O segundo país mais povoado da Terra - com cerca de um bilhão de habitantes -, apontado como uma das potências econômicas do século 21 é também um dos mais desiguais do ponto de vista social
Tecnologia digital de ponta, projetos espaciais desenvolvidos em ritmo acelerado, dívida externa em franco retrocesso, maior indústria cinematográfica do planeta. Mobilidade social restrita por um sistema de castas extra-oficial, taxas de analfabetismo elevadas, casamentos arranjados, opressão às mulheres. Eis a Índia. O segundo país mais povoado da Terra - com cerca de um bilhão de habitantes -, apontado como uma das potências econômicas do século 21 é também um dos mais desiguais do ponto de vista social.
Compor um panorama da sociedade indiana é de encantar e estarrecer. A agricultura é um dos pilares da economia do país, por isso as áreas rurais concentram aproximadamente 70% da população. Os outros quase 30% estão nas cidades. A grande metrópole da Índia é Mumbai - antiga Bombain - com 16,5 milhões de habitantes, dos quais metade é de favelados e cerca de um milhão vive nas ruas. E é andando nas ruas, obviamente, que se entra em contato com a realidade de qualquer lugar. Em Mumbai, os mais modernos automóveis circulam ao lado de elefantes, que lá são meio de transporte. Modernidade e tradição? Sim. É esse um dos paradoxos que mais chamam a atenção no país.
A Índia da prosperidade científica e tecnológica é a mesma que tem 40% da sua população analfabeta. Ascender socialmente, mudar de vida, para os indianos em situação mais pobre, é uma rara conquista. A desigualdade na distribuição de renda, característica do neoliberalismo, é uma realidade no país, além do mais, os contrastes econômico-sociais encontram-se fortemente justificados por um sistema de castas, algo sem similar em qualquer cultura ocidental.
Tentar entender a Índia sem considerar o seu sistema de castas é perda de tempo. Oficialmente banido do país em 1946, esse sistema milenar de divisão da sociedade, na prática, ainda vigora. As castas são quatro, que, originalmente, foram divididas da seguinte forma: a dos brâmanes, incluindo a elite religiosa, pesadores e os proprietários de terra; a dos kshatriyas, dos militares e administradores; a dos vaishyas, comerciantes; e a dos sudras, na qual se enquadram artesãos e trabalhadores braçais. Fora do sistema de castas, conseqüentemente, no lugar mais baixo da pirâmide social, estão os dalits ou parias, também chamados de intocáveis. São denominados assim porque, para boa parte dos hindus, quem toca em um paria fica impuro.
O governo da Índia vem tentando combater esse preceito tradicional e introduzindo medidas para proporcionar a esses membros da sociedade - estimados em 160 milhões de pessoas - acesso a educação e a empregos mais dignos que os trabalhos sub-humanos que lhes são oferecidos. Os próprios dalits protestam contra a sua exclusão e se organizam para lutar pelos direitos que o governo lhes garante, mas que boa parte das classes mais altas deixa de reconhecer. De acordo com uma ativista da Campanha Nacional Pelos Direitos Humanos dos Dalits, que deu seu depoimento no Fórum Social Mundial, realizado na Índia em 2004, antigamente os dalits tinham que andar com sinos ou chocalhos para avisar que estavam se aproximando e assim as pessoas de outras castas sabiam que tinham que evitá-los. Anupam Wankhede, a ativista em questão, disse que isso não é mais realidade no país, pelo menos, nas cidades. Ela trabalha para conscientizar as pessoas de que o sistema de castas não foi criado por Deus, mas pelos homens, pela elite - os brâmanes - que queriam ter poder sobre os demais.
Observar a importância da religião na Índia é absolutamente indispensável para se verificar as peculiaridades dessa sociedade. Mais de 80% da população segue o hinduísmo e, para estes, a vida é um eterno retorno. O que se faz nessa vida conta para a próxima. Por isso é importante aceitar a própria condição e praticar boas ações, assim como os rituais de purificação, para se conseguir uma posição melhor ao reencarnar. Alguns estudiosos apontam o hinduísmo como responsável pela passividade e pelo conformismo do povo ante a sua condição de miserabilidade.
