5.1.10

Albert Camus, o moderno Sísifo

Albert Camus, prêmio Nobel da literatura de 1957 odiava duas coisas: a chuva e andar de automóvel. Morreu num acidente de carro, um Facet-Véga de ultimo tipo, quando vindo do sul da França se aproximava de Paris num dia de chuva. Nada mais condizente com um escritor que, desde cedo, se deixara fascinar literária e filosoficamente pelo Absurdo. Naquele dia cinzento de 4 de janeiro de 1960 a cultura do século XX perdeu um dos seus maiores homens de letras.


Um autor pronto antes dos trinta anos


Albert Camus, antes de tudo, foi um assombro. Tinha tudo para dar errado. Era um
pied-noir, um pé-preto, como eram apelidados os europeus que viviam na Argélia (então colônia da França), filho de um francês e de uma argelina, ambos muito pobres, nascera em 7 de novembro de 1913 num lugarejo cercado de areia chamado Mondovi (hoje Dréan).

O pai Lucien Camus foi-se na batalha do Marne em 1914 quando ele tinha apenas um ano de idade, cabendo à mãe, pessoa humilde e sem instrução, garantir-lhe desde então o sustento e o acesso à instrução. Logo que se formou diagnosticaram-lhe uma tuberculose, mal que o afligiu pelo restante da vida. Era um branco de ‘ segunda classe’, um provinciano que vivia na periferia do império colonial francês, sem vintém e sem saúde, e mesmo assim consagrou-se como autor universal capaz de vender milhares de livros, recebendo a láurea suprema da literatura pelas mãos de Gustavo VI, o rei da Suécia.

Decidiu-se pela escrita ao entrar em contato com a obra de André Malraux (autor que aliava a pena à ação e junto com André Gide formavam entre os maiores nomes da literatura francesa dos anos 30), e pela insistência do seu professor de filosofia no liceu, Jean Grenier, também autor de livros.

Leitor voraz de literatura e de filosofia, em pouco tempo, ainda quando vivia em Argel, esboçara o que chamou a Trilogia do Absurdo: a composição de uma peça teatral (‘Calígula’), de uma novela que o projetou mundialmente (‘O estrangeiro’) e de um ensaio metafísico (‘ O mito de Sísifo’), centradas no ‘ espetáculo da desrazão’ e nas inesperadas armadilhas da vida .

Classificando-se como um ‘ intelectual proletário’, comentou em carta ao seu ex-professor e amigo Heuregon: ‘Gosto de escrever por toda a paixão que isto exige... Secreta e ardente’, Tinha pressa porque supôs que o prazo de vida de um tísico não lhe daria muito fôlego. Precisava de um sucesso imediato.

Olivier Todd, seu mais abalizado biógrafo, afirmou nas suas considerações finais sobre o escritor que ‘não podia explicar porque o filho de um operário e de uma doméstica analfabeta teve tantos talentos: o mistério da criação se inscreve também, invisível, na biologia. ’(Oliver Todd-
Albert Camus, una vida, pág. 766).

Peripécias em meio a uma derrota

Albert Camus (1913-1960)
A oportunidade de concluir o ambicioso projeto só foi possível quando ele, aos 27 anos de idade, transferiu-se para Paris, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, para assumir como jornalista expediente, uma posição no jornal Paris-soir, (respeitável publicação que chegou a alcançar uma tiragem de 2,5 milhões de exemplares diários). ‘Conheço Paris como se eu houvesse nascido aqui, intimamente, com o coração’.

Foi num modesto hotel da capital, o Poirer em Montmarte, saudoso da mulher, a bela Francine Faure, ainda em Argel, que ele encontrou tempo para dar o encaminhamento final da trilogia que começou a ser publicada pela Editora Gallimard a partir de 1942.
Neste espaço de tempo a França, desde maio de 1940, viu-se invadida pela Alemanha nazista, obrigando Camus a acompanhar a redação do jornal numa peregrinação pelo interior do país, até que ele se viu despedido, tendo que retornar à Argélia. Na França ocupada, como ele observou, ‘não havia mais lugar para o espírito’. O governo de Vichy e o colaboracionismo a envenenariam ainda mais.


Militando no comunismo


Como muitos jovens intelectuais argelinos dos anos 30, Camus militou, ainda que por curto tempo, no Partido Comunista (1934-1937). O mundo em depressão econômica marchava para um confronto total e o nazi-fascismo parecia arrasador. Em 18 de julho de 1936, o general Francisco Franco, apoiado pela Falange Espanhola, alçou-se, com quase todo o exército ao seu lado, contra República Espanhola, governada pela Frente Popular (coligação de socialistas, radicais-republicanos, anarquistas e comunistas). Em Granada, Federico Garcia Lorca era fuzilado por um esquadrão falangista em 19 de agosto de 1936.


Na URSS enquanto isto, na esteira do assassinato de Kirov em Leningrado, Stalin esmagou aos que lhe eram opostos, levando seus antigos companheiros aos bancos dos réus durante os famosos Processos de Moscou (1936-1938). Em Paris, para deter o fascismo, formara-se desde 14 de julho de 1935 o
Front Populaire (intitulado oficialmente como Ressemblement) composto por quatro agremiações (O Partido Radical, liderado pela dupla Eduard Daladier e Henriot; a União Socialista Republicana, de Paul Ramadier; o Partido Socialista de León Blum; e o Partido Comunista de Maurice Thorez) . Esquerda e direita enfrentavam-se a mão aberta ou a tiros em quase todas as capitais do mundo.


