O projeto colonial estava em construção e os limites de possibilidades de sua realização dependiam das populações indígenas que, no contato com os europeus, aprenderam a manejar e manipular novos instrumentos em busca de seus interesses. (Almeida, 2003, p. 34.)

Nesse trecho, percebemos que as relações desiguais de força e poder permeavam a sociedade colonial e os índios em questão, uma vez que houve perdas materiais e simbólicas. Mas, a ênfase se desloca da oposição entre índios e colonizadores, para a das relações vividas que permitiram trocas e influências mútuas, imprescindíveis para a formação da colônia. Relações que se estenderam e se modificaram durante o período imperial, mesmo quando vários aldeamentos foram extintos, e que podem ser apreendidos como objetos de pesquisa de historiadores, uma vez que se parta dos modelos generalizantes, que afirmam o desaparecimento dessas populações, e siga em direção aos desvios e da análise do desenvolvimento de aldeias e cidades em suas relações.
NOTAS:
1. CERTEAU, Michel de. “Cap. II. A operação historiográfica” In A Escrita da História. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 81
2. Idem. p. 83.
3. Essa citação é referente ao capítulo II: História/Epistemologia, do livro “A memória, a história, o esquecimento”, que não foi selecionado como leitura do curso. No entanto, muitas das questões levantadas no capítulo levaram a algumas reflexões contidas nesse artigo, como a que será apresentada sobre a variação de escalas. Por isso, a necessidade de incluir trechos do capítulo II, que entendo como fundamentais para o desenvolvimento do presente texto.
4. Para o caso dos índios do Nordeste, ver OLIVEIRA, João Pacheco de. A Viagem da Volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2004.
5. Obras de referência sobre o tema: PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros. Povos indígenas e colonização do sertão. Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec – Edusp, 2002. PIRES, Maria Idalina. Guerra dos Bárbaros: resistência indígena e conflitos no Nordeste colonial. Recife: UFPE, 2002.
6. A Conquista da América: a questão do outro. 3ª. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
7. “Etno-grafia. A oralidade ou o espaço do outro: Léry.” In A Escrita da História. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense Univesitária, 2007.
DANTAS, Mariana Albuquerque. Possibilidades de escrita de uma história indígena. Rio de Janeiro: Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 4, Nº32, Rio, 2009 [ISSN 1981-3384]

Fonte: Advertisement