O islamismo, segunda religião em número de seguidores no país, congregando cerca de 12% da população, segue os preceitos de Alá, ditados pelo profeta Maomé, cujas palavras estão no Corão. Os muçulmanos acreditam que a vida tanto pode ser uma benção quanto uma penitência. Por definição, a mulher muçulmana deve ser submissa a seu marido.
O cristianismo é seguido por uma pequena fatia da população, aproximadamente 3%. O budismo e demais religiões dividem a fatia restante. Esses dados estatísticos são interessantes para se ter uma idéia do cenário religioso na Índia, mas não dão conta de expressar o quanto a religião está intrinsecamente relacionada com a vida dos indianos. Para a maciça maioria, ela explica e justifica tudo na vida, o que se verifica no discurso das famílias e mesmo nas relações de trabalho.
A Índia que chama a atenção pelo polêmico sistema de castas, pela espiritualidade que tudo permeia, vem despontando também como potência asiática. O Produto Interno Bruto (PIB), da ordem de 785 bilhões de dólares, coloca o país em 12º lugar no ranking da economia do mundial. No entanto, por sua grande população e a exitstência do desequilíbrio entre o número de ricos e miseráveis, a renda per capita é consideravelmente baixa - cerca de oito vezes menor que a brasileira. Mais de 25% por cento da população é classificada abaixo da linha de pobreza, apesar da existência de uma classe média crescente, atualmente estimada em 300 milhões de pessoas.
No começo dos anos 1990, quando seu governo abandonou políticas socialistas e deu início a um processo de liberalização da economia, houve no país um incentivo ao investimento estrangeiro, à redução de barreiras tarifárias, à importação, à modernização do setor financeiro e a ajustes nas políticas fiscal e monetária. O resultados dessas mudanças foram inflação mais baixa, crescimento econômico e redução do déficit comercial.
O freio no desenvolvimento econômico indiano é composto por uma infraestrutura insuficiente, burocracia pesada, altas taxas de juros e uma "dívida social" elevada, como a pobreza rural e sistema de castas. Tudo isso tem raízes históricas, mas há interesse por parte dos atuais governos em reverter.
A Companhia Inglesa das Índias Orientais, fundada por comerciantes britânicos em
Com a Índia colonizada, os dois grandes conflitos mundiais do início do século passado, as duas grandes guerras, tiveram o reforço de tropas indianas, que representaram os ingleses e tiveram importante papel para o desfecho dos confrontos. Em meio aos combates, uma figura se destacou por sua política de não-violência, trazendo para a Índia a esperança da liberdade. Essa figura que representava a resistência ao colonialismo britânico era Mahatma Gandhi, que junto com outros líderes políticos, como Jawaharlal Nehru, levou, com atitudes pacifistas, a Índia à independência, em 1947.
Gandhi foi mentor do moderno estado indiano e defensor do princípio de não-agressão, porém de protesto e ativismo, como um meio de revolução. Com isso, ele mobilizou a população a reagir. Incentivou os indianos, por exemplo, a produzir os próprios tecidos, para mostrar que não precisavam depender da Inglaterra, por isso, a imagem do líder pacifista se tornou o símbolo do país. A título de curiosidade: a produção de têxtil na Índia é uma dos setores mais prósperos da nação.