Inclinado pelo palco, Camus assumiu a direção do
Théâtre du Travail ligado à Casa de Cultura mantida pelo partido em Argel, mas não demorou muito em constatar e ineficácia do teatro de propaganda. Uns anos depois, afastado do partido, montou sua própria trupe independente: o Théâtre de l´Équipe, voltado para os ‘ clássicos’, como a encenação de ‘Karamazov’, inspirado em Dostoievski.

O realismo socialista

Soren Kierkegaard (1813-1855)
O apartar de Camus do comunismo não se deu somente por questiúnculas locais, por igual pesaram divergências na área literária. Em agosto de 1934, no famoso I º Congresso dos Escritores Soviéticos, o comissário Andrei Zhdanov, a mando de Stalin, lançara as bases formais e ideológicas do ‘Realismo Socialista’, segundo as quais a literatura devia exaltar as conquistas do socialismo e afastar-se de qualquer tipo de preocupação existencial ou drama psicológico.


Os escritores e artistas tinham que se mobilizarem como agentes-instrumentos de um Estado de Trabalhadores voltado para a ‘construção do socialismo’. As questões estéticas deixavam de ser importantes frente à necessidade de seguir a orientação determinada pela ‘Partiynost’, a linha do partido, mesmo que resultasse em má literatura.


Era o tipo de enquadramento que uma personalidade irrequieta e errática como a de Camus não estava disposta a seguir. Ele, que certa feita prometera entregar seus talentos à causa, não queria, todavia, ‘dar-lhe o coração’ (que, cioso, reservara às letras). Além disto, o ucasse de Zhdanov ‘ofendia o seu direito ao egoísmo de criador’, como, na mesma ordem, não se podia falar em ‘realismo socialista’ se a realidade não era socialista.


Entenda-se que o marxismo como filosofia jamais o atraiu a não ser como uma espécie de sucedâneo da fé ou ainda como um conjunto de afirmações dogmáticas necessárias a manter coesa a pequena seita de militantes argelinos a que pertenceu.


A atração pelo irracionalismo

Os estragos gerais resultantes da Grande Guerra (1914-1918) que se somaram aos da Depressão Econômica iniciada em 1929, formaram o pano de fundo para a ascensão do pensamento irracionalista na cultura ocidental. O otimismo evolucionista do século XIX esfumara-se. Na França, ainda que dividida majoritariamente entre o positivismo e o catolicismo, isto se manifestou pela ‘descoberta ‘ de Kierkegaard (cuja obra foi traduzida entre 1909 e 1922) com sua denúncia sobre o ‘absurdo da existência’, pelas crescentes leituras dos livros de Nietzsche, de Dostoievski e de Kafka.



A elas, Camus incorporou as obras de León Chestov, um russo-branco exilado que fazia sucesso em Paris como filósofo ‘ existencialista’. Tratar da angustia, da ausência de sentido da vida, do desespero e da morte, de um mundo ausente de Deus e de qualquer esperança, parecia-lhe mais adequado ao cenário que o cercava do que adotar as palavras de ordem do partido ou qualquer outro apelo ao otimismo institucional.


Não sem motivos, na hora de conceber um ensaio, ele decidiu-se por Sísifo, o ardiloso humano, cuja alma injustiçada fora condenada a cumprir um destino ingrato no Hades, símbolo do Absurdo, e não por Prometeu, o herói mitológico favorito de Marx, o desafiador dos deuses.

Dando eco a Tchekov, iniciou-o com a célebre afirmação: “Não há senão um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois’ (O Mito de Sísifo) (*)


(*) Quase a reprodução exata do personagem do guarda-livros Epikodov que diz: ‘viver ou não viver, eis a questão. Viver ou meter um tiro na cabeça, em suma. De qualquer forma como a vida é contingente, porto sempre um revólver comigo...’(‘O Jardim das cerejeiras’, Ato II)


Para Georgy Lukács, um marxista crítico do existencialismo, num ensaio que circulou depois da Segunda Guerra Mundial, tudo isto não passava de niilismo da classe média, de desesperança pequeno-burguesa, uma inclinação pela patologia que em nada somara na luta contra o fascismo.


Todavia, Camus não se afinou com a solução proposta por alguns, como foi o caso de Gabriel Marcel, existencialista cristão, de superação do Absurdo pelo recurso da fé atrás do ‘Indemonstrável Absoluto’, ou ainda para ir ao encontro do Reino dos Céus. Ateu assumido, - ‘Pascal sem Deus’, como o definiu o dr.Holger Ahlenius, o acadêmico sueco que o recomendou para o Nobel - viu na Revolta a resposta ao paradoxo de uma existência dilacerada permanentemente entre a vida e a morte. (*)


(*) Na classificação dos existencialismos feita por Emmanuel Mounier (Introdução aos Existencialismos, SP. Livraria Duas Cidades, 1963), depois de fixar Pascal, Kierkegaard e Husserl no tronco que dava sustentação aquela corrente, dividiu-a em dois ramos, o de influencia religiosa (composto por Max Scheller, Karl Jasper, Nicolas Berdiaeff, Gabriel Marcel) e o ateu (de Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Jean Hippolyte, Merleau-Ponty, Simon de Beauvoir e Camus)

Bibliografia

Camus, Albert - Œuvres complètes d'Albert Camus. Paris, La Plêiade, 4 v.
Lukács, Georgy -
Existencialismo ou marxismo. São Paulo, Senzala, 1967.
Mounier, Emmanuel -
Introdução aos Existencialismos, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1963.
Nicolas, André -
Albert Camus ou Le Vrai Prométhée, Paris, Seghers, 1966.
Todd, Olivier –
Albert Camus, uma vida. São Paulo-Rio de Janeiro, Editora Record, 1998.
Winock. Michel –
O Século dos Intelectuais. São Paulo: Bertrand dp Brasil, 2000.

Fonte: Voltaire e Schilling