Mas o período de colonização inglesa, apesar dos pesares, contribui com o avanço da Índia
Hoje, a Índia é um país auto-suficiente, principalmente, em relação aos alimentos. Com a maioria da população vegetariana - a maior parte não come carne, pois, entre os indianos, o boi é um animal sagrado - faz com que a agricultura cresça e que o povo não tenha carência com a alimentação. Outro aspecto da auto-suficiência é a política adotada, como o "sistema de conselho municipal", chamado Panchayati, constituído por cinco membros, geralmente mais idosos, portanto, para eles, mais sábios, que cuidam dos assuntos da comunidade. Essa cultura vem dos tempos ancestrais, decorrente dos clãs, que foi caindo em desuso. A autoridade legal desses conselhos foi restaurada oficialmente em 1989, por Rajiv Gandhi. Assim, dois milhões e meio de habitantes das vilas são eleitos para posições no panchayat e o governo é exercido por pessoas comuns, que fazem da democracia um fenômeno, genuinamente, de massa.
A Índia é considerada a maior democracia do mundo em função de ter o maior eleitorado entre os países democráticos. O sistema político é parlamentar. O presidente, na qualidade de chefe de Estado, exerce um papel principalmente protocolar, embora sua aprovação seja necessária para que qualquer lei que saia do parlamento. Ele é eleito indiretamente por um colégio eleitoral para um mandato de cinco anos. A chefia de governo é exercida por um primeiro-ministro, que concentra a maior parte dos poderes executivos. Este é nomeado pelo presidente, desde que conte com o apoio de um partido.
Em sua mais recente eleição, de julho de 2007, pela primeira vez na história do país, a Índia elegeu uma mulher para presidente. Pratibha Patil, ex-governadora e candidata pela aliança governista, teve maioria no Congresso. Mas, Patil, vale lembrar, não foi a primeira mulher a estar à frente do governo indiano. Indira Gandhi, assassinada em 1984, foi a primeira-ministra do país. Apesar do sobrenome, Indira não tinha qualquer parentesco com Mahatma Gandhi, e seu governo foi bastante polêmico. Combateu com rigor, por exemplo, os problemas sociais e econômicos decorrentes da explosão demográfica e uma de suas medidas foi a esterelização maciça obrigatória.
A interferência do governo no direito à natalidade de uma forma como esta foi mais uma marca no histórico de violência cometida contra as mulheres indianas. O domínio dos homens sobre as mulheres no país ainda é muito forte em qualquer nível social. Embora a modernidade esteja desbancando algumas tradições, os casamentos arranjados são bastante comuns e o pagamento de dote por parte da família da noiva ao noivo é uma prática associada a esse tipo de arranjo entre famílias. A justificativa mais comum pelo dote é a de que ele seria uma espécie de compensação para a família do noivo pelo investimento na educação dele e no seu preparo para sustentar a noiva e a família que virão a formar pelo resto da vida.
A conseqüência dramática dessa tradição é que o dote desestrutura financeiramente muitas famílias que dão suas filhas em casamento. Isso faz com que dar à luz a meninas seja um prejuízo a priori. Logo, o aborto seletivo - realizado logo após a identificação do sexo pelo exame de ultrassom - tornou-se recorrente.
O dote é uma prática presente em todas as classes sociais, mas proibida pelo governo indiano, estando o noivo que o recebe sujeito à prisão. O dote, obviamente, não é a causa, mas uma conseqüência de uma sociedade que oprime a mulher. Diversas organizações protestam contra os altos números de estupro e violência doméstica.
Não é de se espantar que as mulheres dalit tenham uma vida ainda mais difícil do que as demais. Elas não são estimuladas a estudar e a vasta maioria trabalha por salários de fome na agricultura. Por conta de todas as questões de gênero do país, elas trabalham consideravelmente mais do que os homens dalits, recebendo muito menos do que eles. Apesar de serem consideradas intocáveis, elas acumulam histórias de exploração sexual e são as grandes vítimas da Aids no país.
Mas nem tudo é tragédia na vida das mulheres indianas. Muitas conseguem casar por escolhas próprias e outros tantos casamentos arranjados acabam dando certo também. Fora isso, os novos tempos têm trazido perspectivas melhores para elas. Seus direitos estão garantidos em lei, mas a luta para fazê-los valer na prática é grande.